Momentos do Filme


 

 

 

 

 

  • MOMENTO 1: 

O primeiro momento do filme  tem por cenário a sala de aula. Os alunos realizam um teste escrito. Um deles retira da carteira um poster com uma modelo semi-nua, que começa a passar de mão em mão até chegar a Antoine. Este detém-se, desenhando algo no poster. Nesse momento, o professor chama-o e castiga-o, colocando-o num canto da sala. 

Quando chega o intervalo, Antoine é impedido de sair da sala (segundo o professor, "o recreio não é um direito, é uma recompensa"). Antoine resolve escrever na parede da sala de aula: "Aqui penou o infeliz Antoine Doinel, castigado injustamente pelo Folhinha por causa de uma pin-up caída do céu".

Os colegas retornam à sala. Alguns deles vão ao encontro de Antoine aglomerando-se a ler a frase escrita na parede. O professor entra. Ao ver o que se passava, castiga Antoine (não sem antes o humilhar perante a turma) e marca-lhe o seguinte trabalho de casa: conjugar a frase "Estrago as paredes da sala de aulas e maltrato a prosódia francesa" em todas as flexões verbais. Entretanto, enquanto faz um ditado para o resto da turma, o professor ordena-lhe que vá "pedir ao porteiro algo para apagar estes disparates, senão vou obrigá-lo a lambê-los, meu amigo!". 

A aula continua. Apesar do seu estilo autoritário e ríspido, o professor tem dificuldade em manter a disciplina. A vítima desse fracasso será Antoine que, entretanto, tentava limpar a parede. "Julga que apagou? Não! Emporcalhou, meu amigo!". 

Quando as aulas terminam, Antoine  e René regressam a casa, a conversar. O amigo pergunta-lhe se já alguma vez roubou dinheiro aos pais. Antoine responde negativamente. Quando chegam perto da casa de Antoine, este desabafa: "O Folhinhas é cá um estupor! Antes de ir para o serviço militar, gostava de lhe esmurrar a cara!". Os dois amigos despedem-se com um aperto de mão.

 

  • MOMENTO 2: 

Antoine entra em casa. Na sala de jantar, uma divisão modesta de pequenas dimensões, atiça o aquecedor a carvão, limpando as mãos ao cortinado. Retira algum dinheiro de um esconderijo e guarda-o no bolso. Vai ao quarto da mãe, senta-se ao toucador, penteia-se e cheira alguns perfumes. Volta à sala de jantar. Põe a mesa para três pessoas. Vai então buscar a pasta da escola. Tira o caderno para fazer o trabalho de casa. 

A mãe entra pouco depois. Antoine guarda rapidamente as suas coisas. Enquanto ela pendura o casaco de peles (que contrasta claramente com a casa modesta) no bengaleiro, Antoine dá-lhe as boas noites. A resposte é brusca. A gritar, a mãe pergunta-lhe onde está a farinha que era suposto ele ter comprado. Como a farinha é necessária para o jantar, a mãe ordena-lhe secamente que a vá buscar.

No caminho para a mercearia, ouve uma conversa entre duas mulheres. Falam de partos difíceis e de como a maternidade é dolorosa e difícil. Ao subir as escadas do prédio da sua casa, Antoine encontra o padrasto, que lhe pergunta, em tom informal e amistoso: "Sempre em correrias, filho?". Antoine explica-lhe o que aconteceu. O padrasto, sempre no mesmo tom cúmplice, responde: "Espero que não faças a tua mãe gritar outra vez. Bem sabes que é preciso poupá-la.". Entretanto, conversam sobre a nova aquisição do senhor Doinel, um farol de nevoeiro para estrear no próximo ráli. Riem juntos: é a primeira vez que vemos Antoine rir.

Quando entram em casa, Antoine diz à mãe que precisa de dinheiro para a cantina. Ela remete-o para o padrasto (a quem ele chama pai), que lhe dá algumas moedas. Enquanto esperam pelo jantar, o padrasto repara na caneta de Antoine. Pergunta-lhe desaprovadoramente onde a arranjou. Antoine responde que na escola estão sempre a trocar coisas.

Sentam-se para jantar. No fim da refeição, é Antoine quem levanta a mesa. Em conversa, o padrasto pergunta: "A propósito, que fazemos com o miúdo durante as férias?". "As colónias de férias não se destinam aos cães", responde a mãe. Dada a exiguidade da casa, não temos nenhuma razão para pensar que Antoine, a lavar a loiça na cozinha, não tenha ouvido a conversa que se desenrolou na sala. 

Antoine ajuda o padrasto a enrolar uma faixa para o ráli. A senhora Doinel informa o marido que no próximo domingo não o acompanhará. Pretende ficar a descansar em casa de uma amiga. O marido ironiza, dizendo-lhe que o trabalho a cansa demais. 

Entretanto, o padrasto manda Antoine deitar-se. A criança despede-se: "Boa noite, papá, mamã", embora nenhum dos pais se dê ao trabalho de lhe responder. A porta que separa a sala do corredor é fechada. Antoine prepara um divã no corredor, em frente à porta da rua, num espaço muitíssimo reduzido. Quando a mãe abre de novo a porta da sala para lhe lembrar que tem de ir pôr o lixo, Antoine tem de passar por cima do divã para conseguir ir ao piso térreo do prédio colocar o lixo no contentor. 

 

  • MOMENTO 3: 

No outro dia de manhã, a mãe acorda Antoine bruscamente: "Anda, despacha-te! É tarde, não ouvimos o despertador!". Antoine esfrega os olhos e levanta-se. Está embrulhado num saco cama pouco limpo, com uma camisa de dormir rasgada nas mangas. Enquanto se olha ao espelho embaciado da humilde casa de banho, ouve a voz do professor, a repetir ameaçadoramente a frase que lhe tinha dado para conjugar em casa, como castigo, e que Antoine ainda não havia feito. 

O senhor Doinel chama a atenção da mãe para o facto de não ter meias para calçar: umas estão rotas, outras foram para lavar. A mulher diz-lhe para comprar meias novas. O marido pergunta-lhe pelo dinheiro que lhe tinha dado para ela comprar uns lençóis para "o miúdo". Ela responde-lhe que Antoine prefere dormir no saco-cama, "não é, filho?". Antoine aquiesce suavemente: "Pelo menos fico quentinho lá dentro, é óptimo". Enquanto agarra num pedaço de pão, à laia de pequeno almoço, Antoine despede-se: "Até logo, papá, mamã!". Mais uma vez, ninguém lhe responde.

 

  • MOMENTO 4: 

Antoine sai para a rua, ao encontro da manhã fresca e clara, com a pasta debaixo do braço. Encontra René que lhe lembra que não precisa de se apressar porque o professor tinha dito que não o deixava entrar na sala de aula. Antoine pergunta-lhe se isso é verdade, ao que o amigo responde: "Claro, ele não te suporta!". Em inglês, pergunta-lhe se tem dinheiro. Antoine responde que sim, "para a cantina". René pega-lhe no braço e diz-lhe: "Confia em mim", enquanto o empurra suavemente noutra direcção que não a da escola. 

Antoine resiste ligeiramente. Depois, aliviado por não ter de enfrentar o professor, ainda por cima sem o trabalho de casa feito, concorda em acompanhar o amigo na sua escapadela às aulas. René anda sempre bem vestido e agasalhado ao contrário de Antoine. Está habituado a fazer gazeta. Tem mesmo um sítio habitual onde deixar a pasta da escola, atrás da porta de um vão de escadas. Os dois deixam aí as suas pastas. Antoine, que não tem a mesma situação económica do amigo, mostra algum receio mas acede por acompanhar René. Seguem pela rua, livres, a conversar animadamente. Nesta parte do filme, a música é alegre. Os amigos vão ao cinema, jogam nos flippers. É o sabor alucinante da liberdade proibida.

A dada altura, vão a um parque de diversões. Antoine entra no "poço da morte", uma diversão constituída por um cilindro que gira a elevada velocidade e onde as pessoas, no seu interior, podem deixar de sentir a força da gravidade uma vez que ela é compensada pela força centrípeta. O amigo fica a observar. Antoine é a unica criança: todos os que entram no "poço" são adultos, vários homens e uma mulher. Esta cena do filme é marcante: temos quase a sensação de estar também lá, com Antoine, a girar à mesma velocidade vertiginosa que ele. Quase que sentimos, também, como a realidade pode ser afastada para segundo plano...

Os dois amigos prosseguem o seu passeio. Quando atravessam uma avenida movimentada, Antoine vislumbra, entre a multidão, a mãe a beijar um desconhecido. A mãe também o vê e solta-se dos braços do homem bem vestido. Antoine agarra então no braço do seu amigo e afasta-se. A mãe fica consternada e comenta com o homem que não entende.Àquela hora "era suposto" estar na escola. René pergunta a Antoine se ele imagina que vai "levar uma tareia" nessa noite. Antoine responde que a mãe "não se atreverá a contar ao meu pai". 

Os dois dirigem-se para o vão da escada onde deixaram as pastas da escola. Atrás de uma árvore, um dos colegas pelo qual Antoine revelava uma certa antipatia, observa os seus movimentos. Antes de se separar do amigo, Antoine diz-lhe que está decidido a voltar à escola no dia seguinte mas que, para isso, necessita de uma justificação para a falta de hoje. O amigo empresta-lhe a justificação dele para que Antoine a possa copiar imitando a letra da mãe - "demasiado pontuda e difícil de imitar", segundo Antoine...

 

  • MOMENTO 5: 

Em casa, na mesa da sala de jantar, Antoine esforça-se por copiar a justificação mas, ingénuamente, engana-se e copia o nome do amigo. Ao notar o erro, e com receio de que os pais cheguem a casa, Antoine queima o papel no aquecedor a carvão. O padrasto entra pouco depois. Antoine cumprimenta-o. O cheiro a queimado está ainda no ar. Antoine justifica-se dizendo que é do andar de baixo. O senhor Doinel diz então que a mãe vai chegar mais tarde. Antoine põe a mesa para dois. Juntos, na cozinha, preparam um jantar simples. O padrasto pergunta-lhe o que aprendera nesse dia na escola. Antoine mostra-se algo embaraçado. Fala-lhe no próximo aniversário da mãe. Diz-lhe que tem consciência que ela tem sido severa para com o filho mas tenta desculpá-la: "Anda nervosa, temos que a compreender". Antoine cala dentro de si o segredo do que viu nessa tarde.

Quando se preparam para jantar, o padrasto, com azedume, pergunta a Antoine onde é que ele colocou o seu Guia Michelin. Antoine diz, e repete, que não lhe mexeu, mas fica cabisbaixo e triste. No fim do jantar, o padrasto diz-lhe para se ir deitar e para não se esquecer de ir pôr o lixo.

Antoine está deitado no divã, de olhos abertos na obscuridade. Quando o padrasto abre a porta e atravessa o pequeno corredor para ir à casa de banho, Antoine finge estar a dormir. Algum tempo depois, a mãe entra em casa, passando com cuidado por cima do divã de Antoine, para não o acordar ( a porta da rua não se abre completamente quando o divã de Antoine se encontra aberto). Antoine finge, de novo, estar a dormir. Mas não está. Ouve os gritos da discussão, na qual o senhor Doinel insinua que a sua mulher é uma prostituta. Entretanto, e a propósito do Guia Michelin desaparecido, os pais culpam-se um ao outro da educação deficiente de Antoine e o padrasto deixa escapar: "Gaita, dei-lhe um nome, sustento-o...". A mãe responde, aos gritos: "Se não o suportas diz! Pomo-lo nos Jesuítas... Para finalmente eu ter um pouco de sossego!". Impossível Antoine não ouvir.

 

  • MOMENTO 6: 

No dia seguinte, Antoine sai para a rua, a correr como sempre. É uma cena na qual a alegria é patente. Quase conseguimos sentir a frescura da manhã de um dia novo. O colega que, no dia anterior, o tinha espiado a ir buscar a pasta ao vão da escada, corre para casa de Antoine. A senhora e o senhor Doinel discutem, como de costume, sobre a roupa que não está lavada, o dinheiro que não chega... Tocam à campaínha. Ficam ansiosos: "E se fôr o gás?". Quando o padrasto abre a porta, o colega (falso amigo) pergunta se Antoine já está melhor, uma vez que no dia anterior não foi à escola. O padrasto acha estranho que a mãe não se admire pelo facto de o filho não ter ido à escola, mas ela diz que dele espera tudo.

Na rua, já acompanhado de René, Antoine dirige-se à escola. Confessa que está preocupado. Não sabe que desculpa irá arranjar para justificar a falta do dia anterior. René diz-lhe que "quanto maior for a mentira, melhor", mais hipóteses terá de que acreditem nele. 

Quando chega à escola, o professor de francês fá-lo parar e, com a rispidez de sempre, pede-lhe a justificação da falta. Antoine responde que não a tem. Desesperado, diz que a mãe morreu e por essa razão é que faltou. Pela rapidez e pelo tom com que  responde, nota-se que Antoine está a ter um prazer infantil em enganar com tamanha mentira o professor. Por outro lado, deve estar a seguir a indicação que o amigo lhe dera: "quanto maior a mentira, melhor". O professor muda o tom de voz e consola Antoine, o que, de certa forma, é desconcertante. Ao entrarem na sala, René pergunta-lhe que desculpa deu. Antoine responde "Deixa-me em paz". Não está certamente satisfeito por ter exagerado daquela forma.

 

  • MOMENTO 7: 

Alunos e professor estão na aula. De repente, o professor detecta a presença, por detrás da porta de vidro da sala de aula, de uma senhora bonita no átrio interior da escola. Instintivamente, compõe a gravata e tira os óculos, dirigindo-se para a porta. Todos os alunos o observam, incluindo Antoine, que fica estarrecido quando vê que é a sua mãe e o seu padrasto que estão no átrio. 

O professor chama-o por gestos do outro lado da porta. Antoine aproxima-se receoso. O padrasto esbofeteia-o violentamente, em frente a toda a classe. Perturbado, Antoine dirige-se para o seu lugar, em silêncio, e senta-se devagar. Ouvem-se as vozes do professor e dos pais, especialmente a do padrasto a ameaçá-lo de que, á noite, em casa, "acertarão as contas". O olhar que Antoine lança, dirigido para parte incerta, é um olhar de profundo medo.

 

  • MOMENTO 8: 

Antoine e o amigo saiem juntos da escola, ao fim do dia. O amigo pergunta-lhe o que pensa fazer. "Depois disto não posso continuar a viver com os meus pais. Tenho de desaparecer.", responde Antoine. Esta frase é particularmente reveladora da angústia de Antoine, da sua sensação nítida de que não é desejado em parte alguma. Apercebemo-nos do quanto Antoine se sente só... Diz que vai escrever uma carta aos pais. 

Como não tem onde dormir nessa noite, René leva-o para um canto não utilizado de uma tipografia. O barulho das máquinas é ensurdecedor. O amigo improvisa-lhe um colchão e um travesseiro de sacas que se encontram por ali espalhadas e diz-lhe que, só depois da meia-noite, poderá estar ali. 

A carta que Antoine escreve aos pais chega ao seu destino. Nem a mãe nem o padrasto ficam muito impressionados. Antoine diz que vai fazer a sua vida.

Antoine é forçado a sair cedo da tipografia, quando sente pessoas a entrar, possívelmente no início do turno de trabalho. Sai para a rua, ainda de noite. Ao ver serem descarregadas garrafas de leite à porta de uma leitaria, rouba uma. Nota-se que está esfomeado, pois não jantou na noite anterior. Vai a uma fonte ornamental da cidade para lavar a boca e vai para a escola.  Aí, não dá parte de fraco quando o professor lhe pergunta, irónico, como correram as coisas em casa, na noite anterior.

 

  • MOMENTO 9: 

Na aula de inglês, o professor tenta com dificuldade ensinar a pronúncia correcta da palavra "father" a um aluno. Batem à porta da sala. O professor de inglês dirige-se para lá. Vira-se então para Antoine instruindo-o no sentido de ele o acompanhar ao gabinete do director, onde está alguém à espera dele. É a senhora Doinel que foi buscar o filho à escola e se mostra invulgar e desconcertantemente atenciosa. 

Abraçando-o, condu-lo a casa. Dá-lhe banho e enxuga-o com uma toalha. Deita-o na cama dela, que "é melhor". Conversa então com Antoine, tentando uma aproximação e o estabelecimento de uma certa cumplicidade. Antoine não recusa a sua atenção, mas recebe-a com impaciência. Finalmente, a mãe pergunta-lhe suavemente: "O que querias dizer na carta com 'vamos esclarecer tudo'?". Antoine desculpa-se com o facto de a escola não estar a correr muito bem, sem se referir ao que viu no dia em que faltou às aulas. Então, a mãe estabelece um acordo com ele, que deve ficar em segredo: se ele obtiver uma das cinco primeiras melhores notas na próxima composição de francês, dar-lhe-á uma certa quantia de dinheiro.

 

  • MOMENTO 10: 

O professor de educação física sai a correr da escola com alguns alunos atrás dele, para uma aula no exterior. Está equipado com calções e um apito com que marca o ritmo da corrida. A câmara faz um plano de cima para baixo e podemos ver as ruas e os jovens atrás do professor. Alguns deles fogem, em pequenos grupos, sem que o professor dê por nada, até só ficarem dois... Uma cena tocante, pela forma como representa a alegria e irreflexão próprias da juventude, isto é, a "joie de vivre" que Truffaut tão bem retratou nos seus filmes...

 

  • MOMENTO 11: 

Animado com a promessa que a mãe lhe havia feito (talvez não tanto pelo dinheiro, apesar de lhe ter sido prometida uma soma elevada, mas mais pela aceitação e pelo amor), Antoine dedica-se a fundo à leitura, para se preparar para a próxima composição de francês. Lê Balzac e "A procura do absoluto". Para que tudo corra bem, erige até uma espécie de altar a Balzac num nicho situado no corredor e tapado com uma cortina, colando nele uma fotografia do escritor.

Quando, na aula de francês, o professor escreve no quadro o tema da composição a realizar pelos alunos, uma história triste que os tivesse afectado, Antoine lembra-se do texto de Balzac que tinha lido, onde se falava de um velho no seu leito de morte e intitula a sua composição de "A morte do meu avô".

Chegado a casa, Antoine acende uma vela no pequeno altar que tinha erigido a Balzac. Enquanto janta com os pais e assiste às habituais conversas, de moralidade duvidosa e das quais é completamente excluído, a cortina do altar improvisado incendeia-se no corredor. Correm todos para lá. O senhor Doinel apaga o pequeno incêndio zangando-se muito com Antoine e não acreditando "naquela história de Balzac".

 

 

A mãe, que compreende os motivos de Antoine, sugere uma ida ao cinema. Apesar de alguma resistência inicial por parte do padrasto, os três dirigem-se para o cinema, de carro. O ambiente é demasiado invulgar. Antoine está feliz, a mãe está especialmente alegre e simpática, o padrasto está bem disposto. Temos uma sensação de irrealidade mas apercebemo-nos que as personagens estão mais eufóricas do que felizes. Parece uma família feliz e normal, uma cena que não é compatível com a narrativa que nos foi apresentada ao longo do filme...

Em casa, a mãe comenta para o marido: "Vês, dei-lhe a volta, espero não vir a ter motivo para me arrepender!". Nesta noite, os pais não discutem.

 

  • MOMENTO 12: 

Quando, no dia seguinte, o professor de francês começa a entregar as composições, Antoine é o primeiro a receber a sua. O professor explica que, nesse dia, resolveu entregar as composições por ordem inversa do mérito e, por isso, a de Antoine foi a primeir. Ele teve zero de classificação. O professor está convencido de que ele copiou o texto de Balzac e acusa-o disso mesmo. 

Apesar de protestar a sua inocência, Antoine não é ouvido e o professor encarrega um colega de o levar ao director. No caminho para o gabinete do director, Antoine empurra o colega e foge. Entretanto, na sala, René também é expulso por tentar defender o amigo e dizer que viu que Antoine não tinha copiado.

Os dois amigos encontram-se fora da escola. O que irá Antoine fazer agora? Antoine diz, então: "Gostava muito de ver o mar!". O amigo não se espanta. Ele próprio já está farto de ver o mar. Convida-o então a ficar em sua casa.

 

  • MOMENTO 13: 

Em casa, René conduz Antoine a uma arrecadação pouco usada, com um divã, vários gatos e inclusivamente um cavalo empalhado que pertence ao pai de René e que "vale pelo menos um milhão". René explica-lhe que a mãe bebe demais e o pai é um viciado em corridas de cavalos (nesta altura, passamos a compreender melhor René e a sua "amoralidade"). Os dois amigos decidem que precisam de montar um "negócio" para ganhar dinheiro. Com dinheiro, diz Antoine, já podiam fugir para junto do mar e arranjar um emprego na praia...

A casa do amigo é muito espaçosa. René é deixado muito entregue a ele próprio. Na companhia de Antoine, René rouba algum dinheiro do baú onde os pais o guardam.

 

  • MOMENTO 14: 

Em conjunto, os dois amigos saiem a correr pelas ruas da cidade, ainda molhadas pela chuva. 

René arranja comida para o amigo (à custa de enganar os pais que são, no mínimo, pais ausentes). Vão os dois ao cinema, a grande paixão de Antoine. René inicia o amigo nos pequenos roubos. No quarto das arrumações, os dois amigos jogam. Antoine fuma charutos e bebe vinho, embriagado pela súbita liberdade e sensação de adultez que o invade. De facto, ele adquiriu todo um conjunto de maneirismos tristemente adultos... A dada altura, compreendemos que tinha sido, efectivamente, Antoine a tirar o Guia Michelin do padrasto. Ficamos, de certa forma, desiludidos. Mas, estranhamente, não é com Antoine que estamos desiludidos. Ou será?

 

  • MOMENTO 15: 

Antoine e o amigo caminham através de um parque, com uma garota mais nova (talvez irmã de René?). Dirigem-se para um teatro de marionetas, onde se encontram muitas outras crianças, de idades provavelmente entre os 4 e os 7 anos. Esta cena é pura e simplesmente maravilhosa. Uma verdadeira homenagem prestada por Truffaut à inocência das crianças: são vários planos nos quais podemos observar as crianças de frente, olhando as marionetas com olhos cintilantes, expectantes, e deliciosamente inocentes.

Antoine e René estão sentados ao fundo da sala, num plano de nítido distanciamento que certamente ilustra a perda da inocência nestes dois personagens. Conversam sobre a possibilidade de roubarem e penhorarem máquinas de escrever. Antoine lembra-se do escritório onde o padrasto trabalha. Decidem ir lá para roubar uma máquina de escrever. 

Assim o fazem. Carregam a máquina (que é bastante pesada, para uma criança) até estarem demasiado cansados. Nesta cena a música é bastante triste, como que num prenúncio do que ainda está para vir... Após terem tentado, em vão, penhorá-la por intermédio de um homem que mais estava interessado em lhes roubar a máquina, Antoine, desesperado de cansaço, decide ir devolvê-la ao escritório. O amigo fica cá fora à sua espera. 

Quando Antoine está quase a colocar a máquina de onde a tirou é apanhado em flagrante pelo porteiro, que manda chamar o senhor Doinel. Esta cena é extremamente irónica: Antoine não é apanhado quando rouba a máquina mas sim quando a tenta devolver... 

Enquanto isso, René espera na rua até que vê sair o padrasto de Antoine que arrasta o enteado e que lhe diz que nunca mais verá o amigo. O padrasto conduz Antoine a uma esquadra de polícia.

 

  • MOMENTO 16: 

Na esquadra, o senhor Doinel insiste para que Antoine fique preso, "para ele aprender", pois "já não sabem mais o que fazer com ele". Está mesmo disposto a assinar uma declaração para que Antoine seja internado num reformatório...

Antoine é preso por "vagabundagem e roubo" e tratado como um preso normal, adulto e reincidente. É colocado numa cela com adultos e, inclusivamente, prostitutas. Um dos presos pergunta-lhe porque está ele ali. Antoine responde-lhe que é por ter fugido de casa. Entratanto, o padrasto sai da esquadra se sequer se despedir de Antoine, que passa a noite na cela, triste e com frio. Ficamos como que aterrados com as proporções que o castigo tomou.

De madrugada, a carrinha da polícia conduz os presos para a prisão onde irão ser apresentados ao juiz. No caminho que a carrinha percorre, de madrugada, pelas ruas desertas de Paris, Antoine observa através das grades a cidade que vai deixando para trás. Uma lágrima solitária desce pelo seu rosto.É a primeira e única vez que vemos Antoine chorar.

 

  • MOMENTO 17: 

Na prisão, Antoine é tratado com grande violência psicológica, especialmente se tivermos em conta que se trata de uma criança! É despojado das suas roupas e objectos pessoais e colocado numa cela. A comida que lhe dão é intragável. A partir de um pedaço de jornal enrola um cigarro, lambe a mortalha e acende um fósforo na sola dos sapatos. Parece um homem, parece um velho... Com fome e com frio, tenta dormir. 

No dia seguinte, os guardas tiram-lhe as impressões digitais e fotografam-no antes de o apresentarem ao juiz. No gabinete do juiz, a mãe de Antoine dá a entender ao juiz que não pode ficar com o filho, que o melhor para ele é ficar numa casa de corecção. O juiz realça um ponto chave: as dificuldades que os pais têm tido na educação de Antoine estão, provavelmente, relacionadas com o exercício intermitente da autoridade parental. Em vista da negligência com que o jovem tem sido tratado (fins de semana sózinho em casa), o juiz conclui que será melhor enviá-lo para o "Centro de Observação de Menores Delinquentes" enquanto se efectuam as investigações do processo. A mãe fica satisfeita com a decisão do juiz.

 

  • MOMENTO 18: 

No "Centro de Observação de Menores Delinquentes", Antoine convive com outros jovens, partilham experiências, falam dos motivos que os conduziram ali. Assiste, inclusivamente, ao retorno à prisão de um evadido, que se não cansa de dizer aos colegas que, se puder, tentará fugir de novo. O ambiente do centro é bastante violento e gerador de revolta. 

O guarda prende as filhas pequenas num sítio seguro quando os jovens são soltos para o recreio. Quando os jovens saiem para o campo de jogos e para os relvados, inebriados com o sopro de liberdade de que vão poder usufruir durante algum tempo, ficamos tocados pelo esplendor do sentimento de liberdade.

Antoine é castigado duramente durante uma refeição, quando come um pedaço de pão antes de ter tido autorização para isso. Sente-se o seu profundo desalento. Ficamos assustados com a sua conformação. É como se de uma desistência se tratasse.

 

  • MOMENTO 19: 

A certa altura, Antoine tem uma consulta com a psicóloga do centro. Esta cena é um testemunho fulcral da qualidade do realizador e da interpretação de Jean-Pierre Léaud. A sua actuação, os seus gestos, o seu olhar são magistrais. A psicóloga nunca é focada. Antoine está de frente para a câmara, a falar (parece-nos) directamente para nós. O discurso é intimista. 

À medida que a psicóloga vai fazendo perguntas, apercebemo-nos de vários factos importantes na vida de Antoine: ele sempre soube que não era filho do senhor Doinel, que tinha sido fruto de uma gravidez indesejada, que a avó é que tinha impedido a mãe de abortar. Ficamos a saber que Antoine tinha roubado algum dinheiro à sua avó, dinheiro esse que a mãe lhe tinha tirado do bolso das calças sem ele ver. A avó, não dando pelo roubo, oferece-lhe, no dia do seu aniversário, um livro, que a mãe lhe confisca. Quando, mais tarde, Antoine pretende ler o livro, apercebe-se de que a mãe o havia vendido.

 

  • MOMENTO 20: 

No dia das visitas, os presos aglomeram-se atrás das portas de vidro da instituição, numa atitude expectante. Antoine também. René pegou na sua bicicleta e foi visitar o amigo. Mas não o deixam entrar. A desilusão de Antoine é imensa. Parece-nos que é neste momento que ele desiste completamente da vida, quando ao ver o amigo afastar-se deixa cair a mão ao longo do vidro da porta.

A mãe vem vê-lo, apenas para o informar, gelidamente, que a partir de agora Antoine está absolutamente por sua conta e risco. Para eles, é como se já nem existisse.

 

  • MOMENTO 21: 

Um dia, durante um jogo de futebol e aproveitando a distracção momentânea de um dos guardas, Antoine foge através de um buraco na rede que circunda o campo de jogos. O guarda corre em sua perseguição mas Antoine consegue despistá-lo.

A partir daqui, temos uma das cenas mais emblemáticas do filme: os planos são longos e demorados, a música é triste. Antoine corre pelos campos cobertos de geada, durante bastante tempo. Acusa alguns sinais de cansaço. Mas não pára. Vislumbra ao longe o mar e é para lá que está decidido a dirigir-se.

Já na praia, Antoine continua a correr, sem parar, em direcção ao mar. Quando o alcança, avança ainda um pouco. Impedido de continuar, sem saída possível, volta-se para a câmara (que nesta altura está de frente para o mar). E somos nós, então, que somos sacudidos por um arrepio. O que a câmara de Truffaut nos dá a ver é um mundo inteiro de desilusão no seu olhar. 

É o fim.

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Olga Pombo opombo@fc.ul.pt