Democracia e Educação

John Dewey 

Cap. 11

Experiência e Pensamento

Tradução de 

Helder Silvério

Finalista da Licenciatura em Física, variante Física, 2000/01

Revisão de Olga Pombo

 

A natureza da Experiência.

A natureza da experiência (experience) só pode ser entendida quando se compreende que ela inclui um elemento activo e um elemento passivo, combinados de modo peculiar. No lado activo, experiência é tentar (trying) - sentido que se torna explícito pelo termo conexo experimentar (experiment). No lado passivo, experiência significa sentir (undergoing). Quando experimentamos alguma coisa, agimos de acordo com isso, fazemos alguma coisa com isso; ou seja, sofremos ou sentimos as consequências. Fazemos alguma coisa com o objecto e, em resposta, ele faz-nos alguma coisa: assim se estabelece a combinação peculiar. A conexão destas duas fases da experiência é a medida da utilidade ou valor da experiência. A mera actividade não constitui experiência. É dispersa, centrífuga, dissipativa. A experiência como tentativa envolve mudança. Mas a mudança é transição sem sentido a não ser que esteja conscientemente relacionada com a onda de retorno constituída pelas consequências que dela decorrem. Quando uma actividade é continuada num sentir de consequências, quando a mudança resultante da acção é reflectida numa mudança em nós, o mero fluxo é carregado de sentido. Aprendemos alguma coisa. Não há experiência quando a criança simplesmente põe o seu dedo numa chama. A experiência surge quando o movimento é associado com a dor que sente como consequência disso. Daí em diante, pôr a mão no lume significa uma queimadura. Queimar-se é uma mera mudança física, tal como o arder de um pedaço de madeira, a menos que seja percebido como consequência de uma qualquer outra acção.

Impulsos cegos e caprichosos empurram-nos precipitadamente de uma coisa para outra. Na medida em que isto acontece, tudo fica como se fosse escrito em água. Não há aquele crescimento cumulativo que faz uma experiência em qualquer sentido vital do termo. Por outro lado, acontecem-nos muitas coisas sob a forma de prazer ou dor que não relacionamos com nenhuma actividade anterior, vivida por nós. São puros acidentes tanto quanto nos dizem respeito. Não há um antes ou um depois em tais experiências. Nenhuma retrospectiva nem nenhum olhar para o futuro e, consequentemente, nenhum sentido. Não há nada que nos permita prever o que poderá acontecer a seguir, nenhum ganho de habilidade para nos ajustarmos ao que virá – nenhum controle acrescentado. Apenas por cortesia pode uma tal experiência ser designada experiência. «Aprender a partir de uma experiência» é estabelecer uma conexão para trás e para frente entre o que fazemos com as coisas e o que era suposto sentirmos com essas coisas em termos de prazer e dor. Em tais condições, fazer transforma-se em tentar, experimentar o mundo para descobrir como ele é; sentir torna-se instrução-descoberta da conexão das coisas.

Duas conclusões importantes para a educação podem ser retiradas daqui:

(1) A experiência é, em primeiro lugar, uma questão activa-passiva; não é cognitiva, em primeira instância.

Mas (2) a medida do valor de uma experiência reside na percepção de relações ou continuidades a que conduz. O que inclui cognição na medida em que é cumulativa em relação a alguma coisa ou tem um sentido. Nas escolas, os que estão a ser instruídos são de forma demasiado frequente considerados como estando a adquirir conhecimento enquanto espectadores teóricos, mentes que se apropriam de conhecimento por energia directa da inteligência. A própria palavra aluno quase veio a adquirir significado de alguém que não está a ter experiências frutíferas, mas a absorver directamente o conhecimento. Aquilo que chamamos mente ou consciência é separado dos órgãos físicos da actividade. A mente é então pensada como puramente intelectual e cognitiva, enquanto que a actividade é vista como um factor físico irrelevante e intrusivo. Rompeu-se a íntima união da actividade com o sentir das suas consequências que conduzem ao reconhecimento do seu sentido. Em sua vez ficámos com dois fragmentos: pura acção corporal por um lado, e por outro sentido recolhido directamente por uma actividade “espiritual”.

Seria impossível determinar adequadamente os efeitos maléficos que resultam deste dualismo da mente e do corpo, e menos ainda exagerá-los. No entanto, podemos enumerar alguns dos seus efeitos mais marcantes.

(A) A actividade corporal torna-se parcialmente um intruso. Como pensamos que não tem nada a ver com a pensamento, torna-se uma distracção, um mal a ser combatido. Mas, de facto, o aluno tem um corpo e trá-lo para a escola juntamente com a mente. E o corpo, que é necessariamente uma fonte de energia, tem que fazer alguma coisa. Mas, uma vez que as suas actividades não são usadas numa ocupação com coisas que produzam resultados significativos, têm estas que ser refreadas. Elas afastam o aluno das lições com que a sua «mente» era suposta estar ocupada; são fontes de prejuízo. A fonte principal do «problema de disciplina» nas escolas consiste no facto de o professor ter muitas que despender vezes uma grande parte do seu tempo na supressão de actividades que desviam a mente daquilo que lhe é próprio. Premeia-se a quietude; o silêncio, a rígida uniformidade da postura e do movimento; procura-se como que uma simulação maquinal de atitudes do interesse intelectual. A tarefa do professor é manter os alunos dentro deste quadro de exigências e punir os casos de inevitáveis desvios que possam acontecer.

A tensão nervosa e o cansaço que daqui decorrem tanto no professor como no aluno são uma consequência inevitável desta situação anómala em que a actividade corporal está divorciada da percepção do sentido. Uma clamorosa indiferença alterna com explosões de tensão. O corpo reprimido, sem canais organizados e frutíferos de actividade, irrompe, sabendo-se lá porquê e como, numa agitação sem sentido, ou agita-se, igualmente sem sentido – duas actividades muito diferentes do normal brincar das crianças. As crianças fisicamente activas, tornam-se inquietas e desregradas. As mais calmas, as chamadas mais conscienciosas, gastam a energia que têm na tarefa negativa de manter controlados os seus instintos e tendências activas, em vez de adoptarem uma atitude positiva de planificação construtiva e executiva. Deste modo, por exemplo, são educadas, não para a responsabilidade em relação ao uso gracioso e significativo das suas forças corporais, mas para um dever forçado que não lhes dá espaço para livre expressão. Convém reconhecer seriamente que a causa principal dos sucessos notáveis da educação Grega se encontra exactamente no facto de que estes nunca se deixaram enganar com a perspectiva errónea de tentar separar corpo e mente.

(B) Mesmo em relação às lições que têm que ser aprendidas pela aplicação da 'mente', têm de ser usadas algumas actividades corporais. Os sentidos – especialmente o olho e o ouvido – têm de ser empregues para captar o que está no livro, no mapa, no quadro e naquilo que o professor diz. Os lábios, os órgãos vocais e as mãos, têm que ser usadas para reproduzir na fala e na escrita o que foi armazenado. Os sentidos são então vistos como uma espécie de misteriosa conduta através da qual a informação é conduzida do mundo exterior para a mente, portas e avenidas do conhecimento. Manter os olhos fixos sobre o livro e o ouvido aberto para as palavras do professor torna-se uma fonte misteriosa de graça intelectual. Mais, leitura, escrita e cálculo - importantes artes escolares – supõem treino muscular ou motor. Os músculos do olho, da mão e dos órgãos vocais têm consequentemente que ser treinados para actuar como tubos que transportam o conhecimento da mente para a acção externa. Pois é um facto que o uso repetido de músculos de uma mesma forma estabelece neles uma tendência à repetição automática.

O resultado óbvio é um uso mecânico de actividades corporais que (apesar do carácter basicamente obstrutivo e interferente do corpo na acção mental) têm que ser mais ou menos utilizados. Pois os sentidos e músculos são usados, não como participantes orgânicos numa experiência instrutiva, mas como entradas e saídas externas da mente. Antes de a criança ir para a escola, aprende com as suas mãos, olhos e ouvido, porque estes são órgãos do processo de fazer coisas das quais o sentido resulta. Uma criança que brinca com um papagaio tem que manter os olhos dirigidos para o papagaio e tem que sentir as diferentes pressões da corda na sua mão. Os seus sentidos são avenidas de conhecimento, não porque factos externos estejam de algum modo a ser "conduzidos” ao cérebro, mas porque são usados para fazer alguma coisa com uma finalidade. As qualidades de ver e tocar nas coisas têm interferência naquilo que é feito e são percebidas com atenção. Têm sentido. Mas quando se espera que os alunos usem os olhos para reconhecer a forma das palavras, independentemente do seu sentido, com o fim de as reproduzir na escrita ou na leitura, o treino daí resultante é simplesmente de órgãos sensoriais e músculos isolados. É tal a separação do acto face ao seu objectivo que o acto se torna mecânico. É habitual que os professores procurem estimular as crianças a ler com expressão, de forma a tornar explícito o sentido. Mas, se as crianças primeiro aprenderam uma técnica sensório-motora de leitura - a habilidade para identificar formas e reproduzir os sons que representam – por métodos que não chamaram a atenção para o sentido, estabeleceu-se um hábito mecânico que, subsequentemente, torna difícil uma leitura com inteligência. Os órgãos vocais foram treinados para funcionar automaticamente de forma isolada e o sentido não lhes pode ser ligado apenas com base na vontade. Desenhar, cantar e escrever podem ser ensinados da mesma forma mecânica, pois, repetimos, qualquer caminho que estreita a actividade corporal de modo a separar o corpo da mente - isto é, do reconhecimento do sentido - é mecânico. A matemática, mesmo nos seus níveis mais elevados, quando põe uma ênfase indevida na técnica de cálculo e a ciência, quando os exercícios laboratoriais são dados de forma isolada, sofrem do mesmo mal.

(c) Na perspectiva intelectual a separação entre a “mente” e uma ocupação directa com coisas dá ênfase às “coisas” em detrimento das “relações” ou conexões. É muito usual separar a percepção e mesmo as ideias dos juízos. Pensa-se que estes aparecem depois daquelas de modo a compará-las. Alega-se que a mente percebe coisas, independentemente das suas relações, que forma ideias separadamente das suas conexões – do que vem primeiro e do que vem depois. O juízo ou pensamento é então chamado a combinar os itens separados de “conhecimento" de modo a que a sua semelhança ou conexão causal seja reconhecida. De facto, qualquer percepção e qualquer ideia tem o sentido de um transporte, uso e causa de uma coisa. Não conhecemos verdadeiramente uma cadeira nem podemos formar uma ideia dela por fazermos um inventário ou enumerarmos isoladamente as suas qualidades, mas apenas quando pomos estas qualidades em conexão com alguma outra coisa – o objecto que faz dela uma cadeira e não uma mesa; as suas diferenças em relação à espécie de cadeira a que estamos acostumados, um «período» que representa, etc. Uma carroça não é conhecida pelo facto de termos enumerado todas as suas partes. É uma característica conexão das suas partes que a transforma numa carroça. E estas conexões não têm simplesmente o carácter de uma mera justaposição física, antes envolvem a ligação com os animais que a puxam, os objectos que carregamos nela, etc. O juízo é empregue na percepção. De outro modo, a percepção seria a mera excitação sensorial ou o reconhecimento do resultado de um juízo anterior, como no caso de objectos familiares.

As palavras, âncoras das ideias, são no entanto facilmente tomadas por ideias. E precisamente na medida em que a actividade mental é separada do relacionamento activo com o mundo, do fazer alguma coisa e do conectar do fazer com o que é sentido, as palavras e os símbolos tomam o lugar das ideias. A substituição é mais subtil porque algum sentido é reconhecido. Mas somos facilmente treinados para nos contentarmos com um mínimo de sentido e para não reconhecermos quão restrita é a nossa percepção das relações que confere significado. Estamos tão habituados a uma forma de pseudo-ideia, uma semi percepção, que não nos damos conta de que modo a nossa acção mental está meio morta e de que modo as nossas observações e ideias seriam muito mais inteligentes e abrangentes se tivessem sido formadas na situação de uma experiência vital que nos exigiria o recurso ao juízo; à procura das conexões com a coisa de que nos ocupamos.

Não há diferentes opiniões em relação à teoria sobre esta matéria. Todas as autoridades concordam que o discernimento de relações é uma tarefa autenticamente intelectual e, consequentemente, um assunto de educação. O erro surge quando supomos que as relações se podem tornar perceptíveis sem experiência - sem aquele conjunto constituído pelo tentar e pelo sentir de que falámos. Parte-se do pressuposto de que a "mente” é capaz de as agarrar desde que lhes dê atenção e que esta atenção pode ser prestada com base na vontade, independentemente da situação. Daí um dilúvio de meias observações, de ideias verbais e «conhecimento» não assimilado que aflige o mundo. Cem gramas de experiência são melhor que uma tonelada de teoria simplesmente porque é apenas na experiência que qualquer teoria ganha sentido vital e é verificável. Uma experiência, mesmo uma experiência muito humilde, é capaz de gerar e sustentar qualquer quantidade de teoria (ou conteúdo intelectual), mas uma teoria desligada da experiência não pode ser definitivamente aceite mesmo como teoria. Ela experiência tende então a tornar-se uma mera fórmula verbal, uma série de palavras-chave usadas para transformar o pensamento, ou a genuína teorização, desnecessárias e impossíveis. Em virtude da nossa educação usamos palavras, pensando que são ideias, para colocar questões, questões, estas que na realidade, se tornam simplesmente um obscurecimento da percepção e nos impedem+ de ver as dificuldades numa perspectiva mais ampla.

 

2. Reflexão sobre a Experiência.

O pensamento ou a reflexão, como já vimos de forma virtual virtual se não explícita, são o discernimento sobre a relação entre o que tentamos fazer e o que acontece como consequência disso. Nenhuma experiência com sentido é possível sem alguns elementos de pensamento. Mas podemos opor dois tipos de experiência segundo o grau de reflexão que nelas encontramos. Todas as nossas experiências têm em si uma fase de "cortar e tentar" – aquilo a que os psicólogos chamam o método de tentativa e erro. Fazemos alguma coisa, e quando isso falha, fazemos outra coisa e continuamos a tentar até encontrar alguma coisa que funcione. Então, adoptamos esse método como a regra de referência base nos procedimentos subsequentes. Algumas experiências têm pouco mais do que este processo de tentar e falhar ou conseguir. Vemos que uma certa forma de agir e uma certa consequência estão relacionadas mas não vemos como estão relacionadas. Não vemos os detalhes da conexão. Faltam as ligações. O nosso discernimento é muito rudimentar. Noutros casos levamos mais longe a nossa observação. Analisamos para ver exactamente o que articula causa e efeito, actividade e consequência. Esta extensão da compreensão torna a nossa previsão mais apurada e abrangente. A acção que se limita simplesmente ao método de tentativa e erro fica à mercê das circunstâncias. Estas podem mudar tanto que o acto realizado não funciona como esperávamos. Mas, se soubermos com detalhe de que depende o resultado, podemos verificar se as condições necessárias estão presentes. O método aumenta o nosso controle prático. Se algumas das condições não estavam presentes e soubermos quais os antecedentes necessários para obter um determinado efeito, podemos actuar de modo a proporcioná-las. Se essas condições são de modo a produzir efeitos não desejáveis, podemos eliminar algumas das causas supérfluas e economizar esforços.

O pensamento implicado na experiência de tentativa e erro torna-se mais explícito na descoberta das conexões detalhadas das nossas actividades e do que acontece como consequência delas. A sua quantidade aumenta de tal modo que o seu valor proporcional se torna muito diferente. Assim, a qualidade da experiência muda. A mudança é tão significativa que podemos classificar este tipo de experiência como experiência reflexiva - isto é, reflexiva por excelência. O cultivo deliberado desta fase do pensamento constitui o pensamento como uma experiência distinta. Por outras palavras, o pensamento é o empenho intencional para descobrir conexões específicas entre alguma coisa que fazemos e as consequências que daí resultam de modo que as duas se tornem contínuas. O seu isolamento e, consequentemente, o seu aparecimento conjunto puramente arbitrário, é cancelado. Em seu lugar, aparece uma situação unificada de desenvolvimento. A ocorrência é agora compreendida, explicada. Como costumamos dizer, é razoável que a coisa deva acontecer como de facto acontece.

O pensamento é por isso equivalente a um captar explícito do elemento inteligente na nossa experiência. Ele torna possível o agir com um fim em vista. É a condição que nos permite ter objectivos. Logo que uma criança começa a esperar, começa a usar alguma coisa que funciona como sinal de uma outra coisa que se segue. De forma simples, julga. Toma uma coisa como evidência de outra coisa diferente e assim reconhece a relação existente entre as duas. Qualquer futuro desenvolvimento, por mais elaborado que possa ser, é apenas um alargamento e um refinamento deste simples acto de inferência. Tudo o que o homem mais sábio pode fazer é observar o que acontece numa escala mais larga e mais minuciosa e seleccionar mais cuidadosamente, naquilo que observa, os factores que apontam para alguma coisa que irá ocorrer. Mais uma vez, o reverso da acção pensada é o comportamento rotineiro e caprichoso. O primeiro aceita o que tem sido habitual como medida completa da possibilidade e não toma em consideração as conexões das coisas particulares realizadas. O segundo, toma o acto momentâneo como medida de valor e ignora as conexões da nossa acção pessoal com a energia do meio envolvente. O caprichoso diz "as coisas são exactamente como eu gostava que acontecessem neste instante”. Por seu lado, o rotineiro diz “deixarei as coisas continuar como as encontrei no passado”. Ambos recusam reconhecer a responsabilidade pelas consequências futuras que resultam da acção presente. A reflexão é a aceitação dessa responsabilidade.

O ponto de partida de qualquer processo de pensamento é que alguma coisa aconteça, alguma coisa que, tal como está, está incompleta ou não totalmente realizada. O seu objectivo, o seu sentido está literalmente naquilo que irá ser, naquilo em que se irá transformar. Enquanto isto está a ser escrito, o mundo está a ser penetrado por forças de exércitos inimigos. Para um participante activo na guerra, é claro que a questão principal é o aspecto momentâneo de acontecer isto ou aquilo. Pelo menos por algum tempo, o participante activo na guerra identifica-se com essa realidade. O seu destino depende do curso que as coisas vão tomar. Mas mesmo para um espectador num país neutral, o significado de cada movimento feito, de cada avanço aqui e retirada acolá, está naquilo que prognostica. Pensar nas notícias que recebemos significa tentar ver o que podem indicar como resultado provável ou possível. Encher as nossas cabeças, como um álbum, com este ou aquele assunto, enquanto coisa completamente acabada e concluída, não é pensar. É transformarmo-nos numa peça de um aparelho de registos. Considerar o aparecimento das ocorrências daquilo que pode ser mas não é, isso sim, é pensar. E a experiência reflexiva também não será de tipo diferente se substituirmos a distância no tempo pela separação no espaço. Imagine-se que a guerra terminou e que um Historiador futuro faz o seu balanço. O episódio é, por definição, passado. Mas ele só pode dar uma visão reflexiva da guerra se preservar a sequência temporal. O significado de cada acontecimento, à medida em que o Historiador dele se ocupa, assenta naquilo que for o futuro desse acontecimento, ainda que não o do Historiador. Tomar o acontecimento em si mesmo, como algo completo, é vê-lo de forma irreflectida.

A reflexão também implica a preocupação com o assunto - uma certa identificação por simpatia com o nosso próprio destino, com o desenrolar dos acontecimentos. Na guerra, para o general ou para o soldado comum, ou para um cidadão de uma das nações envolvidas na guerra, o estímulo para o pensar é directo e urgente. Para os habitantes de países neutrais, é indirecto e depende em grande medida da imaginação. Mas o real partidarismo da natureza humana é prova da intensidade da tendência para nos identificarmos com um possível desenrolar dos acontecimentos e para rejeitarmos o outro como algo de estranho. Se não podemos tomar um dos lados na acção concreta, e contribuir com algum do nosso fraco peso para ajudar a determinar o resultado final, tomamos partido emocional e imaginativamente. Desejamos este ou aquele resultado. Se alguém for completamente indiferente ao resultado final não acompanha os acontecimentos nem pensa acerca do que está a acontecer. É a partir desta dependência do acto de pensar relativamente ao sentir que se partilham as consequências do que está a acontecer que decorre um dos principais paradoxos do pensamento. Nascido na parcialidade, para realizar as suas tarefas o pensamento tem que alcançar alguma real imparcialidade. O general que permite que as suas esperanças e desejos afectem as suas observações e interpretações sobre a situação existente seguramente cometerá um erro de cálculo. Embora os desejos e os receios possam ser o motivo principal para um acompanhamento sério e profundo da guerra por parte de um observador de um país neutral, também este pensará de maneira menos eficaz na medida em que as suas preferências alterem o conteúdo das suas observações e raciocínios. Não existe, no entanto, incompatibilidade entre o facto de a ocasião em que se faz a reflexão assentar numa participação pessoal no que está a acontecer e o facto de o valor da reflexão assentar em nos mantermos afastados dos dados. A dificuldade quase intransponível de conseguir atingir este distanciamento é prova de que o pensamento origina situações nas quais o rumo do pensamento faz realmente parte do rumo dos acontecimentos e está destinado a influenciar o resultado. É apenas gradualmente, e com um alargamento da área de visão, mediante o desenvolvimento de simpatias sociais, que o pensamento se poderá desenvolver de forma a abranger aquilo que está para além dos nossos interesses directos: facto este de grande relevância para a educação.

Dizer que o pensamento ocorre em referência a situações que estão ainda a continuar e são incompletas, é dizer que o pensamento ocorre quando as coisas são incertas, duvidosas ou problemáticas. Apenas aquilo que é acabado, completo, é totalmente assegurado. Onde há reflexão há suspensão. O objecto do pensamento é ajudar a alcançar a conclusão, a projectar o final possível com base naquilo que já é dado. Outros factos acerca do pensamento acompanham esta característica. Uma vez que a situação em que o pensamento ocorre é duvidosa, o pensamento é um processo de procura, de observação das coisas, de investigação. Adquirir é sempre secundário, sempre um aspecto instrumental para o acto de interrogação. É procurar, pesquisar alguma coisa que não está à mão. Por vezes falamos como se a “investigação original” fosse uma prerrogativa peculiar do cientista ou pelo menos de estudantes mais avançados. Mas todo o pensamento é investigação e toda a investigação é original para aquele que a realiza, mesmo se qualquer outra pessoa no mundo tem já a certeza daquilo que estamos ainda a procurar.

Daqui também se segue que todo o pensamento envolve riscos. A certeza não pode ser dada de antemão. A invasão do desconhecido é por natureza uma aventura. Não podemos ter certeza de antemão. As conclusões a que o pensamento chega, até serem confirmadas por um acontecimento, têm, consequentemente, de facto mais ou menos a natureza de tentativa ou hipótese. A afirmação dogmática final está fora de questão. De  forma muito acertada, os Gregos levantaram a questão: Como podemos aprender? Ou cada um de nós já sabe o que procura, ou não sabe. Em nenhum dos casos é possível aprender. No primeiro caso, porque já sabemos; no segundo, porque não sabemos o que devemos procurar, e se, por sorte, o encontrássemos, não poderíamos dizer que era aquilo que procurávamos. O dilema não fornece nenhuma previsão em relação ao que chegaremos a saber, a aprender, ainda assume quer um completo conhecimento quer uma total ignorância. No entanto, existe uma zona intermédia de investigação, de pensamento. A possibilidade de conclusões hipotéticas, de resultados provisórios, é um facto que o dilema grego não contemplava. A perplexidade da situação sugere algumas saídas. Tentámos estes caminhos e, ou conseguimos sair, caso no qual sabemos que encontrámos o que andávamos à procura, ou a situação torna-se mais obscura e mais confusa – caso em que sabemos que somos ainda ignorantes. Tentativa significa procura de saídas, estabelecimento, se bem que em termos provisório, de um caminho a percorrer. Tomado como tal, o argumento grego constitui uma bonita peça de lógica formal. Mas também é verdade que, enquanto o ser humano manteve uma distinção forte entre conhecimento e ignorância, a ciência apenas conseguiu avançar muito lentamente e de forma acidental. O avanço sistemático na invenção e na descoberta começou quando o ser humano reconheceu que poderia utilizar a dúvida para fins de investigação ao explorar conjecturas como guia de acção na experimentação, cujo desenvolvimento poderia confirmar, refutar ou modificar a conjectura proposta. Enquanto que os gregos fizeram com que o conhecimento fosse mais do que a aprendizagem, a ciência moderna tomou o conhecimento adquirido apenas como forma para aprender, para descobrir.

Voltemos à nossa demonstração. O comandante geral não pode basear as suas acções nem numa certeza absoluta nem numa ignorância total. Tem uma certa quantidade de informação disponível na qual, assumimos isso, terá razoável grau de confiança. Daí infere então certos movimentos prospectivos dando sentido aos factos reais da situação concreta. A sua inferência é mais ou menos dúbia e hipotética. Mas ele actua com base nela. Desenvolve um plano de acção, um método para lidar com a situação. As consequências que vão derivar directamente do seu modo de agir é que vão testar e revelar a veracidade das suas reflexões. O que ele já sabe funciona e tem valor para o que vai aprender. Mas será que este cálculo tem aplicação no caso de alguém que, num país neutral, segue da melhor maneira e com atenção o desenrolar dos acontecimentos? Formalmente sim, mas não no decurso dos acontecimentos. É evidente que as suposições sobre o futuro para que apontam os factos actuais, suposições pelas quais o general tenta encontrar sentido para uma quantidade de dados não relacionados, não podem servir de base para um método a aplicar no campo da batalha. Este não é o seu problema. Mas, na medida em que está em actividade de pensamento, e não de forma meramente passiva a seguir o curso dos acontecimentos, as suas inferências provisórias terão efeito num método de procedimento apropriado para a sua situação. Antecipará certos movimentos futuros e estará alerta para verificar se eles acontecem ou não. Se estiver intelectualmente empenhado ou em actividade de pensamento, será activo no desenrolar dos acontecimentos. Formulará passos que, embora não afectem a campanha, modificam em certa medida as suas acções consequentes. De outro modo, o seu posterior “Eu bem te tinha dito” não terá nenhuma qualidade intelectual, não serve para determinar nenhum teste ou verificação do pensamento anterior, mas apenas uma coincidência que supõe uma satisfação emocional - e inclui um grande factor de decepção.

O caso é comparável com o de um astrónomo que, a partir de determinados dados, foi induzido a prever (inferir) um futuro eclipse. Por mais elevada que seja a probabilidade matemática, a inferência é hipotética – um caso de probabilidade[1]. A hipótese sobre a previsão dos dados e da posição do eclipse antecipado torna-se a base para um método de conduta futura. Preparam-se aparelhos, possivelmente organiza-se uma expedição a um lugar qualquer do globo. De qualquer modo, tomam-se certos passos activos que, de facto, alteram certas condições físicas. E, apesar de tais passos e das consequentes mudanças da situação, não se completa qualquer acto de pensamento. Este fica suspenso. O conhecimento, o conhecimento já adquirido, controla o pensamento e fá-lo frutífero.

Tudo isso para falar das características da experiência reflexiva. Elas são (i) perplexidade, confusão, dúvida, devido ao facto de ela estar implicada numa situação incompleta cujo carácter real ainda não está determinado; (ii) antecipação conjuntural - uma tentativa de interpretação dos dados disponíveis aos quais se atribui a tendência para produzir certas consequências; (iii) análise cuidadosa (exame, inspecção, exploração, análise) de todas as considerações que permitirão definir e clarificar o problema em questão; (iv) elaboração consequente da hipótese avançada para a tornar mais precisa e mais consistente, para enquadrar, uma gama mais larga de factos; (v) tomar posição em relação à hipótese projectada como plano de acção que é aplicado à situação presente do assunto, fazer alguma coisa extra para produzir o resultado antecipado, e assim testar a hipótese.

É o alargamento e a acuidade dos passos três e quatro que marcam uma experiência reflexiva distinta e a partir da qual se planeia a tentativa e erro. Esses passos transformam o próprio pensamento numa experiência. No entanto, nunca passamos totalmente de uma situação de tentativa e erro. O nosso pensamento mais elaborado e racionalmente mais consistente tem de ser posto à prova do mundo e, assim, experimentado. E já que nunca se podem ter em conta todas as conexões, também não se podem nunca antecipar, com perfeita segurança, todas as consequências. Contudo, a análise atenta das condições é tão cuidadosa e a previsão dos resultados tão controlada que temos o direito de distinguir a experiência reflexiva de formas mais grosseiras da acção de tentativa e erro.


Resumo

Ao determinar o lugar do pensamento na experiência começamos por descobrir que a experiência envolve a conexão do fazer ou do tentar com alguma coisa que, em consequência disso, é sentida. A separação entre a fase do fazer activo e a fase do sentir passivo destroi o sentido vital de uma experiência. O pensamento é a constituição de conexões precisas e deliberadas entre o que se faz e as suas consequências. O pensamento apercebe-se, não apenas que essas fases são conexas, mas também dos detalhes da conexão. Ele estabelece ligações explícitas de conexão na forma de relações. O estímulo para o pensamento tem por base o desejo de determinar o sentido de um acto realizado ou a realizar. Então, antecipamos consequências. Isto implica que a situação tal como se apresenta, é, quer de facto quer para nós, incompleta e portanto indeterminada. A projecção de consequências significa a proposta ou o avançar de uma solução. Para aperfeiçoar esta hipótese, as condições existentes têm de ser cuidadosamente verificadas e as implicações das hipótese desenvolvidas - operação a que chamamos raciocínio. Então, a solução sugerida - a ideia ou teoria – tem que ser testada por intermédio de acção. Se produz determinadas consequências, determinadas mudanças no mundo, então, ela é aceite como válida. Caso contrário, é modificada e é feita uma outra tentativa. O pensamento inclui todos estes passos: o sentido do problema, a observação de condições, a formação e elaboração racional de uma sugestão de conclusão e a actividade experimental de testagem. Apesar de todo o pensamento ter como efeito o conhecimento, o valor do conhecimento é em última análise, subordinado ao seu uso no pensamento. Não vivemos num mundo acabado e definitivo, mas num mundo que está em movimento e no qual a nossa tarefa principal é prospectiva, mundo no qual a retrospecção - e todo o conhecimento enquanto forma distinta de pensamento é retrospectivo - porque tem valor na solidez, na segurança e na fertilidade, não favorece o nosso trabalho com o futuro.

 

 


[1]É extremamente importante para a prática da ciência que os homens possam calcular em muitos casos o grau de probabilidade e a quantidade de prováveis erros envolvidos, pois isso muda as características da situação descrita. Refina essas características.

Olga Pombo opombo@fc.ul.pt