Democracia e Educação

John Dewey 

Cap. 10

Interesse e Disciplina

Tradução de 

Irene Yen Ling Lau

Finalista da Licencitura em Matemática, 1995/96

 

 

      1. O significado dos conceitos. 

Facilmente nos apercebemos de que a atitude de um mero espectador difere da de um agente ou participante. O primeiro é indiferente ao que se passa á sua volta; um resultado é exactamente tão bom quanto outro, uma vez que cada um deles é algo para ser apenas observado. O último, pelo contrário, interessa-se por tudo o que acontece; não é indiferente aos resultados. O seu destino depende, em grande medida, das consequências dos acontecimento. Por conseguinte, ele faz os possíveis para influenciar o rumo desses mesmos acontecimento. Um é como um homem encarcerado, olhando a chuva através das grades; pouco lhe importa que chova. O outro é como alguém que planeou um passeio para o dia seguinte, o qual, se continuar a chover, ficará certamente sem efeito. Não pode, evidentemente, fazer o que quer que seja para alterar o estado do tempo, mas poderá tomar medidas que influenciem os acontecimentos futuros, como, por exemplo, adiar o planeado piquenique. Se alguém vir um veículo vir na sua direcção e correr o risco de ser atropelado, não podendo fazê-lo poderá, pelos menos, desviar-se se antevir o resultado com a necessária antecedência. Noutras situações, ele poderá intervir ainda mais directamente. A atitude de um participante no desenrolar dos acontecimento é pois bipartida: por um lado, revela uma apreensão, uma ansiedade no que respeita ás consequências futuras; por outro lado, uma tendência para agir de forma a assegurar as melhores consequências e evitar as piores.

        Palavras há que traduzem esta atitude: preocupação, interesse. Estas palavras sugerem que uma pessoa está dependente das contingências dos factos; que ela está consequentemente atenta áquilo que eles lhe poderão trazer, e que, na base das suas expectativas e previsões, ela anseia agir de forma a dar às coisas um rumo diferente. Interesse e objectivos, preocupação e intenção estão necessariamente interligados. Palavras como objectivo, intento, fim, realçam os resultados que se obter e pelos quais uma pessoa se esforça; elas (as palavras ) supõem uma atitude pessoal de apreensão e de ânsia ponderada.

      Palavras como interesse, dedicação, preocupação, motivação, acentuam a relação daquilo que se prevê que irá acontecer com o destino do indivíduo e o forte desejo de agir por forma a assegurar um resultado aceitável. Elas (as palavras) pressupõem as alterações objectivas. Mas a diferença é apenas enfática; o significado que está oculto num conjunto de palavras, revela-se com evidência no outro. Aquilo que é previsto é objectivo e impessoal: a chuva do dia seguinte; a possibilidade de ser atropelado. Mas para um ser activo, um ser que participa das consequências em vez de se manter distante delas, há simultaneamente uma reacção pessoal. A diferença imaginativamente prevista constitui uma diferença factual, que se traduz na apreensão e no esforço. Embora palavras como dedicação, preocupação e estímulo assinalem uma atitude de escolha pessoal, o certo é que se trata de atitudes voltadas para as coisas, para aquilo que é previsto acontecer. Podemos denominá-las fase da previsão intelectual objectiva e fase da preocupação pessoal emocional evolutiva, mas elas constituem uma unidade, não se pode separá-las.

        Tal separação só poderia ter lugar se as atitudes pessoais tivessem um mundo próprio, isto é, se se bastassem enquanto tal. Porém, elas são sempre reacções àquilo que se passa numa dada situação da qual elas fazem parte; e a sua bem-sucedida ou malograda manifestação depende da sua interacção com outras alterações. As formas de vida florescem e extinguem-se apenas em conexão com as alterações do meio ambiente. Estão estreitamente ligadas a estas alterações. Os nossos desejos, emoções e dedicações mais não são do que diversos modos de manifestação da nossa ligação estreita com os factos e com os outros. Em vez de demarcarem um domínio puramente pessoal ou subjectivo, separado do objectivo e impessoal, demonstram a inexistência de dois mundos separados. Evidenciam que a alteração dos factos não são estranhos às actividades de uma pessoa, e que o modo de vida e o bem-estar dessa pessoa estão ligados à evolução dos outros e dos factos. Interesse e preocupação significam que aquela pessoa e o mundo estão interligados numa situação evolutiva.

       A palavra “interesse”, no seu significado corrente, exprime(I) toda uma situação de desenvolvimento activo,(II) os resultados objectivos previstos e desejados e (III) as tendências pessoais emocionais.

     (I) Uma ocupação, um emprego, uma actividade, um negócio, são normalmente identificados como interesses. Daí dizermos que o interesse de uma pessoa determinada é a política, o formalismo, a filantropia, a arqueologia, a colecção de gravuras japonesas, a actividade bancária, etc..

       (II) O interesse abrange ainda o grau em que algo pode afectar ou comprometer um indivíduo, o grau em que o influencia. Em algumas transacções legais, um indivíduo terá de provar o “interesse” por forma a poder instaurar uma acção em tribunal. Terá de demonstrar que uma determinada atitude tem conexão com os seus negócios. Um sócio passivo, embora não tome parte na condução de um dado negócio, tem interesse nesse mesmo negócio na medida em que os bons e os maus resultados dele derivados afectem os seus proveitos e as responsabilidades. (III) Quando se diz que um indivíduo está interessado nisto ou naquilo, a ênfase recai sobre a sua atitude pessoal. Estar interessado é estar absorvido em, estar completamente  devotado a, estar empolgado com alguma coisa. Estar interessado é estar vigilante, preocupar-se com, estar atento. É costume dizer-se, acerca de uma pessoa interessada, que ela tanto se perdeu num determinado caso, como se encontrou nele. Qualquer uma destas expressões evidenciam o elevado grau de envolvimento dessa pessoa numa determinada situação.

         Quando no plano da educação se fala em interesse de uma maneira depreciativa, é porque o segundo dos significados referidos é, por um lado, exagerado e, por outro lado, isolado. Interesse é entendido meramente no sentido dos efeitos que um facto pode produzir na esfera do indivíduo: vantagem ou desvantagem; sucesso ou insucesso. Considerados desligados do desenvolvimento objectivo das coisas, são reduzidos a meros estados pessoais de prazer ou de sofrimento. Pedagogicamente, resulta que associar importância a interesse significa associar uma característica de sedução àquilo que é substancial que, de contrário, não seria atractivo; significa assegurar a atenção e o esforço através de um suborno  de prazer. Este procedimento é devidamente estigmatizado como pedagogia “soft”, como uma teoria de educação ”soup-kitchen”.

         No entanto, a objecção é baseada no facto - ou na assunção - de que as técnicas a serem adquiridas e as matérias a estudar não têm interesse por si próprias; por outras palavras, elas presumem-se irrelevantes para as actividades normais do aluno. A solução não está em encontrar o defeito, argumentando com a doutrina do interesse; está, antes de mais, em procurar algum chamariz agradável que possa ser associado àquilo que é substancial. É preciso descobrir objectivos e modos de agir que se conjuguem com as capacidades existentes. A função deste material em induzir á actividade e conduzi-la de forma consistente e contínua é o seu interesse. Se o material, operar desta forma, não será necessário encontrar mecanismos que o tornem interessantes nem recorrer a atitudes semi-coercivas.

        A palavra “interesse” significa etimologicamente aquilo que está “no meio de”, aquilo que relaciona duas coisas que, de outra forma, estariam afastadas. No domínio da educação a distância a percorrer deve ser encarada como temporal. O facto de um processo levar o seu tempo até atingir a maturação é algo tão evidente que raramente nos lembrámos de o explicitar. Fechamos os olhos ao facto de que no desenvolvimento há um caminho a percorrer entre o estádio inicial do processo e o momento em que o mesmo se completa, ou seja, de que há algo intermédio. Na aprendizagem, as capacidades presentes do aluno estão num estádio inicia; o objectivo do professor representa o limite distante. Entre os dois situam-se os meios, as condições intermédias: actos que têm que ser executados; dificuldades que têm de ser ultrapassadas; recursos que têm de ser utilizados. Só através deles é que as actividades iniciais alcançam um resultado satisfatório.

      Estas condições intermédias são relevantes precisamente porque a transformação das actividades desenvolvidas em resultados previstos e desejados depende delas. Ser meios de levar a cabo as tendências actuais, estar entre o agente e o seu objectivo e ser relevante, são modos diferentes de exprimir a mesma realidade. Quando o material tem de ser tornado interessante, isso significa que não tem conexão com os objectivos e a capacidade efectiva. Ou que se a conexão existe, ela não é evidente. Torná-lo interessante levando a pessoa a compreender a conexão que existe é uma atitude sensata. Torná-lo interessante através de estímulos exteriores e artificias merece as mesmas críticas que foram apontadas à doutrina do interesse no que respeita à educação.

      É tudo o que havia a dizer sobre o significado de “interesse”. Debrucemo-nos agora sobre o de “disciplina”. Quando uma actividade leva tempo a realizar-se, quando existem muitos obstáculos entre o seu inicio e a sua conclusão, é necessário ponderação e persistência. É óbvio que uma grande parte do significado de “força de vontade” é, hoje em dia, precisamente a disposição deliberada e consciente para persistir e resistir apesar da existência de dificuldades e solicitações contrárias. Um indivíduo com uma vontade forte, no sentido comum do termo, é alguém que não é volúvel nem indiferente quando está em causa o alcance dos objectivos escolhidos. A sua capacidade é executória; isto é, ele luta persistente e energicamente para realizar ou levar a cabo as suas aspirações. Uma vontade fraca é instável como a água. 

         Há claramente dois factores relevantes da vontade: um tem a ver com a previsão dos resultados; o outro, com o grau de influência que o resultado previsto tem sobre a pessoa.(I) A obstinação é persistência mas não é força de vontade. Pode ser uma mera inércia insensibilidade animal. Um indivíduo continua a fazer algo apenas porque começou e não porque tenha um objectivo claramente ponderado. Na realidade, uma pessoa obstinada geralmente recusa (embora não tenha total consciência dessa recusa) tornar claro para si próprio quais os objectivos pretendidos. Ele tem a impressão de que se se permitir arquitectar uma ideia clara e completa dobre isso, poderá não valer a pena. A teimosia manifesta-se mais claramente na relutância em criticar os objectivos que se apresentam do que na persistência e energia na utilização de meios para atingir esses objectivos. O indivíduo verdadeiramente dinâmico é aquele que pondera os seus objectivos e que concebe as consequências das suas acções da forma mais clara e completa possível. As pessoas que são apelidadas de pouco voluntariosas e comodistas iludem-se a si próprias no que respeita às consequências dos seus actos. Seleccionam um ou outro elemento agradável e negligenciam todas as circunstâncias concomitantes. Assim, logo que começam a agir, os resultados que ignoraram começam a evidenciar-se. Sentem-se então desencorajados ou queixam-se de que os seus bons propósitos foram contrariados por um destino implacável e então decidem mudar para outra linha de acção. No entanto, dizer que a diferença fundamental entre uma vontade forte e uma vontade fraca é intelectual consistindo na diferença de grau de firmeza persistente e completude com que se ponderam as consequências, é porventura  exagerado.

         (II) É evidente que há um certo grau de especulação na planificação dos resultados. É certo que podem ser previstos, mas não são considerados como algo inexorável. São vistos mais como algo que deve ser examinado e com que se pode jogar por curiosidade, e menos como algo que tenha de ser realmente alcançado. A super intelectualidade não existe. O que existe é uma intelectualidade  parcial. Um indivíduo sente um certo alívio quando pondera as consequências de diversos modos de agir por ele projectados. Uma certa falta de firmeza impede que os objectivos considerados o controlem e determinem o seu agir. E a maioria das pessoas são desviadas de um rumo de acção planeado devido a obstáculos  anómalos e inesperados ou ao aparecimento de estímulos relativamente a actividades mais atractivas.

          Uma pessoa que tenha sido ensinada a ponderar os seus actos, a praticá-los de livre vontade, é uma pessoa disciplinada. Se associarmos a esta capacidade um poder de persistir numa direcção criteriosamente  escolhida, não obstante  as distracções, confusões ou dificuldades que possam surgir, teremos a essência de disciplina. Disciplina significa poder de controle, domínio dos recursos disponíveis  para levar a bom termo o acto empreendido. Saber o que se tem que fazer e decidir fazê-lo prontamente e utilizando os meios necessários, é ser disciplinado. A disciplina é algo de positivo. Intimidar o espírito, dominar as tendências, impelir à obediência, mortificar a carne, fazer com que um subordinado desempenhe uma tarefa desagradável, tudo isto é ou não disciplina consoante tende ou não para o desenvolvimento da capacidade de compreender aquilo que se está fazer e para a persistência na realização.

            É desnecessário acentuar que interesse e disciplina estão em relação e não em oposição. Até mesmo a fase mais puramente intelectual da capacidade é exercitada - apreensão daquilo que se faz através dos resultados - não é possível sem interesse. A ponderação será superficial se não houve interesse. Os pais e os professores queixam-se frequentemente - e com razão - de que as crianças “não querem ouvir nem compreender” .Mostram indiferença relativamente á matéria porque ela não lhes diz nada, não faz parte das suas preocupações. É evidente que esta situação precisa de ser solucionada, mas a solução não reside no uso de métodos que façam aumentar a indiferença ou a aversão. Castigar uma criança por estar desatenta pode ser uma forma de tentar fazê-la compreender que o tema não é de todo desinteressante, pode ser uma forma de despertar o interesse ou originar um sentimento de relação. Com o decorrer do tempo, a sua eficácia poderá ser avaliada com base nos resultados: ou se constata que produz um mero estímulo físico que leva a criança a agir do modo que o adulto pretende, ou, pelo contrário, se conclui que induz a criança a “pensar”, ou seja, a reflectir sobre os seus actos e a impregná-los de finalidades. Que o interesse é indispensável para a persistência na execução é ainda mais óbvio. As empresas não colocam anúncios pedindo empregados que não tenham interesse naquilo que fazem. Se alguém tivesse que contratar um advogado ou um médico, nunca lhe ocorreria pensar que a pessoa contratada fosse desempenhar a sua tarefa mais conscienciosamente se ela fosse tão desagradavel que ele a desempenharia apenas pelo sentido do dever. O interesse mede, ou melhor, é o grau de influência que uma finalidade prevista tem sobre a pessoa, no sentido de a levar a agir a fim de procurar realizá-la.

 

         2.A importância do conceito de interesse na educação. 

O interesse é a força motora das coisas - quer o interesse real, quer o imaginário- tendo em cada experiência uma finalidade específica. Na prática, o valor do  reconhecimento do carácter dinâmico do interesse no desenvolvimento educacional reside no facto de ele conduzir a uma avaliação das capacidades específicas, das necessidades e das preferências de cada criança. Todo aquele que reconhece a importância do interesse, não concluirá que todos os intelectos funcionam do mesmo modo apenas porque o professor e os textos são os mesmos. As atitudes e métodos de aproximação e resposta variam com a particular atracção que os mesmos materiais provocam, variando esta atracção de acordo com as diferenças no que toca a aptidões naturais, experiências, projectos de vida, etc. Mas os factos relativos ao interesse proporcionam ainda considerações de validade universal à Filosofia da educação. Em rigor, eles põe-nos de sobreaviso relativamente a certas concepções de pensamento e de matéria que estiveram muito em voga no pensamento filosófico do passado e que tiveram uma influência fortemente complexa sobre o modo de ensinar e educar. Muito frequentemente o pensamento (o mundo das ideias) é colocado acima do mundo das coisas e dos factos (o mundo material), objecto do conhecimento. Ele é visto como algo que existe isoladamente, com estados e operações intelectuais que têm existência autónoma. O conhecimento é então considerado como uma aplicação externas dos entes puramente intelectuais às coisas objecto do conhecimento; ou como um resultado das impressões que o mundo material produz no pensamento; ou ainda como uma combinação dos dois. A matéria é então concebida como algo de completo em si mesma. É algo a ser aprendido ou conhecido, quer por aplicação voluntária do pensamento, quer atavés das impressões que nele produz.

            Os factos relativos ao interesse mostram que estas concepções são fictícias. O pensamento surge, na prática, como a capacidade para responder a estímulos actuais na base de uma antecipação das consequências futuras possíveis com vista a controlar o tipo de consequências que vão ocorrer. As coisas - a matéria conhecida - consistem naquilo que é reconhecido como uma relação com o curso antecipado dos acontecimentos, quer assistindo-o, quer retardando-o. O formalismo destas afirmações dificulta a sua compreensão. Tornemo-las mais claras através de um exemplo.

           Suponhamos que alguém está a desenvolver uma certa actividade, por exemplo, a escrever à máquina. Se se tratar de uma pessoa hábil, os movimentos fisícos far-se-ão de forma automática deixando o pensamento livre para reflectir sobre o tema em causa. Suponhamos, contudo, que a pessoa não é hábil, ou que, mesmo sendo-o, a máquina não funciona muito bem. Nessa altura, terá que usar o intelecto .Não quererá, certamente, bater as teclas ao acaso e deixar que o resultado seja aquele que for. Quererá, sim, gravar determinadas palavras numa certa ordem, de modo a fazerem sentido. Tem que estar atenta às teclas, àquilo que tem de escrever, aos seus movimentos, à fita ou ao mecanismo da máquina. A sua atenção não está distribuída indiferente e indistintamente por cada um e por todos os detalhes. Ela está centrada naquilo que está relacionado com a efectiva consecução da sua actividade. A pessoa preocupa-se com os factos actuais porque e na medida em que eles concorrem para alcançar o resultado pretendido. Tem que ter conhecimento dos recursos possíveis, das condições existentes e das dificuldades e obstáculos a ultrapassar. Esta antevisão e este exame a respeito daquilo que é previsto constitui o pensamento. Um acto que não envolva uma tal previsão de resultados e um tal exame de meios e obstáculos ou é um hábito, ou é irracional. Em qualquer dos casos não se trata de um acto inteligente. Ser-se impreciso e pouco firme relativamente àquilo que se pretende e negligente na observação das condições da sua realização é ser-se estúpido ou parcialmente inteligente.

           Se considerarmos o caso em que o pensamento não se preocupa com a manipulação física dos instrumentos com os quais uma pessoa pretende escrever, a situação é idêntica. Suponhamos que alguém iniciou o desenvolvimento de um tema. A menos que essa pessoa escreva como um fonógrafo fala, ser inteligente significa estar atento à previsão dos diversos resultados para os quais tendem os factos e as considerações actuais, bem como proceder a uma observação e rememoração continuamente renovadas a fim de se conseguir captar a matéria que se relaciona com os resultados que se pretendem alcançar. Esta atitude revela, no seu conjunto, uma preocupação com o que irá acontecer no futuro e com o que está a acontecer no presente, desde que, obviamente, o que está a acontecer no presente esteja relacionado com as finalidades em vista. Por um lado, abandonar o rumo que dependa de uma previsão dos resultados futuros possíveis não é um comportamento inteligente. Por outro lado, fazer uma previsão especulativa dos resultados sem atender ás condições das quais depende a sua consecução é auto-ilusão ou pura fantasia - inteligência atrofiada.

           Se esta ilustração for típica então isso significará que o pensamento não corresponde a algo de completo em si mesmo, mas sim a um encadeamento de actos desde que inteligentemente direccionados, ou seja, na medida em que neles se tenham em linha de conta os objectivos, as finalidades e desde que haja uma selecção de meios para promover a realização dos objectivos. De notar que a inteligência não é propriedade exclusiva de alguém. Uma pessoa é inteligente na medida em que as actividades por ela desenvolvidas possuam as características já mencionadas. Não se julgue, porém, que as actividades em que uma pessoa se envolve - quer de forma inteligente, quer não - são , elas também, propriedade exclusiva sua. Elas são algo em que ele se empenha e participa. Outros factores existem - as modificações autónomas de outros factos e pessoas - que exercem a sua influência, ora coadjuvando, ora criando obstáculos. É certo que o acto individual pode constituir o momento inicial de um curso de acontecimentos, mas o resultado final depende da interacção das reacções do indivíduo com outras forças a ele exteriores. Conceber o pensamento como sendo apenas um factor que participa com outros na produção de resultados seria esvaziar o seu conteúdo.

           O problema que se levanta no campo do ensino é, por conseguinte, o de encontrar material que envolva o aluno em actividades específicas com objectivos ou propósitos que despertem o seu interesse, e o de lidar com as coisas, não como se fossem aparelhos de ginástica, mas sim condições relevantes para a obtenção dos resultados. A solução para os males imputados `a doutrina da disciplina formal não está na sua substituição por outra, mas sim na reformulação da noção de pensamento e do modo de o exercitar. A solução está na descoberta de formas típicas de actuação - quer se  trate de actividades recreativas, quer de actividades proveitosas - pelas quais os indivíduos se interessem e que não possam ser levadas a cabo sem reflexão e sem discernimento na escolha do material a observar e rememorar. Em resumo, a essência do erro que predominou durante muito tempo relativamente á forma de exercitar o pensamento consiste em ignorar a influência que a evolução dos factos tem nos resultados futuros e nos quais o indivíduo participa, e no sentido segundo o qual observação, imaginação e memória são registados. Consiste em considerar o pensamento como algo de completo em si mesmo, pronto para ser aplicado directamente a uma dada matéria.

        Historicamente, este erro enveredou por dois caminhos. Por um lado, encobriu e protegeu as matérias leccionadas e os métodos de ensino das críticas mais perspicazes e das reformulações emergentes. O facto de se dizer que eram “disciplinadores” colocava-os ao abrigo de toda a contestação. Não foi suficiente demonstrar que eram completamente inúteis na vida prática ou que não contribuiam para o aperfeiçoamento do indivíduo. Bastava dizer que eram “disciplinadores” e com isso se reprimiam todas as objecções, se subjugavam todas as dúvidas e se afastava o assunto do campo da discussão racional. Pela sua própria natureza, aquela afirmação não podia ser demonstrada. Mesmo quando daí não resultava qualquer disciplina, quando o aluno inclusivamente se tornava menos aplicado e perdia a capacidade de auto-orientação, a culpa era dele e não do objecto de estudo ou dos métodos  de ensino. O seu fracasso não era mais do que a prova de, que ele necessitava de mais disciplina e assim se conseguia uma razão para conservar os velhos métodos. A responsabilidade era transferida do educador para o educando uma vez que a matéria não tinha que ser submetida a qualquer teste específico; ou seja, não tinha que ser demonstrado que ela satisfazia qualquer necessidade particular ou servia alguma finalidade específica. Era concebida para a disciplina em geral e se fracassava era porque o indivíduo não estava disposto a ser disciplinado.

            Por outro lado, havia uma tendência  para uma concepção negativista de disciplina em vez da sua identificação com o desenvolvimento da capacidade construtiva de realização. Como já tivemos a oportunidade de ver, a vontade indicia uma atitude dirigida ao futuro, dirigida á produção de resultados possíveis, uma atitude que envolve um certo esforço de previsão   clara e inteligível dos resultados possíveis de certos comportamentos e uma identificação activa com alguns resultados previstos. A identificação da vontade ou do esforço com a simples pressão verifica-se quando o pensamento é concebido como dotado de capacidades destinadas apenas a serem aplicadas aquilo que é material. O indivíduo simplesmente se dedica ou não ao assunto que tem em mãos. Quanto mais indiferente for o tema, menos interessará ao indivíduo e mais necessidade de esforço haverá para que o pensamento nele se concentre, e daí uma maior disciplina da vontade. Se a pessoa se debruça sobre determinada matéria porque está interessada, isso não é, deste ponto de vista, disciplinador ; também não o é mesmo que daí resulte um aumento apreciável da capacidade construtiva. Aplicação pela aplicação, pela aprendizagem, é por si só disciplinador. É mais provável que isto aconteça se o tema em causa for desagradável ao aluno porque então não há qualquer estímulo ( pelo menos assim se supõe ), a não ser o reconhecimento, de uma obrigação ou da importância da disciplina. Esta realidade é expressa de uma forma literal numa frase de um humorista americano: “Não importa o que se ensina a um jovem contando que ele não goste “.

           O correlativo do isolamento do pensamento relativamente a actividades que tenham em vista a consecução de objectivos é o isolamento dos temas a estudar. Nos programas tradicionais de educação, tema significa a matéria a ser estudada. Os vários ramos do estudo são independentes, tendo cada um os seus próprios princípios de organização: História, Álgebra, Geografia e muitos outros. Tendo uma existência própria, as suas relações com o pensamento esgotam-se com aquilo que lhe fornecem. Esta ideia corresponde à prática convencional segundo a qual o programa de trabalho escolar para o dia, mês e anos consecutivos, consiste em temas (objectos de estudo ), todos eles demarcados uns dos outros e cada um deles tido por completo em si mesmo, pelo menos para fins educacionais.

            Mais adiante, existe um capítulo dedicado à análise específica do significado do tema do ensino. Por agora, basta dizer que, em contraste com a teoria tradicional, tudo aquilo que o intelecto estuda representa factos que têm o interesse na sua base. Isto é, tal como alguém “estuda” a sua máquina de escrever, sendo esse estudo uma fase da operação que consiste na utilização da máquina com vista à produção de resultados, o mesmo acontece também relativamente a qualquer facto ou realidade. O facto torna-se objecto de estudo - ou seja, de análise e reflexão - quando se apresenta como um factor a ter em conta no completamento de uma série de acontecimentos em que uma pessoa está envolvida e por cujo resultado ela é afectada. Os números não são objecto de estudo apenas porque constituem já um ramo do ensino chamado Matemática, mas porque representam qualidades e relações do universo no qual as nossas acções se desenrolam; porque são factores de que dependem a realização dos nossos objectivos. Expresso assim de uma maneira tão ampla, parece um pouco abstracto. Traduzindo em detalhes, significa que o acto de aprender ou estudar é artificial e ineficaz se os alunos aceitarem passivamente uma matéria que lhes é ensinada. O estudo será eficaz se o aluno compreender o papel que a realidade numérica que lhe é submetida joga na condução á realização de actividades do seu interesse. Esta conexão de um objecto e de um tema com o desenvolvimento de uma actividade que tenha um determinado objectivo é a primeira e a última palavra de uma verdadeira teoria do interesse no domínio da educação.

 

            3.Alguns aspectos sociais da questão.  

 Ao mesmo tempo que os erros teoréticos de que temos vindo a falar têm a sua expressão na orientação escolar, eles são também um produto das condições sociais. Uma mudança confinada às convicções teóricas dos educadores não afastará as dificuldades, embora possa tornar mais eficazes os esforços desenvolvidos na modificação das condições sociais. As atitudes fundamentais dos indivíduos perante a vida são determinadas pelos objectivos e pelas características próprias das actividades em que eles participam. O ideal de interesse manifesta-se sobretudo na atitude do artista. A arte não é nem meramente interna, nem meramente externa; nem meramente intelectual, nem meramente material. Tal como qualquer forma de actuação, ela acarreta mudanças no mundo exterior. As alterações provocadas por algumas actividades ( aquelas que, por contraste, se podem designar de mecânicas ) são externas; elas apenas modificam as coisas. Não se fazem acompanhar de qualquer recompensa ideal nem de um enriquecimento emocional e intelectual. Outras há que contribuem para a conservação da vida e para o seu aspecto estético. Muitas das nossas actividades sociais actuais - industriais e políticas - podem ser incluídas nestas duas categorias. Nem as pessoas que nelas estão envolvidas, nem aquelas que são directamente afectadas por elas são capazes de sentirem um interesse absoluto e livre no desempenho das suas tarefas. Devido à falta de objectivos daqueles que desenvolvem essas actividades ou devido ao carácter restrito dos objectivos intrínsecos dessas mesmas actividades, o intelecto não se encontra devidamente comprometido. As condições sociais forçam, por vezes, muitas pessoas a recolherem-se em si próprias, refugiando-se num mundo de emoções e fantasias, na medida em que as suas emoções e as suas ideias são egocêntricas, em vez de constituirem métodos de actuação que contribuam para a alteração das condições existentes. A sua vida intelectual é emocional, é como que um desfrute de uma paisagem interior. Até mesmo a prossecução de actividades científicas se pode transformar num lugar de refúgio relativamente ás difíceis condições de vida e não numa retirada temporária para recuperação e esclarecimento tendo em vista comportamentos sociais futuros. A própria palavra arte pode aparecer associada não com a transformação específica de objectos por forma a torná-los mais significativos, mas com impulsos de fantasia excêntrica e com prazeres emocionais. A separação e o desdém mútuo entre o indivíduo “prático” e o indivíduo “teórico” ou culto, o divórcio entre a arte refinada e a arte industrial são expressões desta situação. Daí que interesse e intelecto sejam ou restringidos ou tidos como impertinentes. Compare-se com o que foi dito num capítulo anterior acerca das conotações imerecidas que se vieram prender às concepções de eficácia e de cultura.

           Este estado de coisas subsistirá enquanto a sociedade estiver organizada com base na divisão entre classes trabalhadoras e classes ociosas. O intelecto daqueles que trabalham torna-se endurecido devido à incessante luta que travam com as coisas, ao passo que o daqueles que têm uma vida ociosa, isto é, livre da disciplina imposta pelo trabalho, torna-se exuberante e delicado. Além do mais, a maioria dos seres humanos ainda se vêem confrontados com problemas financeiros. As suas actividades são determinadas em função das contingências e das necessidades; não são a expressão normal das suas capacidades específicas em interacção com as necessidades e os recursos do meio ambiente. As condições económicas vigentes ainda remetem muitas pessoas para um estado de servilismo. Consequentemente, o intelecto daqueles que se encarregam das actividades práticas não é liberal. Em vez de colocar o mundo ao serviço das finalidades humanas, ele encontra-se orientado para a manipulação por outros indivíduos prosseguindo finalidades que não são humanas na medida em que são exclusivas.

            Este estado de coisas torna claros muitos dos aspectos das nossas tradições no campo da educação. Faz-nos compreender melhor o conflito de objectivos patente nos diferentes sectores do sistema escolar: o carácter estritamente utilitário da educação elementar e o carácter estritamente disciplinador ou cultural da educação de nível superior. Explica também a tendência para reservar as matérias intelectuais para o ensino escolástico, académico e técnico-profissional, e explica ainda a convicção corrente de que a educação liberal se opõe ás exigências de uma educação orientada para as actividades quotidianas.

           Mas também ajuda a delimitar o problema específico da educação actual. A escola não pode esquivar-se aos modelos impostos pelas circunstâncias sociais. Porém, deve contribuir, através do tipo de aptidões intelectuais e emocionais que ela ajuda a construir, para o melhoramento dessas condições. E neste campo, as concepções reais de interesse e disciplina assumem especial importância. As pessoas cujos interesses foram alargados e cujo intelecto foi exercitado através do contacto com as coisas e factos em actividades dinâmicas dotadas de objectivos ( quer se trate de actividades recreativas, quer de actividades laborais), serão aquelas que com maior probabilidade se esquivarão às alternativas entre um ensino académico e abstracto e um ensino meramente prático.

            Organizar o sistema educativo por forma a que as tendências operantes naturais possam ser direccionadas para fazer alguma coisa, tendo em atenção que o fazer requer observação, recolha de informação e uso de uma imaginação construtiva, é o que de mais necessário há a fazer para melhorar as condições sociais. A alternativa entre, por um lado, executar tarefas que sejam eficazes sem usar a inteligência e, por outro lado, acumular conhecimentos que se supõem ser um fim em si mesmos, significa que a educação aceita as condições sociais vigentes como algo definitivo e, desse modo, assume a responsabilidade de as perpetuar. Uma reorganização do sistema educacional por forma a que o ensino se desenvolva em conexão com uma  promoção inteligente de actividades plenas de objectivos é uma tarefa demorada. Só pode ser realizada gradualmente, passo a passo. Porém, isto não é razão para, em teoria, se aceitar uma filosofia educacional determinada e, na prática, acomodar-mo-nos a outra. Empreender a tarefa de reorganização de forma destemida e continuá-la de forma persistente, impõe-se como um desafio.

 

            Resumo.  

Interesse e disciplina são aspectos correlativos de qualquer actividade com um objectivo determinado. Interesse significa que a pessoa se identifica com os objectivos que definem a actividade e que fornecem os meios e os obstáculos relativos à sua realização. Qualquer actividade que tenha um objectivo implica uma distinção entre uma fase anterior incompleta e uma fase posterior completa; e implica ainda etapas intermédias. Ter interesse é considerar os factos como integrando uma situação evolutiva em vez de os considerar isoladamente. O percurso que medeia entre um dado estado de coisas incompleto e a desejada efectivação requer um esforço na transformação, exige uma atenção e resistência constantes. Esta atitude corresponde praticamente àquilo que entendemos por vontade. Disciplina ou desenvolvimento da capacidade de atenção permanente é o seu objectivo.

          A importância desta doutrina para a teoria da educação é dupla. Por um lado, permite afastar a noção de que o pensamento e os estados intelectuais são algo de completo em si mesmos, algo para ser aplicado a uma dada matéria já acabada resultando daí o conhecimento. Torna evidente que o intelecto e o envolvimento inteligente e pleno de objectivos num curso de actividades, no qual as coisas também participam, constituem uma e a mesma realidade. Por conseguinte, desenvolver e exercitar o pensamento é providenciar um circunstancialismo que conduz a tais actividades. Por outro lado, permite repudiar a noção de que o objecto de estudo é algo de isolado e independente. Torna claro que a matéria a aprender corresponde a todos os objectos, ideias e princípios que participam - quer como recursos, quer como obstáculos - na prossecução intencional e contínua de um curso de actividades. O desenvolvimento desse curso de actividades, cujas finalidades e condições são notórias, é a unidade que liga aquilo que frequentemente é dividido, ou seja, por um lado, um pensamento autónomo e, por outro lado, um mundo independente de objectos e de factos.

Olga Pombo opombo@fc.ul.pt