Democracia e Educação 

John Dewey

Cap. 2

A Educação como uma Função Social

Tradução de

Rita Bastos

Finalista da Licenciatura em Matemática, 1995/96

 

 

1. A Natureza e o Significado de Meio

            Vimos que uma comunidade ou grupo social se mantém por um processo con­tínuo de auto renovação, e que é o desenvolvimento educacional dos membros imaturos do grupo que dá lugar a esta renovação. É através de várias acções, invo­lun­tárias ou intencionais, que uma sociedade transforma seres ignorantes e aparen­temente estranhos em firmes guardiões dos seus próprios recursos e ideais. Nesse sentido, a educação é um processo que consiste em adoptar, cuidar, cultivar. Todas estas palavras significam que a educação implica atenção às condições de cresci­mento. Outros termos, como fazer desabrochar, criar, fazer crescer, também são utili­zados - exprimem a diferença de nível do que se pretende abranger com a edu­ca­ção. O significado etimológico da palavra educação é apenas o processo de con­du­zir, guiar ou criar. Quando pensamos no produto desse processo, falamos em edu­cação como uma actividade de modelar, formar, moldar - isto é, ajustar à forma padrão da actividade social. Neste capítulo vamos referir os aspectos gerais do modo como um grupo social cria e conduz os seus membros imaturos até à sua for­ma social própria.

            Uma vez que o que é preciso é uma transformação na qualidade da expe­riência até que ele partilhe os interesses, propósitos e ideias correntes do grupo social, o problema não se reduz, evidentemente, ao da mera formação física. As coisas podem ser transportadas no espaço, fisicamente; podem ser materialmente conduzidas. As crenças e ambições não podem ser fisicamente extraídas ou inse­ridas. Então, como é que elas são transmitidas? Dada a impossibilidade de contá­gio directo ou imposição literal, o nosso problema consiste em descobrir o método pelo qual os jovens assimilam os pontos de vista dos mais velhos, ou os mais velhos con­se­guem fazer com que os jovens pensem do mesmo modo que eles.

            A resposta, expressa numa forma geral, é: através da acção do meio que pro­voca certas reacções. As crenças pretendidas não podem ser aparafusadas; as atitudes desejadas não podem ser coladas. Mas o meio específico em que cada indi­víduo existe leva-o a ver e sentir uma coisa em detrimento de outra; leva-o a ter certos planos com vista a poder agir eficazmente com outros; fortalece algumas crenças e enfraquece outras, como uma condição para conquistar a aprovação dos outros. Assim, vai construindo gradualmente nele um certo sistema de compor­tamentos, uma certa aptidão para agir. As palavras “ambiente” e “meio” designam algo mais do que o espaço físico que rodeia o indivíduo. Elas designam a continuidade específica entre as circunstâncias que o envolvem e as suas próprias tendências para agir. Entre um ser inanimado e o que o rodeia há, com certeza, uma continuidade; mas as circunstâncias que o rodeiam não constituem, a não ser em metáforas, o seu meio. Porque um ser inanimado não se interessa pelas in­fluências que o afectam. Por outro lado, algumas coisas que estão afastadas, no espaço ou no tempo, de um ser vivo, e em especial de um ser humano, podem fazer parte do seu meio, mais do que algumas das coisas que lhe estão próximas. O meio genuíno de um homem são as coisas com as quais ele muda. Assim, as actividades do astrónomo mudam com as estrelas que observa ou acerca das quais faz cálculos. Das coisas que o rodeiam, o seu telescópio é o seu meio mais che­gado. O meio de um arqueólogo, como tal, consiste na época remota da vida humana a que ele se dedica, e as relíquias, inscrições, etc., através das quais ele se rela­ciona com esse período.

            Em resumo, o meio consiste nas condições que promovem ou impedem, es­timulam ou inibem, as actividades características de um ser vivo. A água é o meio de um peixe porque ela é necessária às suas actividades - à sua vida. O pólo norte é um elemento significativo do meio de um explorador artico, quer ele con­siga alcan­çá-lo ou não, porque define as suas actividades, faz delas o que elas têm de específico. É exactamente porque vida não significa existência meramente pas­siva (supondo que tal coisa existe), mas sim um modo de agir, que meio signifi­ca tudo o que faz parte dessa actividade como condição que a promove ou a frustra.

2. O Meio Social

Um ser cujas actividades estão associadas a outros seres tem um meio social. O que ele faz e o que ele pode fazer dependem das expectativas, exigências, aprovações e condenações dos outros. Um ser relacionado com outros seres não pode desenvolver as suas actividades próprias sem ter em conta as actividades dos outros. Porque elas são as condições indispensáveis à realização das suas ten­dências. Quando ele se move faz mexer os outros e reciprocamente. Conceber como possível definir as actividades de um indivíduo em termos das suas acções isoladamente, é o mesmo que tentar imaginar um homem de negócios a fazer negó­cios de compra e venda completamente sozinho. O dono de uma fábrica, que faz planos na privacidade do seu gabinete, está, na verdade, a ter uma actividade mais orientada socialmente do que quando está a comprar matéria prima ou a vender o seu produto final. Pensamentos ou sentimentos que estão relacionados com acções associadas a outros são formas de comportamento tão sociais como a maior parte dos actos manifestamente cooperativos ou hostis.

            Como é que o meio social educa os seus membros imaturos é o que temos mais especialmente que mostrar. Não é muito difícil ver como é que ele molda os hábitos externos de acção. Até os cães e os cavalos modificam as suas acções quando se associam a seres humanos; eles adquirem hábitos diferentes porque os seres humanos se interessam pelo que eles fazem. Os seres humanos controlam os animais através do controle dos estímulos naturais que os influenciam; por ou­tras palavras, criando um determinado meio. A comida, os freios e as rédeas, os barulhos, as carroças, são usados para dirigir o modo como as respostas naturais ou instintivas dos cavalos ocorrem. Procedendo sistematicamente de forma a pro­vo­car certas acções, criam-se hábitos que funcionam com a mesma uniformidade que com o estímulo original. Se um rato é colocado num labirinto e encontra comida ao dar um certo número de voltas numa determinada sequência, a sua actividade é modificada gradualmente até ele fazer esse percurso habitualmente, e não outro, quando sente fome.

            As acções humanas são modificadas duma forma análoga. Uma criança que se queimou tem medo do fogo; se um pai fizer com que uma criança se queime sempre que tocar num determinado brinquedo, a criança aprende a evitar esse brinquedo tão automaticamente como evita o fogo. Até agora, contudo, temos es­tado a tratar do que pode ser designado por treinamento, para se distinguir de ensino educativo. As mudanças que considerámos dão-se em acções exteriores e não em tendências de comportamento mental ou emocional. No entanto, a distin­ção não é nítida. Com o tempo a criança pode, provavelmente, criar uma aversão violenta, não só relativamente àquele brinquedo em particular, mas a todos os que se lhe assemelhem. A aversão pode até persistir mesmo quando ela já se tiver esquecido das queimaduras originais; mais tarde pode até inventar uma explicação para essa aversão aparentemente irracional. Nalguns casos, a alteração do hábito externo de acção por alteração do meio, de modo a afectar o estímulo para a ac­ção, altera também a disposição mental relacionada com a acção. No entanto, isso nem sempre acontece; uma pessoa treinada para se esquivar a um soco amea­çador, desvia-se automaticamente, sem que isso corresponda a um pensamento ou a uma emoção. Temos que encontrar, portanto, algumas distinções entre treina­mento e educação.

            Uma pista para isso pode ser encontrada no facto de que o cavalo não parti­lha, realmente, a utilização social da sua acção. É alguém que utiliza o cavalo para assegurar um resultado vantajoso, que o torna também vantajoso para o cavalo que desempenha a acção - dando-lhe comida, etc. Mas, presumivelmente, o cavalo não adquire novos interesses. Mantém-se interessado na comida e não no serviço que está a prestar. Ele não é um parceiro numa actividade partilhada. Se ele se tornasse num parceiro, teria, ao envolver-se nessa actividade conjunta, os mesmos interesses que os outros na sua realização. Partilharia as suas ideias e as suas emoções.

            Actualmente, em muitos casos - em demasiados casos - a actividade do ser humano imaturo é simplesmente regulada de modo a assegurar hábitos que são úteis. Ele é mais treinado como um animal do que educado como um ser humano. Os seus instintos permanecem associados aos objectos originais de dor ou prazer. Mas para se sentir feliz ou evitar a frustração ele tem que agir de modo a agradar aos outros. Noutros casos, ele partilha realmente, ou participa da actividade co­mum. Neste caso, o seu impulso original é modificado. Não se limita a agir de modo concordante com as acções dos outros mas, ao agir assim, as mesmas idei­as e emoções que animam os outros são despertadas nele. Imaginemos uma tribo guerreira. Os sucessos em que se empenha, as conquistas que valoriza, estão relacionadas com guerras e vitórias. A presença deste meio incita a exibições beli­cosas num rapaz, primeiro em jogos, depois de facto, quando já é suficiente­mente forte. Se luta, conquista aprovação e promoção; Se se contém, é desprezado, ridi­cu­larizado, imerecedor de qualquer reconhecimento favorável. Não admira que as suas tendências e emoções beligerantes originais se fortaleçam à custa dos outros e que as suas ideias se voltem para os factos relacionados com a guerra. Só dessa ma­neira se pode transformar inteiramente num membro reconhecido pelo seu gru­po. Assim, os seus hábitos mentais vão-se gradualmente assemelhando aos do seu grupo.

            Se formularmos o princípio implícito neste exemplo, apercebemo-nos que o meio social nem inculca directamente certos desejos e ideias, nem sequer estabe­lece certos hábitos de acções puramente musculares, como pestanejar ou evitar um soco “instintivamente”. O primeiro passo é estabelecer as condições que esti­mulam certos modos de agir visíveis e tangíveis. O último passo é fazer do indiví­duo um participante ou parceiro da actividade social, de modo que ele sinta como seus o sucesso ou o falhanço dessa actividade. Logo que interiorizar a atitude emo­cional do grupo, ficará alerta para reconhecer as finalidades que se deseja atingir e os métodos empregados para assegurar o sucesso. Por outras palavras, as suas crenças e ideias adquirirão formas semelhantes às dos outros indivíduos do grupo. Também conquistará sensivelmente o mesmo conjunto de conheci­mentos, uma vez que esse conhecimento é um ingrediente das suas ocupações habituais.

            A importância da linguagem na aquisição de conhecimentos é, sem dúvida, a principal causa da noção do senso comum de que o conhecimento pode ser transmitido directamente de uns para os outros. Quase como se, para introduzir uma ideia na mente de outra pessoa, bastasse introduzirmos um som no seu ouvido. Assim, o conhecimento comunicado seria assimilado por um processo mera­mente físico. Mas, se se analisar a aprendizagem da linguagem descobre-se que ela confirma o princípio que estabelecemos. É provável que se admita, sem gran­des hesitações, que uma criança adquire a ideia de um chapéu, por exemplo, ao utilizá-lo como as outras pessoas; quando cobre a cabeça com ele, quando o dá a outros para o usarem, quando lhe é colocado na cabeça para sair, etc. Mas pode-se perguntar como é que esse princípio da actividade partilhada se aplica ao adquirir, através do discurso ou da leitura, a ideia de, por exemplo, um elmo Grego, em que não há qualquer espécie de utilização directa. Quando se estuda, através dos livros, a descoberta da América, qual é a actividade partilhada?

            Uma vez que a linguagem tende a tornar-se o principal instrumento de apren­di­zagem de muitas coisas, vejamos como funciona. O bebé começa, natural­mente, com meros sons, barulhos e tons que não têm significado, isto é, que não exprimem uma ideia. Os sons são apenas um tipo de estímulos para uma resposta directa, uns têm um efeito calmante, outros tendem a fazer-nos estremecer, etc. O som c-h-a-p-é-u manter-se-ia tão sem significado como um som em Choctaw, como um grunhido aparentemente inarticulado, se não fosse emitido em conexão com uma acção participada por uma quantidade de pessoas. Quando a mãe leva o filho à rua, diz “chapéu” enquanto lhe coloca qualquer coisa na cabeça. Ser levado a sair torna-se um interesse da criança; a mãe e o filho não se limitam a sair juntos fisicamente, ambos se importam com a saída; apreciam-na em conjunto. Por asso­ciação com outros factores da actividade, o som “chapéu” logo adquire, para a criança, o mesmo significado que tem para os pais; torna-se num símbolo da actividade de que faz parte. O simples facto da linguagem ser constituída por sons que são inteligíveis mutuamente é por si suficiente para mostrar que o seu signi­ficado depende da conexão com uma experiência partilhada.

            Em resumo, o som c-h-a-p-é-u ganha significado exactamente da mesma ma­neira que o objecto “chapéu” o ganha, sendo utilizado de uma determinada for­ma. E eles adquirem, para a criança, o mesmo significado que têm para o adulto, porque foram utilizados por ambos numa experiência comum. Encontra-se uma garantia do mesmo modo de utilização no facto de o objecto e o som terem sido ori­gi­nalmente empregues numa actividade conjunta, como um meio de estabelecer uma conexão activa entre a criança e um adulto. Ideias ou significados seme­lhan­tes surgem, porque ambas as pessoas estão envolvidas como parceiros de uma acção em que aquilo que uma faz influencia e depende do que o que a outra faz. Se dois selvagens estivessem envolvidos num jogo de caça conjunto, e um certo sinal significasse “virar à direita” para o que o emitiu, e “virar à esquerda” para o que o ouviu, obviamente não poderiam levar a cabo, com sucesso, a sua caçada conjunta. Compreenderem-se um ao outro significa que os objectos, sons inclusivamente,  tenham o mesmo valor para ambos no que respeita à consecução de um objectivo comum.

            Depois de os sons terem adquirido significado através de conexões com ou­tras coisas utilizadas numa tarefa conjunta, eles podem ser relacionados com outros sons semelhantes para desenvolver novos significados, precisamente da mesma maneira que as coisas que eles designam estão relacionadas. Assim, as palavras através das quais a criança aprende acerca do elmo Grego, por exemplo, adquiriram originalmente um significado (ou foram compreendidas) através da sua utilização numa acção com interesses e finalidades comuns. Despertam agora um novo significado ao incitar aquele que ouve ou que lê a ensaiar, na sua imagina­ção, as actividades em que o elmo é utilizado. Durante algum tempo, aquele que compre­ende as palavras “elmo Grego” torna-se mentalmente num parceiro daque­les que utilizaram o elmo. Ele envolve-se, através da imaginação, numa actividade partilhada. Não é fácil adquirir o significado completo das palavras. A maior parte das pessoas ficam-se, provavelmente, pela ideia de que “elmo” designa uma estra­nha espécie de chapéu que era usada antigamente por umas pessoas cha­madas Gregos. Concluímos, portanto, que o uso da linguagem para exprimir e adquirir ideias é uma extensão e um aperfeiçoamento do princípio de que as coisas ganham significado ao serem utilizadas numa experiência partilhada ou acção comum; não contradiz este princípio em nada. Quando as palavras não entram como factores de uma situação partilhada, seja ela real ou imaginada, elas funcio­nam como um estímulo meramente físico, e não como tendo um significado ou valor intelectual. Provocam uma actividade em determinada direcção, mas que não é acompanhada de um propósito consciente ou de um significado. Assim, por exemplo, o sinal mais pode ser um estímulo para escrever um número debaixo de outro e somar os números, mas, a menos que se aperceba do significado do que está a fazer, a pessoa pode não estar a operar mais do que um autómato.

            3. O Meio Social como Educativo.

            O resultado que obtivemos até aqui é que o meio social forma a disposição mental e emocional do comportamento dos indivíduos empenhando-os em activi­dades que despertam e fortalecem certos impulsos, que têm determinados propó­sitos e provocam determinadas consequências. Uma criança que cresce numa família de músicos tem inevitavelmente as suas capacidades musicais estimuladas, sejam elas quais forem, e, comparativamente, mais estimuladas do que outros impulsos que poderiam ter sido despertados noutro meio. Se não se interessa por música e não adquire alguma competência nesse campo, fica “de fora”; é incapaz de participar da vida do grupo a que pertence. Algumas formas de participação na vida daqueles com quem o indivíduo se relaciona são inevitáveis; nesse aspecto, o meio social exerce uma influência educativa ou formativa inconscientemente e in­de­pendentemente de quaisquer propósitos estabelecidos.

            Em comunidades selvagens e incultas, essa participação directa (que constitui a educação indirecta ou acidental de que falámos) representa pratica­mente a única influência na iniciação dos jovens às práticas e crenças do grupo. Mesmo nas sociedades actuais, proporciona a educação básica da juventude, por muito escolarizada que ela seja. Conforme os interesses e ocupações do grupo, algu­mas coisas tornam-se objecto de grande estima; outras de aversão. Uma associação não cria impulsos ou sentimentos de afecto e desafecto, mas fornece os objectos a que estão ligados. O modo como o nosso grupo ou classe faz as coisas tende a determinar quais os objectos dignos de atenção e, portanto, a pres­crever as direcções e limites da observação e da memória. O que é estranho ou marginal (quer dizer exterior às actividades dos grupos) tem tendência a ser moral­mente proibido e intelectualmente suspeito. A nós, por exemplo, parece-nos quase inacreditável que coisas que conhecemos muito bem tenham passado desaperce­bidas em épocas passadas. Somos inclinados a explicar isso atribuindo uma estu­pidez congénita aos nossos antepassados e assumindo uma inteligência superior inata da nossa parte. Porém a explicação é que os seus modos de vida não con­duziam a atenção para esses factos, mas mantinham as suas mentes presas a ou­tras coisas. Exactamente do mesmo modo que os sentidos requerem objectos perceptíveis que os estimulem, também os nossos poderes de observação, recordação, e imaginação não funcionam espontaneamente, mas são despoletados pelas condições impostas pelas ocupações sociais correntes. A estrutura es­sen­cial do carácter é formada, independentemente da escolarização, por estas influ­ências. O máximo que um ensino consciente e deliberado pode fazer é eman­cipar as capacidades assim formadas para um desempenho mais completo, elimi­nar algumas das suas imperfeições, e fornecer-lhes objectos que tornem a sua acti­vi­dade mais fértil de significado.

            Apesar de esta “influência inconsciente do meio” ser tão subtil e penetrante que afecta todos os aspectos do carácter e da mente, talvez valha a pena espe­ci­ficar algumas direcções em que o seu efeito é mais visível. Primeiro, os hábitos de linguagem. Os modos fundamentais de falar, a maior parte do vocabulário, são formados na intercomunicação habitual da vida, exercida não como um processo de instrução estabelecido mas por uma necessidade social. Dizemos, e bem, que o bebé adquire a língua materna. Apesar dos hábitos de linguagem assim adquiridos poderem ser corrigidos ou até substituídos através de ensino consciente, mesmo assim, em momentos de excitação, a maneira de falar adquirida intencionalmente é muitas vezes abandonada, e as pessoas reincidem na sua verdadeira língua na­ti­va. Em segundo lugar, as formas de conduta. O exemplo é notavelmente mais po­de­­roso do que a regra. Como se costuma dizer, as boas maneiras vêm de uma boa criação, ou melhor, são uma boa criação; e a criação faz-se através de acções habi­tuais, em resposta a estímulos habituais, não através de transmissão de infor­mações. Apesar do papel ilimitado da correcção e instrução conscientes, o ambi­ente e o espírito circundantes são, em última análise, os principais agentes forma­dores da conduta. E as normas de conduta não são mais do que pequenos princí­pios morais. Além disso, nos grandes princípios morais, a instrução consciente só parece ser eficaz na medida em que concorda com os “dizeres e fazeres” gerais daqueles que constituem o meio social da criança. Em terceiro lugar, o bom gosto e a apreciação estética. Se o olho é constantemente confrontado com objectos harmoniosos, com belas formas e cores, desenvolve-se normalmente um padrão de gosto. O efeito de um ambiente espalhafatoso, desleixado e decorado em excesso produz uma deterioração do gosto, assim como um meio circundante miserável e estéril destroi o desejo de beleza. Perante tais possibilidades, o ensino consciente pouco mais pode fazer do que transmitir informações em segunda mão quanto ao que os outros pensam. Um gosto assim nunca se torna espontâneo e pessoalmente enraizado, mas permanece como uma lembrança forçada do que aque­les pensam de alguém que nos ensinaram a admirar. Dizer que os padrões mais profundos de juízo de valores são moldados pelas situações em que uma pes­soa participa habitualmente, não é tanto para referir um quarto ponto, mas sim para assinalar um ponto de fusão dos já referidos anteriormente. Raramente reconhecemos que as medidas em que a nossa consciência estima o que vale a pena e o que não vale, assentam em padrões de que não estamos, de maneira nenhu­ma, conscientes. Mas em geral pode-se afirmar que as coisas que temos como certas, sem questionar ou reflectir, são exactamente aquelas que deter­mi­nam o nosso pensar consciente e decidem as nossas conclusões. E estes hábitos que permanecem abaixo do nível de reflexão são exactamente aqueles que se formaram no permanente dar e receber das nossas relações com os outros.

            4. A Escola como um Meio Especial.

            A importância principal desta constatação precedente sobre o processo educativo que avança de bom ou de mau grado, é conduzir-nos à observação de que o único modo pelo qual os adultos controlam conscientemente o tipo de educa­ção que os imaturos recebem é controlando o meio em que actuam, e portanto pen­sam e sentem. Nunca educamos directamente, mas sim indirectamente através do meio. Há uma grande diferença entre permitir que meios aleatórios façam esse trabalho, ou concebermos os meios para os nossos propósitos. E qualquer meio é um meio aleatório no que diz respeito à influência educativa que exerce, a menos que tenha sido deliberadamente regulado relativamente ao seu efeito educativo. Um lar inteligente difere de um não inteligente essencialmente no facto de os hábi­tos de vida e de comunicação que prevalecem serem escolhidos, ou pelo menos alterados, pela consideração das suas consequências no desenvolvimento da crian­ça. Mas as escolas continuam a ser, evidentemente, o caso típico de meios mol­da­dos com a preocupação expressa de influenciar as disposições mentais e morais dos seus membros.

            Abreviadamente, elas surgem quando as tradições sociais se tornam tão complexas que uma parte considerável do património social é passado a escrito e transmitido através de símbolos escritos. Os símbolos escritos são ainda mais artificiais ou convencionais do que os falados; não podem ser compreendidos em intercomunicações acidentais com outras pessoas. Além disso a forma escrita tende a seleccionar e registar assuntos que são relativamente estranhos à vida quotidiana. As realizações acumuladas de geração em geração são guardadas dessa forma, mesmo que algumas delas tenham caído temporariamente em desuso. Consequentemente, a partir do momento em que uma sociedade depende, numa medida considerável, do que está para além do seu próprio território e da sua geração imediata, tem que contar com a intervenção das escolas para asse­gurar a transmissão adequada de todos os seus recursos. Para ilustrar com um exemplo óbvio: A vida dos Gregos e Romanos da antiguidade influenciou profun­damente a nossa própria vida, e no entanto as formas como nos afectaram não são visíveis nas nossas experiências comuns. De um modo semelhante, povos actuais, mas afastados no espaço, Britânicos, Germânicos, Italianos, influenciam directa­mente as nossas ocupações sociais, mas a natureza da interacção não pode ser compreendida sem constatação e atenção explícitas. Exactamente do mesmo mo­do, não podemos confiar nas nossas associações quotidianas para esclarecer peran­te os jovens o papel de energias físicas remotas e de estruturas invisíveis nas nossas actividades. Portanto, para tratar de assuntos como esse foi instituído um modo especial de intercomunicação, a escola.

            Este modo de associação, quando comparado com as associações comuns da vida, tem três funções suficientemente específicas para serem assinaladas. Em primeiro lugar, uma civilização complexa é demasiado complexa para ser assi­mi­lada na totalidade. Tem que ser dividida em partes, por assim dizer, e assimilada aos poucos, num processo gradual e progressivo. As relações na nossa vida social actual são tão numerosas e tão entrelaçadas que uma criança colocada na posição mais favorável não poderia participar prontamente em muitas das mais importan­tes. Não participando, o seu significado não lhe seria comunicado, não se integra­ria na sua estrutura mental. Não conseguiria ver as árvores por causa da floresta. A sua atenção seria atraída, ao mesmo tempo, por negócios, política, arte, ciência, religião; o resultado iria ser uma confusão. A primeira função da instituição social a que damos o nome de escola é assegurar um meio simplificado. Selecciona os as­pec­tos que se distinguem como fundamentais e susceptíveis de resposta da parte dos jovens. Depois estabelece uma ordem progressiva, utilizando os aspectos adqu­iridos em primeiro lugar para promover a compreensão dos que são mais complicados.

            Em segundo lugar, é função do meio escolar eliminar, o mais possível, a in­flu­ência dos aspectos inconvenientes do meio existente nos hábitos mentais. Esta­belece um meio de acção purificado. A selecção visa não apenas a simpli­ficação, mas também a supressão do que é indesejável. Todas as sociedades estão sobre­carregadas com vulgaridades, com coisas inúteis do passado, e com preversi­da­des inegáveis. A escola tem o dever de omitir essas coisas do meio que oferece e, portanto, fazer o possível para contrariar a sua influência no meio social comum. Ao seleccionar o melhor para seu uso exclusivo, a escola tenta seriamente reforçar o poder desse melhor. À medida que a sociedade se torna mais esclarecida, apercebe-se de que é responsável por não transmitir e conservar a totalidade das suas realizações existentes, mas só as que contribuem para uma sociedade futura melhor. A escola é o seu agente principal no cumprimento desta finalidade.

            Em terceiro lugar, é função do meio escolar equilibrar os vários elementos do meio social, e providenciar para que cada indivíduo tenha a oportunidade de se libertar das limitações do grupo social em que nasceu, e entrar em contacto activo com um meio mais amplo. Palavras como “sociedade” e “comunidade” são suscep­tíveis de induzir em erro, porque tendem a fazer-nos pensar que a uma única pala­vra corresponde uma única coisa. De facto, uma sociedade moderna é constituída por muitas sociedades com ligações mais ou menos frouxas. Cada família com as suas imediatas relações de amizade constitui uma sociedade; a aldeia ou o grupo de companheiros de brincadeiras de rua é uma comunidade; cada grupo profissio­nal, cada clube, é outra. Para além destes grupos mais chegados, existe num país como o nosso uma variedade de raças, de associações religiosas, de grupos eco­nó­mi­cos. No interior de uma cidade moderna, e apesar da sua unidade política nominal, há provavelmente mais comunidades, maior diversidade de costumes, tradi­ções, aspirações, e formas de governo ou de controle, do que existia antiga­men­te num continente inteiro.

            Cada um destes grupos exerce uma influência formativa no carácter activo destes membros. É tão verdade que uma elite, um clube, um bando, os ladrões de um escon­derijo, os prisioneiros de uma prisão, proporcionam meios educativos para os que entram nas suas actividades colectivas ou conjuntas, como o é para uma igreja, um sindicato, uma sociedade comercial ou um partido político. Cada um constitui tanto um modo de vida associativa ou comunitária, quanto uma família, uma cidade, ou um estado. Há também comunidades cujos membros têm poucos, ou nenhuns, contactos directos entre si, como as corporações de artistas, os gré­mios literários, os membros de uma classe profissional erudita dispersa pelo mundo. Porque eles têm alvos comuns, e a actividade de cada membro é directa­mente modificada pelo conhecimento do que os outros estão a fazer.

            Antigamente, a diversidade de grupos era, em larga medida, uma questão geográfica. Havia muitas sociedades, mas cada uma, dentro do seu território, era relativamente homogénea. Mas, com o desenvolvimento do comércio, dos trans­por­tes, das comunicações e da emigração, países como os Estados Unidos constituiram-se de uma mistura de grupos diferentes com costumes tradicionais diferen­tes. É esta situação que está, talvez mais do que qualquer outra causa, na origem da procura de uma instituição educacional que proporcione aos jovens qualquer coisa como um meio homogéneo e equilibrado. Só deste modo podem ser contra­riadas as forças centrífugas causadas pela justaposição de vários grupos num só e na mesma unidade política. A mistura de jovens de diferentes raças, religiões diver­gentes e costumes diversos na escola, cria para todos eles um meio novo e mais amplo. Os temas comuns familiarizam todos eles com uma unidade de perspectivas sobre um horizonte mais amplo do que aquele que é perceptível aos membros de qualquer grupo que esteja isolado. O poder assimilativo das escolas públicas Americanas é um testemunho eloquente da eficácia do apelo comum e equilibrado.

            A escola tem também a função de coordenar as diversas influências, no carác­ter de cada indivíduo, dos vários meios sociais de que faz parte. Na família prevalece um código; na rua, outro; um terceiro na oficina ou na loja; um quarto na congregação religiosa. Quando a pessoa muda de um meio para outro, fica sujeita a forças antagónicas, e corre o risco de se desintegrar num ser com diferentes padrões de juízo e emoção em diferentes ocasiões. Este risco obriga a escola a uma prática estabilizadora e integradora.

Resumo.

            O desenvolvimento nos jovens das atitudes e disposições necessárias à vida contí­nua e progressiva de uma sociedade não tem possibilidade de se realizar pela transmissão directa de crenças, emoções e conhecimentos. Realiza-se atra­vés da intermediação do meio. O meio consiste no somatório de todas as condi­ções que afectam a execução da actividade característica de um ser vivo. O meio social consiste em todas as actividades dos pares que estão directamente relacionados com a realização das actividades de um qualquer dos seus membros. Ele tem um efeito verdadeiramente educativo na medida em que cada indivíduo partilha ou participa nalguma actividade conjunta. Ao realizar a sua parte na activi­dade associada, o indivíduo apropria-se do propósito que a acciona, torna-se conhe­ce­­dor dos seus processos e assuntos, adquire competências necessárias, e é impregnado pelo seu espírito emocional.

            A formação educativa do carácter torna-se mais profunda e mais pessoal, sem uma intenção consciente, à medida que os jovens vão, gradualmente,  toman­do parte nas actividades dos vários grupos a que pertencem. Contudo, visto que a sociedade se torna cada vez mais complexa, constatou-se a necessidade de  propor­cionar um meio social especial que cuidasse especialmente do desenvol­vimento das capacidades dos imaturos. Três das funções mais importantes deste meio social são: simplificar e ordenar os aspectos de carácter que se deseja desenvolver; purificar e idealizar os hábitos sociais existentes; criar um meio mais amplo e mais equilibrado do que aqueles que influenciariam os jovens se deixados à mercê de si próprios.

Olga Pombo opombo@fc.ul.pt