Democracia e Educação

 John Dewey 

Cap. 4

A Educação como Crescimento

Tradução de

Cristina Alexandre Guerreiro

Finalista da Licenciatura em Matemática, 1995/96

 

1. As condições de crescimento

 Ao dirigir as actividades dos jovens, a sociedade determina o seu próprio futuro determinando o futuro dos jovens. Uma vez que os jovens duma determinada época constituirão, numa data posterior, a sociedade desse período, a natureza dessa sociedade fundar-se-á largamente na direcção que as actividades das crianças tomaram num período inicial. Este movimento cumulativo de acção, tendo em vista um resultado posterior, é o que se entende por crescimento.

            A condição primária de crescimento é a imaturidade. Isto pode parecer um mero truísmo - dizer que um ser pode desenvolver-se apenas nalgum ponto no qual ele não está desenvolvido. Mas o prefixo “i” da palavra imaturidade significa algo de positivo, não um mero vazio ou ausência. É de notar que o termo “capacidade” e “potencialidade” têm um duplo significado, um sentido negativo e um sentido positivo. A capacidade pode denotar mera receptividade, como a capacidade de uma medida de volume para líquidos. Podemos entender por potencialidade um estado meramente dormente ou quiescente - uma capacidade de tornar-se algo diferente sob influências externas. Mas também entendemos por capacidade uma aptidão, um poder; e por potencialidade  potência, força. Agora, quando dizemos que imaturidade significa a possibilidade de crescimento não estamos a referir-nos à ausência de poderes que poderão existir mais tarde; expressamos sim uma força positivamente presente - a aptidão para se desenvolver.

            A nossa tendência para considerar a imaturidade como um simples vazio e o crescimento como algo que preenche a lacuna entre o imaturo e maduro, deve-se ao modo como encaramos a infância comparativamente em vez de intrinsecamente. Tratamo-la simplesmente como uma privação porque estamos a medi-la tomando a idade adulta como padrão. Esta consideração leva a nossa atenção a fixar-se naquilo que a criança não tem, e não terá, até que seja um adulto. Este ponto de vista comparativo é suficientemente legítimo para alguns propósitos, mas se o considerarmos para todos os casos, levanta-se a questão se não seremos culpados de uma presunção arrogante. Se as crianças pudessem expressar-se de uma forma articulada e sincera, contariam uma história diferente; e há uma excelente autoridade adulta para a convicção de que, para certos fins morais e intelectuais, os adultos se devem tornar crianças.

            A seriedade da suposição da qualidade negativa das possibilidades da imaturidade é aparente quando consideramos que ela se estabelece como um ideal e tem como padrão um final estático. A realização do acto de crescer é tomada como um crescimento consumado: quer dizer, um Não-Crescimento, algo que já não cresce mais. A linearidade desta assunção é visível pelo facto de os adultos se ressentirem por não terem mais possibilidades de crescimento; e à medida que eles descobrem que essas possibilidades terminaram para eles, lamentam esse facto como uma evidência de perda, em vez de recorrerem ao já adquirido como uma manifestação adequada de poder. Porquê uma medida desigual para a criança e para o adulto?

            Tomada em sentido absoluto, em vez de comparativamente, a imaturidade designa uma força positiva ou aptidão - o poder para crescer. Não temos que extrair ou deduzir actividades positivas de uma criança, como algumas doutrinas educacionais têm feito. Onde há vida já há actividades excitantes e apaixonadas. O crescimento não é qualquer coisa feita para as crianças, é algo que elas fazem. O aspecto positivo e construtivo da possibilidade dá a chave para a compreensão das duas características principais da imaturidade: dependência e plasticidade. Soa absurdo falar de dependência como qualquer coisa positiva e ainda mais absurdo falar dela como um poder. No entanto, se todo o desamparo estivesse na dependência, nenhum desenvolvimento poderia ocorrer. Um ser meramente impotente tem que ser conduzido, para sempre, pelos outros. O facto da dependência ser acompanhada por um desenvolvimento de capacidades, e nunca por um crescente parasitismo, sugere que ela já é construtiva. Ser meramente protegido pelos outros não promove o crescimento, porque isso apenas construiria um muro em redor da impotência. Em relação ao mundo físico, a criança está desamparada. Falta-lhe ao nascer, e durante muito tempo após o nascimento, poder para construir o seu caminho fisicamente, para construir o seu próprio viver. Se a criança tivesse que o fazer por si própria, dificilmente sobreviveria uma hora. Neste aspecto, o seu desamparo é quase completo. As crias dos animais são incomensuravelmente superiores. A criança é fisicamente fraca e incapaz de transformar a força que possui para lidar com o ambiente físico.

            1. O carácter completo deste desamparo sugere, no entanto, algum poder compensador. A capacidade relativa das crias dos animais em se adaptarem bastante bem às condições físicas, desde uma fase inicial, sugere que a sua vida não está intimamente ligada à vida daqueles que os rodeiam. São compelidas, por assim dizer, a ter aptidões físicas porque não têm aptidões sociais. Na espécie humana, pelo contrário, as crianças podem superar as suas incapacidades físicas precisamente através da sua capacidade social. Por vezes, falamos e pensamos como se elas simplesmente estivessem fisicamente num meio social; como se as forças sociais estivessem exclusivamente nos adultos que tomam conta das crianças e elas não passassem de recipientes passivos. Se se dissesse que as crianças são, elas próprias, maravilhosamente dotadas, desde o nascimento, com o poder de obter a atenção cooperativa dos outros, seria considerada uma maneira indirecta de dizer que os outros estão atentos às necessidades das crianças. Mas a observação mostra que as crianças estão dotadas de uma elevada capacidade para a relação social. Poucos adultos retêm a capacidade flexível e sensível das crianças para vibrarem empaticamente com as atitudes e actos daqueles que as rodeiam. A desatenção com as coisas físicas é acompanhada por uma correspondente intensificação do interesse e atenção aos actos das pessoas. O mecanismo inato da criança e os seus impulsos tendem a facilitar a conformidade social. A afirmação de que as crianças, antes da adolescência, são egoistamente centradas em si próprias, mesmo que fosse verdadeira, não contradiria a verdade dessa afirmação. Iria simplesmente indicar que a resposta social das crianças é usada em seu próprio favor, não que ela não existe. Mas de facto, a afirmação não é verdadeira. Os factos que são citados para justificar o alegado egoísmo puro das crianças mostram realmente a intensidade e a diretividade com que elas avançam para as suas metas. Se os fins que constituem o seu objectivo parecem estreitos e egoístas aos adultos, é apenas porque os adultos ( através de uma absorção similar na sua rotina ) já dominaram estes fins, que deixaram consequentemente de interessá-los. O que fica remanescente do alegado egoísmo inato das crianças é, na sua maior parte, simplesmente um egoísmo que corre no sentido contrário ao do adulto. Para uma pessoa adulta que está demasiadamente absorvida nos seus próprios afazeres para se interessar pelos das crianças, estas parecem, sem dúvida, incompreensivelmente absortas nas suas ocupações.

            De um ponto de vista social, a dependência denota um poder mais do que uma fraqueza; ela envolve interdependência. Há sempre o perigo do aumento da independência pessoal diminuir a capacidade social de um indivíduo. Ao torná-lo mais auto-confiante pode levá-lo a ser mais auto-suficiente, o que pode conduzir a um distanciamento e indiferença. Frequentemente leva o indivíduo a ser tão insensível nas suas relações com os outros, bem como a desenvolver a ilusão de ser realmente capaz de se manter e agir sozinho - uma forma de insanidade que é responsável por uma grande parte do sofrimento, que pode ser remediado, do mundo.

            2. A adaptabilidade específica de uma criatura imatura para crescer constitui a sua plasticidade. Ela é bem diferente da plasticidade da massa ou da cera. Não é uma capacidade de mudar de forma de acordo com pressões externas. É parecida com a maleabilidade que faz com que algumas pessoas tomem as cores do seu meio envolvente, retendo, contudo, a sua própria tendência. Mas é algo mais profundo que isto. É essencialmente a capacidade de aprender com a experiência; o poder de reter de uma experiência qualquer coisa que terá utilidade no confronto com as dificuldades de uma situação posterior. Isto significa poder para modificar acções com base nos resultados de experiências anteriores, o poder para desenvolver atitudes. Sem ela, a aquisição de hábitos é impossível.

            É um dado corrente que as crias dos animais superiores, e especialmente os humanos jovens, têm que aprender a utilizar as suas reacções instintivas. O ser humano nasce com um número de tendências instintivas maior que outros animais. Mas os instintos dos animais inferiores aperfeiçoam-nos para uma acção apropriada na fase inicial, logo após o nascimento, enquanto que a maior parte dos instintos do bebé humano tem pouca importância tal como se apresentam. Um poder inato e especializado de adaptação assegura eficiência imediata, mas, tal como um bilhete de comboio, é válido para um percurso apenas. Um ser que, para usar os olhos, os ouvidos, as mãos e as pernas tem que experimentar fazendo combinações variadas das suas reacções, adquire um controlo que é flexível e variado. Um pinto, por exemplo, debica com precisão a comida poucas horas após o nascimento. Isto significa que coordenações perfeitas da actividade dos olhos em ver e do corpo e cabeça em dar bicadas aperfeiçoam-se em poucas tentativas. Uma criança necessita de aproximadamente seis meses para ser capaz de medir com uma precisão aproximada a acção de agarrar, que coordenará com a sua actividade visual; ou seja, dizer se ela consegue agarrar um objecto visualizado e como executa o movimento de agarrar. Assim, o pinto está limitado pela perfeição relativa do seu talento original. A criança tem a vantagem da multiplicidade das reacções instintivas de tentativa e das experiências que as acompanham, embora esteja em desvantagem temporária porque elas se cruzam. Ao aprender uma acção, em vez de a receber já feita, aprende-se a variar os seus factores, a fazer combinações variadas com eles de acordo com as circunstâncias. Uma possibilidade de progresso contínuo é aberta pelo facto de que, ao aprender um acto, são desenvolvidos métodos para serem usados noutras situações. Mais importante ainda é o facto de o ser humano adquirir o hábito de aprender. Ele aprende a aprender.

            A importância para a vida humana dos dois factos da dependência e controlo variável foi resumida na doutrina do significado da infância prolongada [H1] [1]. Este prolongamento é significativo quer do ponto de vista dos membros adultos do grupo, quer do dos jovens. A presença de seres dependentes e em processo de aprendizagem é um estímulo à educação e ao afecto. A necessidade de cuidado constante e continuado foi, provavelmente, um meio fundamental na transformação de co-habitações temporárias e em uniões permanentes. Foi certamente uma influência importantíssima na formação de hábitos de afectividade e solidariedade; esse interesse construtivo no bem-estar dos outros, que é essencial à vida em sociedade. Intelectualmente, este desenvolvimento moral significou a introdução de novos objectos de atenção; estimulou a previsão e a planificação do futuro. Assim, há uma influência recíproca. A complexidade crescente da vida em sociedade requer um período de infância mais longo para a aquisição dos poderes necessários; este prolongamento da dependência significa prolongamento da plasticidade ou poder de adquirir modos de controlo novos e variáveis. Por isso ela proporciona mais um avanço no progresso social.

 

2. Os  hábitos como expressão do crescimento

            Já vimos que a plasticidade é a capacidade de reter e transportar, de experiências anteriores, factores que modificam actividades subsequentes. Isto significa a capacidade de adquirir hábitos ou desenvolver comportamentos definidos. Temos agora que considerar os aspectos salientes dos hábitos. Em primeiro lugar, um hábito é uma forma de aptidão para a execução, de eficiência na acção. Um hábito significa uma aptidão para usar condições naturais como meios para atingir fins. É um controlo activo  do meio através do controlo dos órgãos de acção. Estamos talvez aptos a enfatizar o controlo do corpo à custa do controlo do meio . Pensamos no andar, falar, tocar piano, nas aptidões especializadas características do gravador, do cirurgião, do construtor civil, como se fossem simplesmente facilidades, habilidades e acções perfeitas por parte do organismo. São isso, claro, mas a medida do valor destas qualidades está no controlo económico e efectivo do meio que elas asseguram. Ser capaz de andar é ter certas propriedades da natureza à nossa disposição - assim como com todos os outros hábitos.

            Educação é frequentemente definida como consistindo na aquisição desses hábitos que produzem um ajustamento do indivíduo e do seu meio. A definição expressa uma fase essencial do crescimento. Mas é essencial que ajustamento seja entendido no seu sentido activo de controlo  dos meios para se atingirem os fins.  Se pensarmos num hábito simplesmente como uma mudança produzida no organismo, ignorando o facto de que esta mudança  consiste na capacidade de efectuar mudanças subsequentes no meio, seremos levados a pensar em “ajustamento” como uma conformidade com o meio, tal como a cera toma a forma do carimbo que a pressiona. O meio é encarado como qualquer coisa fixa, determinando na sua rigidez  o fim e o padrão das mudanças que ocorrem no organismo; ajustamento é apenas encaixarmo-nos nesta rigidez das condições externas[2]  (1). Hábito como habituação é, de facto, algo relativamente  passivo; nós habituamo-nos ao que nos rodeia - à nossa roupa, aos nossos sapatos e luvas; à atmosfera, desde que ela seja uniforme; às pessoas com quem convivemos diariamente, etc. Conformidade com o meio, uma mudança produzida no organismo sem referência à capacidade de modificar o meio envolvente, é um traço marcado dessas habituações. À parte o facto de que não estamos habilitados para transformar os traços desses ajustamentos (que bem podem ser chamados acomodações , para separá-los dos ajustamentos activos) em hábitos de uso activo do meio circundante, dois aspectos das habituações são dignos de nota. Em primeiro lugar, habituamo-nos às coisas, usando-as primeiro.

            Consideremos o acto de se habituar a uma cidade estranha. No início, há uma estimulação excessiva e uma resposta excessiva e mal adaptada. Gradualmente , certos estímulos são seleccionados devido à sua relevância e outros são preteridos. Podemos dizer ou que não lhes respondemos mais , ou mais concretamente , que encontrámos uma resposta persistente para eles - um equilíbrio do ajustamento. O que significa, em segundo lugar, que este ajustamento crescente fornece o pano de fundo sobre o qual são feitos ajustamentos específicos, à medida que surge a ocasião. Nunca estamos interessados em mudar todo o meio; há muitas coisas que aceitamos tal como elas são. Neste pano de fundo , as nossas actividades centram-se em determinados pontos num esforço para introduzir as mudanças necessárias. Habituação é, então, o nosso ajustamento a um meio que, no momento, não estamos preocupados em modificar e que dá o impulso para os nossos hábitos activos.

            Adaptação, no fundo, é tanto a adaptação do meio às nossas próprias actividades, como das nossas actividades ao meio. Uma tribo selvagem consegue viver numa planície deserta. Adapta-se por ela própria. Mas a sua adaptação envolve um máximo de aceitação, tolerância e suportar as coisas como elas são, um máximo de condescendência passiva e um mínimo de controlo activo, de sujeição ao uso. Um povo civilizado entra em cena. Ele também se adapta. Introduz a irrigação; procura plantas e animais que prosperem naquelas condições; desenvolve, através de selecção cuidadosa, os que já existem. Como consequência, o deserto floresce como uma rosa. O selvagem habituou-se simplesmente; o homem civilizado tem hábitos que transformam o meio.

            O significado do hábito não se esgota, no entanto, na sua fase de execução e motora. Ele significa a formação de uma atitude intelectual e emocional bem como um aumento na facilidade económica e eficiência da acção. Qualquer hábito marca uma inclinação - uma preferência e escolha activas das condições envolvidas no seu exercício. Um hábito não espera, tipo Micawber, que um estímulo aconteça para que ele entre em acção; ele procura activamente as ocasiões para passar à acção. Se a sua expressão é indevidamente bloqueada, a inclinação apresenta-se inquieta e suplicante. Um hábito marca também uma atitude intelectual. Onde há um hábito há um conhecimento dos materiais e do equipamento aos quais a acção é aplicada. Há uma maneira definida de compreender as situações nas quais o hábito opera. Modos de pensamento, de observação e reflexão entram como formas de aptidão nos hábitos que fazem de um homem um engenheiro, um arquitecto, um físico ou um comerciante. Em formas de trabalho não especializado os factores intelectuais são mínimos precisamente porque os hábitos envolvidos não são de alto nível. Mas há hábitos de julgar e raciocinar tão verdadeiros quanto os de manusear uma ferramenta, de pintar um quadro ou de conduzir uma experiência.

            Estas afirmações são, no entanto, afirmações incompletas. Os hábitos da mente, envolvidos nos hábitos dos olhos e das mãos, dão a estes últimos o seu significado. Acima de tudo, o elemento intelectual  num hábito fixa a relação desse hábito ao uso variado e elástico e logo, ao crescimento contínuo. Falamos de hábitos fixos. Bem, a expressão pode significar faculdades tão bem estabelecidas que o seu possuidor as tem sempre como recursos quando necessário. Mas a expressão é também usada para significar costumes, rotinas, com perda de frescura, abertura de espírito e de originalidade. A fixação de hábitos pode significar que qualquer coisa se apoderou de nós, em vez de sermos nós a apoderarmo-nos livremente das coisas. Este facto explica dois pontos numa noção comum  de hábitos: a sua identificação com modos de acção mecânicos e externos até ao desprezo pelas atitudes mentais e morais, e a tendência a dar-lhes um mau significado, uma identificação com “maus hábitos”. Muitas pessoas sentir-se-iam surpreendidas por ser chamado hábito à sua aptidão para a profissão escolhida , e naturalmente pensariam que o uso de tabaco, bebidas alcoólicas ou linguagem profana é típico do significado do hábito. Um hábito é, para essas pessoas, algo que se apodera delas, algo de que não conseguem libertar-se facilmente mesmo que seja condenado.

            Os hábitos reduzem-se a modos rotineiros de agir, ou degeneram em modos de agir aos quais estamos presos precisamente no grau em que a inteligência se desligou deles . Hábitos rotineiros são hábitos que não envolvem pensamento; “maus” hábitos afastados da razão que se opõem às conclusões de deliberação e decisão conscientes. Como vimos, a aquisição de hábitos deve-se a uma plasticidade original das nossas naturezas; à nossa capacidade de diversificar respostas até encontrarmos um modo de agir apropriado e eficiente. Hábitos rotineiros e hábitos que nos possuem , em vez de sermos nós a possuí-los, são hábitos que põem fim à plasticidade. Eles marcam o fim da capacidade de variar. Não pode haver dúvida da tendência da plasticidade orgânica , de base fisiológica , para diminuir com o crescimento. As acções instintivamente móveis e avidamente variáveis da infância , o amor por novos estímulos e novos desenvolvimentos , rapidamente “assenta” , o que significa aversão à mudança e dependência das realizações passadas. Só um ambiente que assegure o uso pleno da inteligência no processo de formação dos hábitos pode contrariar esta tendência. Claro que o mesmo endurecimento das condições orgânicas afecta as estruturas fisiológicas que estão envolvidas no acto de pensar. Mas este facto apenas indica a necessidade de um cuidado persistente para providenciar que a função da inteligência seja invocada até à sua possibilidade máxima. O método limitado que assenta em rotinas mecânicas e repetições para assegurar a eficiência externa do hábito , capacidade motora, sem intervenção do pensamento, marca um encerramento deliberado do meio envolvente sobre o crescimento.

 

            3. O significado educacional da concepção do desenvolvimento 

            Já fomos bastante longe neste capítulo , mas falámos pouco sobre educação. Estivemos ocupados com as condições e implicações do crescimento. Se as nossas conclusões são justificadas, elas implicam, no entanto, consequências educativas definidas. Quando se diz que educação é desenvolvimento, tudo depende do modo como o desenvolvimento é concebido . A nossa conclusão pura é que vida é desenvolvimento e que desenvolvimento, crescimento, é vida. Traduzido para os seus equivalentes educativos isto quer dizer (1) que o processo educativo não tem um fim para além de si - ele é o seu próprio fim e (2) que o processo educativo é um processo de contínua reorganização, reconstrução, transformação.

            1. O desenvolvimento quando é interpretado em termos comparativos , isto é, com respeito pelos traços especiais da vida da criança e do adulto, significa direccionar as faculdades para determinados canais: a formação de hábitos envolvendo a capacidade de execução, a precisão do interesse e objectos específicos de observação e pensamento. Mas a visão comparativa não é a final. A criança tem capacidades específicas ; ignorar este facto é impedir o desenvolvimento ou distorcer os órgãos dos quais depende o seu crescimento. O adulto usa as suas faculdades para transformar o seu meio , ocasionando, então, novos estímulos que reorientam as suas faculdades e as mantêm em desenvolvimento. Ignorar este facto significa aprisionar o desenvolvimento, uma acomodação passiva. Uma criança normal e, igualmente, um adulto normal, por outras palavras, estão comprometidos no crescimento. A diferença entre eles não é a diferença entre crescimento e não crescimento, mas entre os modos de crescimento apropriados a diferentes condições. No que diz respeito ao desenvolvimento das capacidades para lidar com problemas científicos e económicos específicos, podemos dizer que a criança devia estar a crescer em maturidade. No que diz respeito à curiosidade , à resposta imparcial e à abertura de espírito , podemos dizer que o adulto devia estar a crescer em infantilidade. Uma afirmação é tão verdadeira quanto a outra.

            Três ideias que têm sido criticadas , nomeadamente a natureza meramente privativa da imaturidade, o ajustamento estático a um meio fixo e a rigidez do hábito, estão ligadas à falsa ideia de crescimento ou desenvolvimento - que é um movimento em direcção a um objectivo estabelecido. O crescimento é visto como tendo um fim , em vez de ser um fim. As contrapartes educativas das três ideias falaciosas são, primeiro, o erro em não considerar as faculdades instintivas ou inatas da criança; segundo, a falta de desenvolver a iniciativa para lidar com novas situações; terceiro, uma ênfase indevida dada aos exercícios repetidos e a outras estratégias que produzem automatismo à custa da percepção pessoal. Em todos os casos o meio adulto é aceite como modelo para a criança. Ela vai ser educada para ele.

            Os instintos naturais ou são desprezados ou tratados como estorvos - como traços detestáveis que devem ser suprimidos, ou, em todo o caso, levados à conformidade com os padrões externos. Uma vez que a conformidade é o objectivo, o que é distintivamente individual num jovem é posto de lado, ou visto como uma fonte de mal ou anarquia. Conformidade torna-se equivalente a uniformidade. Consequentemente há uma induzida falta de interesse pela novidade, aversão ao progresso e medo do incerto e do desconhecido. Uma vez que o fim do crescimento está fora e para além do processo de crescer, tem que se recorrer a agentes externos para que estes induzam o movimento em sua direcção. Sempre que um método de educação é estigmatizado como mecânico , podemos ter a certeza que pressões externas são utilizadas para se atingir um fim externo.

            2. Uma vez que na realidade não há nada a que o crescimento seja relativo, salvo mais crescimento, não há nada a que a educação seja subordinada , salvo mais educação. É um lugar comum dizer que a educação não deve acabar quando se deixa a escola. A questão deste lugar comum é que o propósito da educação escolar é assegurar a continuação da educação através da organização das faculdades que asseguram o crescimento. A tendência para aprender com a vida e criar as condições de vida de modo a que todos aprendam no processo de viver,  é o melhor produto da escolaridade. Quando abandonamos a tentativa de definir a imaturidade através da comparação rígida com os talentos do adulto, somos compelidos a deixar de pensar nela como denotando falta de traços desejados. Abandonando esta noção , somos também forçados a abandonar o nosso hábito de pensar na instrução como um método de tapar esta lacuna vertendo saber num vazio mental e moral que aguarda ser enchido. Uma vez que vida significa crescimento, um ser vivo vive tão verdadeiramente e positivamente tanto num estádio como noutro, com a mesma plenitude intrínseca e as mesmas pretensões absolutas. Por isso educação é a iniciativa de proporcionar as condições que asseguram o crescimento, ou adequação de vida , independentemente da idade . Inicialmente olhamos com impaciência para a imaturidade, encarando-a como qualquer coisa que deve ser ultrapassada tão rapidamente quanto possível. Depois, o adulto formado por tais métodos educativos olha com saudade para a sua infância e juventude como um cenário de oportunidades perdidas e faculdades desperdiçadas. Esta situação irónica perdurará até que se reconheça que viver tem a sua própria qualidade intrínseca e que a educação faz parte dessa qualidade. A compreensão de que a vida é crescimento protege-nos da chamada idealização da infância que, efectivamente, não é mais do que indulgência preguiçosa. A vida não deve ser identificada com todos os actos e interesses superficiais. Embora não seja sempre fácil dizer se o que parece ser um mero disparate superficial é um sinal de alguma faculdade nascente, contudo ainda indisciplinada, devemos lembrar-nos que as manifestações não devem ser aceites como fins por si sós. São sinais de um possível crescimento. Elas devem ser transformadas em meios de desenvolvimento, de progressão de faculdades , não favorecidas ou cultivadas por sua própria causa. A atenção excessiva aos fenómenos superficiais ( mesmo como uma censura ou um incentivo ) pode levar à sua fixação e, logo, à limitação do desenvolvimento. A forma como os impulsos estão a progredir , não o que eles foram, é o mais importante para pais e professores. O verdadeiro princípio de respeito pela imaturidade não pode ser melhor expresso do que nas palavras de Emerson: “ Respeita a criança. Não sejas demasiadamente seu pai . Não violes a sua solidão. Mas eu ouço o grito que contesta esta sugestão: Quebrarias realmente as rédeas da disciplina pública e privada? Abandonarias a criança ao louco curso das suas próprias paixões e caprichos, e chamarias a esta anarquia respeito pela natureza da criança? Eu respondo: respeita a criança, respeita-a até ao fim, mas respeita-te também a ti mesmo. Os dois pontos na educação de um rapaz são, manter a sua natureza e ensinar tudo excepto isso; manter a sua natureza mas por fim à sua gritaria, às suas loucuras, à sua grosseria; mantem a sua natureza e equipa-a com a sabedoria na direcção exacta para que ela aponta”. E como Emerson continua, mostrando esta reverência à infância e juventude, em vez de abrir um caminho fácil aos educadores, levanta imediatamente imensas questões sobre o tempo, o pensamento e a vida do professor. Isso requer tempo, perspicácia, êxito, todos os grandes ensinamentos e ajuda de Deus; e só pensar em usá-los implica caracter e profundidade. 

 

Resumo

            Capacidade para crescer depende da necessidade dos outros e da plasticidade. Ambas as condições estão no seu máximo na infância e juventude. Plasticidade, ou a capacidade de aprender com a experiência, significa a formação de hábitos. Os hábitos permitem controlar o meio e capacitam para a sua utilização para fins humanos. Os hábitos assumem a forma, quer de habituação ou equilíbrio geral e persistente das actividades orgânicas  com o meio envolvente, quer de capacidades activas para reajustar uma actividade para enfrentar novas condições. A primeira fornece o pano de fundo para o crescimento; a última constituí o crescimento. Hábitos activos envolvem o pensamento a invenção e iniciativa ao aplicar capacidades a novos objectivos. Opõem-se aos hábitos rotineiros que são uma limitação ao crescimento. Uma vez que o crescimento é uma característica da vida, a educação e o crescimento são a mesma coisa; não tem qualquer fim para além de si mesma. O critério do valor da educação escolar é o âmbito no qual ela cria um desejo por um crescimento contínuo e fornece meios para tornar esse desejo, de facto, efectivo.

 



[1] Indícios do seu significado encontram-se em alguns autores, mas John Fiske, na sua obra  Excursion of an Evolutionist, faz a sua primeira exposição sistemática.

[2] Claro que esta concepção é uma correlação lógica das concepções da relação externa do estímulo e resposta, considerada no último capítulo, e das concepções negativas de imaturiedade e plasticidade referidas neste capítulo.

 


 [H1]

Olga Pombo opombo@fc.ul.pt