Recordar Agostinho da Silva, 10 anos depois

por
Olga Pombo

Estamos aqui para recordar Agostinho da Silva!

Faz hoje precisamente 10 anos que ele esteve entre nós, aqui, na Faculdade de Ciências. Apercebi-me disso há pouco tempo, quando conversava com alguns estudantes que, este ano (como outros ao longo destes últimos dez), se interessaram pelo pensamento educativo de Agostinho da Silva e se encontram a preparar trabalhos sobre alguns dos seus escritos para a cadeira de História e Filosofia da Educação que lecciono. Foi nessas circunstâncias que fui remexer velhos papeis e, por acaso, reparei que fazia justamente agora 10 anos que Agostinho da Silva tinha estado na Faculdade de Ciências. Exactamente no dia 19 de Dezembro de 1988 (como este ano, esse dia corresponde a um sábado, a sessão comemorativa acabou por ter que se realizar hoje, dois dias antes, dia da última aula do meu curso deste semestre).

Na verdade, devo fazer uma precisão. Em rigor, essa não foi a primeira vez que Agostinho da Silva veio à Faculdade de Ciências. A primeira vez que convidei Agostinho da Silva foi para vir dar uma aula aos meus alunos e, por coincidência, foi também num dia 19 mas do mês de Janeiro de 1987. (Ainda pensei comemorar a sua vinda a esta casa no próximo dia 19 de Janeiro de 1999, 12 anos depois, portanto. Mas, também essa data, em plena época de exames, acabou por se revelar inconveniente).

Esse primeiro convite surgiu na sequência de um episódio curioso. Numa aula em que, mais ou menos acidentalmente, fiz uma referência a Agostinho da Silva, apercebi-me que nenhum dos meus alunos o conhecia. Porque não era ainda uma figura mediática, a geração dos alunos de então não conhecia sequer o seu nome. Havia no entanto uma excepção: um aluno que conhecia Agostinho da Silva, que tinha lido quase tudo o que ele até então publicara e que o admirava profundamente. Esse facto, e o vivo interesse que esse estudante manifestou, levou-me a convidar Agostinho da Silva, de que tinha a alegria de ser amiga pessoal, a vir dar uma aula à minha turma. Porque a sua disponibilidade era, como todos sabemos, infinita, ele acedeu de imediato ao meu convite. E assim, conforme combinado, lá fomos nós, no dia 19 de Janeiro de 1987, eu e o dito estudante, à Travessa do Abarracamento de Peniche buscar o Professor. O resultado foi que, nesse dia, na minha aula teve lugar um acontecimento esplendoroso que recordo com emoção.

O aluno de então, o tal estudante que sabia tudo acerca do Professor Agostinho da Silva, é o Dr. José Manuel Conceição que está hoje aqui connosco. Terei a alegria, dentro de momentos, de lhe dar a palavra. Dou-lha a ele em primeiro lugar porque ele está na raiz dessa sessão magnífica. Sem o interesse que nessa altura manifestou, é bem provável que o Professor Agostinho da Silva nunca tivesse chegado a vir à Faculdade de Ciências.

Na sequência dessa aula, à qual os meus alunos de então, bem assim como alguns colegas que convidei, assistiram maravilhados, pedi ao Prof. Agostinho da Silva que nos desse um texto inédito para a Revista de Educação em cujo lançamento, juntamente com a Prof. Odete Valente, estava então empenhada. O texto, intitulado "Divagações quanto a Futuro", foi-me remetido com simplicidade e prontidão e publicado no número 2 do volume inaugural.

É pois exactamente a segunda vinda do Prof. Agostinho da Silva à FCUL que hoje estamos a comemorar.

Acontece que, entretanto, o Prof. Agostinho da Silva se tinha transformado numa personagem mediática. O programa televisivo "Conversas Vadias" tinha-lhe dado, em pouquíssimo tempo, a popularidade que a sua obra não lhe havia ainda granjeado.

Nessa sessão, tivemos uma enchente imensa. Recordo que nem eu nem o Professor estávamos preparados para tal. À chegada à Faculdade, fomos ambos surpreendidos com a quantidade de pessoas que pretendiam ouvi-lo. À última hora, foi necessário mudar para uma sala maior (o anfiteatro da matemática) e o Professor, apanhado desprevenido, lá se recompôz e, sem revelar qualquer incómodo, com a mesma simplicidade de sempre, de pé como era seu hábito, durante quase duas horas seguidas, encantou todos os presentes com a sua palavra e o seu espírito. No calor do acontecimento, houve mesmo alguém que tirou a fotografia que aqui se reproduz e que, sem nosso conhecimento, foi publicada num jornal.

 

Quando, um pouco por acaso, como vos disse, tomei consciência que se cumpriam agora 10 anos sobre essa sessão, lembrei-me de comemorar o facto procurando reunir o maior número de pessoas que tivessem estado presentes nessa sessão, pedir a alguns um testemunho da memória que conservaram desse acontecimento: pessoas que estavam na fotografia (Prof. Odete Valente, Prof. João Pedro Ponte, Prof. Teresa Levy, Prof Isabel Chagas, Dr. Cardoso Alves, Dr. Joaquim Furtado), pessoas que não ficaram na fotografia mas que eu sabia que tinham estado presentes (Prof. Maria Helena Andrade e Silva, Prof. Andrade e Silva, Prof. Henrique Guimarães, antigos alunos de há 10 anos que consegui localizar e convidar para estarem hoje aqui presentes, entre os quais o Dr. José Manuel Conceição). Convidei também a Associação Agostinho da Silva entretanto constituída e cuja amabilíssima presença, na pessoa da Dr. Maria da Purificação Araújo, muito agradeço.

Numa daquelas confluências de boas vontades que sempre se desencadeiam quando tem lugar um gesto de sincera comemoração, foi possível reunir a gravação audio dessa palestra, as belíssimas fotografias do Prof. Agostinho da Silva da autoria do Dr. Henrique Guimarães aqui expostas, o conjunto de trabalhos de alunos que, no final, podeis ler ou apenas folhear.

Assim se construiu a ideia desta sessão. A ideia, parecia-me, vinha ao encontro do próprio conceito de escola, instituição cujo sentido tenho vindo, ao longo dos anos, a tentar compreender melhor. Escola como lugar de resistência, de luta contra o esquecimento. Escola rítmica, marcada pela sucessão de vagas de estudantes e professores, que renasce cada ano pela chegada de novos alunos mas que também se despede cada ano de antigos alunos e velhos professores. Escola que vence a irreversibilidade do tempo, a irrevogabilidade da morte pela transmissão às novas gerações do património cultural (científico, artístico, filosófico) adquirido pelas gerações anteriores. Escola que inscreve no caminho sempre para diante da condição humana, o retorno, o regresso aos tesouros acumulados do passado e que, assim, dá continuidade ao elo da criação.

Apresentei a ideia aos alunos que, este semestre, estavam a trabalhar sobre Agostinho da Silva e deixei-me contagiar pelo seu entusiasmo.

E se promovêssemos uma sessão comemorativa da vinda do Prof. Agostinho da Silva à nossa faculdade 10 anos depois?

E se nos organizássemos de modo a podermos, no fim, fazer uma brochura que reunisse, a transcrição da palestra de há 10 anos, testemunhos de pessoas que nela estiveram presentes, pequenos estudos críticos sobre os livros mais importantes de Agostinho da Silva sobre temas educativos, etc.)?

E se, aproveitando as possibilidades técnicas hoje ao nosso dispor, fizéssemos uma montagem vídeo a partir dos registos existentes, iniciativa que nos permitiria, não apenas ler os seus textos, mas ver o movimento da sua irreverência, a força e capacidade sugestiva do seu gesto, ouvir a liberdade perturbadora da sua palavra, o brilho da sua fala, o desafio revigorante dos seus sonhos sempre prontos a melhorar o que existe.

É que, com Agostinho da Silva, estamos na presença de um professor !

Não é pois de estranhar que, nessa antiquíssima oposição entre a fala e a escrita, ele esteja do lado da fala. Fala que é expressão de uma presença concreta, de uma diferença radical, fala pela qual, através da qual o ensino primordialmente se faz. Como escreveu numa das últimas páginas de "Educação de Portugal":  

"O que acontece é que, muito mais que escrever me interessa falar. Aí, porquanto há gestos, pausas queridas e necessidades de respiração, ficam as orações mais ou menos bem divididas e pouca gente dá porque, afinal, houve apenas um só período do princípio ao fim do discurso" (sublinhados nossos).

Esta é pois a modesta sessão que vos proponho: ouvir alguns testemunhos de pessoas que ouviram Agostinho da Silva nesta mesma sala há dez anos, ver um pequeno vídeo "Agostinho da Silva, algumas ideias sobre educação" feito por dois estudantes, (Ricardo Sousa, Rui Albuquerque Foles) cujo esforço gostaria de realçar e agradecer; finalmente discutir (um pouco que seja) algumas das suas ideias.

É a nós, seus alunos, que cabe comentar, questionar, repensar, discordar.  

“Do que você precisa, acima de tudo, é de se não lembrar do que eu lhe disse; nunca pense por mim, pense sempre por você; fique certo de que mais valem todos os erros se forem cometidos segundo o que pensou e decidiu do que todos os acertos, se eles foram meus, não são seus. Se o criador o tivesse querido juntar muito a mim não teríamos talvez dois corpos distintos ou duas cabeças também distintas. Os meus conselhos devem servir para que você se lhes oponha. É possível que depois da oposição, venha a pensar o mesmo que eu; mas, nessa altura. já o pensamento lhe pertence. São meus discípulos, se a1guns tenho, os que estão contra mim; porque esses guardaram no fundo da alma a força que verdadeiramente me anima e que mais desejaria transmitir-lhes: a de se não conformarem”  

(Agostinho da Silva, "Cartas a um jovem filósofo")

Sobretudo, não nos conformarmos!

Olga Pombo opombo@fc.ul.pt