Comentário


 

Este filme de Truffaut retrata, com inegável mestria e sensibilidade, a perda da inocência. É, basicamente, um filme sobre a adolescência e os seus sonhos (perecíveis e frágeis). Mas é também um filme sobre a negligência (e fracasso) de uma família e de uma sociedade em relação àqueles que era suposto educar, ensinar, orientar e proteger.

 

Ao longo do filme somos confrontados com algumas das nossas emoções mais íntimas, colocados perante algumas das nossas angústias mais prementes e abalados pelas nossas (eternas) dúvidas. É difícil não nos sentirmos identificados com Antoine, um jovem como qualquer outro, acabado de sair da infância e que procura entrar dolorosamente na adolescência. Sem moratória e sem alternativa, Antoine é empurrado, por todos os que o rodeiam, para a parte mais sombria da vida adulta. 

Incompreendido por um sistema implacável, abandonado por aqueles que o deveriam amar, sem protecção nem orientação, Antoine persegue o único sonho que lhe resta: encontrar o mar. Desesperado, procura a fuga abençoada que o sonho proporciona. Mas, o que é profundamente triste é que, quando finalmente alcança esse sonho no qual depositara tantas esperanças, não encontra nada. Porque não há nada. Essa desesperança é a condição de adulto.

A cena final do filme pode dar origem a muitas interpretações. Cada indivíduo posicionar-se-á de acordo com a sua experiência e as suas expectativas. O que porém parece inegável é a desilusão expressa no olhar de Antoine quando, impossibilitado de continuar a sua fuga em direcção ao mar, mar esse que sempre povoou os seus sonhos como um símbolo de liberdade e felicidade, se vira (derrotado) para trás, para a vida que ele conhece tão amargamente. Para Antoine, já não há escolha. Encontrar o sonho significa o fim de todas as suas ilusões.

 

Muitas perguntas permanecem na nossa mente após a experiência estética que este filme proporciona. Nada voltará a ser como dantes, para quem vir e sentir este filme de Truffaut. É neste contexto que podemos abordar os temas da educação e da punição tomando como referência  Durkheim (1858-1917),  Foucault (1926-1984) e Hannah Arendt (1906-1975). 

 

Do ponto de vista de Durkheim, " A educação, ao invés de ter como único e principal objectivo o indivíduo e os seus interesses, é acima de tudo a forma pela qual a sociedade recria perpetuamente as condições da sua própria existência" (Durkheim, 1922 - citado em [1]). É a socialização que constitui o objectivo da educação: "Somos seres morais na medida em que somos seres sociais" (Durkheim, 1925 - citado em [1]). A educação modela socialmente, ao instilar tradições, práticas e ideais partilhados por toda a sociedade. Através da educação moral, os jovens tornam-se autónomos e desenvolvem capacidades de pensamento crítico e reflexivo,  vitais para o desenvolvimento de sociedades democráticas. A punição nas escolas ou nas prisões reforça a autoridade moral da sociedade, ao confirmar a ideia de que a usurpação de ideais e práticas a eles associadas produzem repercussões proporcionais ao grau de usurpação. Assim, segundo Durkheim, a punição tem como objectivo principal, não a reabilitação dos criminosos nem a prevenção da criminalidade, mas sim o reforço dos sentimentos sociais partilhados pelos indivíduos que formam a sociedade.

Do ponto de vista de Foucault, a punição nas escolas e nas prisões é um instrumento opressivo que visa a conformação dos seres humanos às normas sociais vigentes. A punição e a educação são veículos de disciplina, disciplina esta que é um meio para a normalização. Assim, segundo Foucault, tanto as escolas como as prisões reflectem a mesma matriz social, o mesmo "complexo científico-legal" (Foucault, 1979 - citado em [1]). 

Tanto para Durkheim como para Foucault, a educação e a punição são formas de instilar e assegurar a autoridade das normas sociais. Ambos concordam que a principal função da punição é "assegurar que a disciplina reine sobre a sociedade como um todo" (Foucault, 1979 - citado em [1]). Para ambos, as escolas e as prisões, apesar da sua localização específica na sociedade, reflectem e mantêm um ambiente social comum no qual todos estamos inseridos.

Mas há divergências importantes. Para Durkheim, é necessária a partilha de um ambiente social, não só como protecção contra o sofrimento que deriva do egoísmo e da anarquia, mas também como forma de assegurar uma sociedade democrática. Durkheim considera por isso os constrangimentos sociais normativos como essenciais. Pelo contrário, para Foucault são os constrangimentos sociais normativos que são intrinsecamente problemáticos.

 

Em "Quatrocentos Golpes", Antoine é sucessivamente agredido e abandonado por duas istituições fundamentais: a escola e a família. Estas parecem inclusivamente conspirar para uma exclusão total do jovem. Como resultado, a prisão é o destino final de Antoine. 

Perante este panorama, debrucemo-nos um pouco mais detalhadamente sobre a perspectiva de Durkheim àcerca da punição, nomeadamente nas escolas.  

Segundo Durkheim, a disciplina - isto é, a capacidade para ser iniciado nas práticas, ideais e crenças de uma sociedade - é um componente fundamental da educação moral, e apenas ela pode dar origem à excelência pessoal, fonte genuína de poder e liberdade. A punição serve para reforçar a autoridade moral da sociedade: um acto de delinquência consiste na violação de regras morais, que devem ser consideradas sagradas e invioláveis; se após a delinquência não existir punição adequada, as regras passam a poder ser questionadas, o que as fragiliza, tornando a sociedade vulnerável.

De notar que Durkheim considera a escola como agente de educação moral mas, esse papel, aplica-se  fundamentalmente à família: é a ela que compete educar. Para Durkheim, a família não deve delegar inteiramente na escola a sua autoridade. No entanto, o papel da escola na iniciação de uma criança na sociedade é fundamental e intransmissível. 

Durkheim revela-se completamente em oposição à utilização de castigos corporais: "Na agressão, na brutalidade de todos os tipos, há qualquer coisa que consideramos repugnante, que choca a nossa consciência, numa palavra, algo imoral" (Durkheim, 1925 - citado em [1]). O objectivo fundamental da educação moral deve ser o de instilar na criança uma moralidade humanística, de lhe dar um sentimento de dignidade. O castigo corporal é a negação dessa mesma dignidade. Para Durkheim, o castigo corporal só é aceitável quando a criança é demasiado pequena para compreender, e esse castigo só deve ser aplicado no âmbito familiar, onde é suposto ser lenitivizado pela ternura e afeição parentais. 

Durkheim salienta o facto de que, para exercer influência educacional, a punição deve produzir atitudes de respeito por parte do transgressor. Assim, a punição de crianças deve assumir a forma de privação: a criança deve, ao ser punida em resultado de um dado acto, ser impedida de participar nas actividades das quais ela gosta e sentir-se contrita. Para Durkheim, a punição perde eficiência de cada vez que é utilizada e todas as punições devem ser precedidads de um aviso, de uma atitude de reprovação: um gesto, um olhar, o silêncio. Também, uma resposta impulsiva a uma transgressão priva essa acção de todo o seu significado moral. Assim, a punição nunca deve ser exercida sem alguma reflexão e moratória, mas um grande atraso entre a transgressão e a punição também é contraprodutivo.

Para Durkheim, as recompensas na escola devem ser usadas como "forma de estimular as qualidades de inteligência, mais do que as qualidades de carácter" (Durkheim, 1925 - citado em [1]). Para ele, o sucesso ou fracasso intelectuais são qualitativamente diferentes do sucesso ou fracasso morais: "A recompensa é um instrumento da cultura intelectual, mais do que da cultura moral" (Durkheim, 1925 - citado em [1]). Do ponto de vista de Durkheim, a educação moral fica, assim, em desvantagem em relação à educação intelectual (ensino), uma vez que os objectivos morais são mais difíceis de definir e de serem adequadamente recompensados.

 

Vejamos agora o que pensa Hannah Arendt sobre esta questão. Para Arendt, os pais introduzem os seus filhos num mundo que já existia e ficam, assim, responsáveis, quer pelos seus filhos quer pelo mundo: "A criança tem necessidade de ser especialmente protegida e cuidada para evitar que o mundo a possa destruir. Mas, por outro lado, esse mundo tem necessidade de uma protecção que o impeça de ser devastado e destruído pela vaga de recém-chegados que, sobre si, se espalha a cada nova geração" (Hannah Arendt, 1961 - citado em [2]). A família tem, assim, um papel crucial no desenvolvimento harmonioso da criança como um novo membro da sociedade: "É lá (na família) que, ao abrigo de quatro muros, os adultos regressam cada dia do mundo exterior e se unem na segurança da vida privada. Esses quatro muros, ao abrigo dos quais se desenrola a vida familiar, constituem uma protecção contra o mundo e, em particular, contra o aspecto público do mundo" (Hannah Arendt, 1961 - citado em [2]). Por outro lado, Hannah Arendt não deixa de reconhecer o papel da escola: "Normalmente é na escola que a criança faz a sua primeira entrada no mundo. Ora a escola não é (...) o mundo. A escola é, antes, a instituição que se interpõe entre o domínio privado do lar e o mundo de forma a tornar possível a transição da família para o mundo(...). Nessa etapa da educação, uma vez mais, os adultos são responsáveis pela criança, (...) para assegurar (...) o livre desenvolvimento das suas qualidades e cerecterísticas" (Hannah Arendt, 1961 - citado em [2]).  Hannah Arendt  encara  o desenvolvimento individual como etapa determinante da educação: "De um ponto de vista geral e essencial é essa a qualidade única que distingue cada ser humano de todos os outros, qualidade essa que faz com que ele não seja apenas mais um estrangeiro no mundo, mas qualquer coisa que nunca antes tinha existido" (Hannah Arendt, 1961 - citado em [2]) mas  reforça a ideia de que a iniciação dos jovens deve ser feita gradualmente e com cuidado: "Na medida em que a criança não conhece ainda o mundo, devemos introduzi-la nele gradualmente; na medida em que a criança é nova, devemos zelar para que esse ser novo amadureça, inserindo-se no mundo tal como ele é. Os educadores, face aos jovens, fazem sempre figura de representantes de um mundo do qual (...) devem assumir a responsabilidade" (Hannah Arendt, 1961 - citado em [2]). 

 

Educar os jovens consiste em prepará-los para a sua entrada num mundo já existente, com todas os seus constrangimentos sociais, uns essenciais para a manutenção desse mesmo mundo, outros mais arbitrários e indicativos do poder da sociedade. Apesar da dificuldade em distinguir os constrangimentos úteis e necessários dos constrangimentos autoritários, a educação não deixa de ser fundamental para manter a sociedade organizada e permitir a sua evolução e desenvolvimento. Com isto, é essencial permitir que os jovens contribuam de uma forma positiva para esse mesmo desenvolvimento, por um lado, enquanto membros de um muindo que os antecede e recebe, por outro , como seres únicos e preciosos que ajudarão a fomentar a invenção constante desse mesmo mundo. Para que se insiram e, ao mesmo tempo, inovem, enriquecendo a sociedade em que se inserem, os jovens devem ser protegidos e integrados, amados pelas famílias e orientados pela escola. Em suma, as "nossas crianças" são da nossa inteira responsabilidade e representam o nosso futuro. Não nos podemos demitir!

É por isso que, como diz Hannah  Arendt de forma extremamente bela e precisa : "A educação é o ponto em que se decide se se ama suficientemente o mundo para assumir responsabilidade por ele e, mais ainda, para o salvar da ruína que seria inevitável sem a renovação, sem a chegada dos novos e dos jovens. A educação é também o lugar em que se decide se se amam suficientemente as nossas crianças para não as expulsar do nosso mundo e as deixar entregues a si próprias, para não lhes retirar a possibilidade de realizar qualquer coisa de novo, qualquer coisa que não tínhamos previsto, mas, ao invés, para, antecipadamente, as preparar para a tarefa de renovação de um mundo comum" (Hannah Arendt, 1961 - citado em [2]).

 

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Olga Pombo opombo@fc.ul.pt