Democracia e Educação

John Dewey

Cap. 7 

A Concepção Democrática em Educação

Tradução de

Carlos Manuel Alfaiate Gomes

Finalista da Licenciatura em Matemática, 1995/96

 

 

          Até aqui, salvo acidentalmente, preocupámo-nos com a educação tal como pode existir em qualquer grupo social. Temos agora que explicitar as diferenças no espírito, material e método de educação tal como opera nos diferentes tipos de vida comunitária. Dizer que a educação é uma função social, assegurando o direccionamento e desenvolvimento do imaturo através da sua participação na vida do grupo ao qual pertence, é dizer efectivamente que a educação varia com a qualidade de vida prevalecente num grupo. Particularmente é verdade que a sociedade que não só muda mas que tem também o ideal dessa mudança para se melhorar a si própria, terá diferentes modelos e métodos de educação em relação a outra que pretenda simplesmente a perpetuação dos seus próprios costumes. Para que as ideias gerais que apresentaremos de seguida sejam aplicáveis à nossa própria prática educacional é, então, necessário fazer a abordagem da natureza da presente vida social.

          1. As Implicações das Associações Humanas. 

Sociedade é uma palavra, mas muitas coisas. Os homens associam-se de diversos modos e pelos mais variados propósitos. Um só homem envolve-se em vários e diversos grupos, nos quais os seus associados podem ser bastante diferentes. Frequentemente parecem não ter nada em comum excepto serem modos de vida associativa. Em cada organização social maior existem numerosos grupos menores: não só subdivisões políticas, mas também associações industriais, científicas, religiosas. Existem facções políticas com diferentes objectivos, grupos sociais, “gangs”, corporações, firmas, grupos fortemente ligados por laços de sangue, e poder-se-ia prosseguir numa variedade infinita. Em muitos estados modernos e em alguns antigos, existe uma grande diversidade de populações, com várias línguas, religiões, códigos morais, e tradições. Nesta perspectiva, muitas das pequenas unidades políticas, uma das nossas grandes cidades, por exemplo, são um amontoado de sociedades vagamente relacionadas, ao invés de uma comunidade inclusiva e permeável de acção e pensamento. (ver p. 20. no original)

          Os termos sociedade, comunidade, são assim ambíguos. Têm ambos um sentido eulogistico ou normativo, e um sentido descritivo; um significado de jure e um significado de facto. Em filosofia social, a primeira conotação é quase sempre a predominante. A sociedade é concebida como única pela sua própria natureza. As qualidades que acompanham esta unidade, uma comunidade com méritos de ter objectivos, bem estar, lealdade aos fins públicos, mutualidade e simpatia, são realçados. Mas quando olhamos para os factos que o termo denota em vez de confinarmos a nossa atenção na sua conotação intrínseca, não encontramos unidade, mas uma pluralidade de sociedades, boas e más. Homens unidos em conspirações criminais, agregações de negócios que se servem do publico ao mesmo tempo que o servem, máquinas políticas unidas pelo interesse no ganho, estão incluídas. Se se diz que tais organizações não são sociedades porque não preenchem os requisitos ideais da noção de sociedade, a resposta, em parte, é que a concepção de sociedade foi feita tão “ideal” que deixou de ser aplicável, não tendo referência em factos; e em parte, que cada uma dessas organizações, não importando como se opõe aos interesses dos outros grupos, tem algo das realçadas qualidades de “Sociedade” que os mantêm unidos. Há uma honra entre assaltantes, e um bando de ladrões tem um interesse comum pois respeita os seus membros. Os “gangs” são marcados por um sentimento fraternal, e pequenos grupos por uma grande lealdade ás suas próprias normas. A vida familiar pode ser marcada pela exclusividade, suspeita, e ciúme em relação aos de fora, e no entanto ser um modelo de amizade e ajuda mútua entre os seus membros. Qualquer educação dada por um grupo tende a socializar os seus membros, mas a qualidade e valor da socialização depende dos hábitos e objectivos do grupo.

          Por isso, uma vez mais, a necessidade de uma medida para o mérito de cada tipo de vida social. Na procura desta medida, temos de evitar os dois extremos. Não podemos deixar de ter em mente, aquilo que vemos como uma sociedade ideal. Temos de basear a nossa concepção em sociedade actualmente existente, para assim estarmos seguros de que o nosso ideal é praticável. Mas, como acabámos de ver, o ideal não pode simplesmente repetir as características actualmente encontradas. A questão consiste em extrair as características que nos interessam das formas de vida comunitária que actualmente existem, e usá-las para criticar aspectos indesejáveis e sugerir melhoramentos. Então, em qualquer grupo social, mesmo num grupo de assaltantes, encontramos algum interesse em comum, e encontramos alguma interacção e relações com outros grupos. Destes dois aspectos retiramos o nosso modelo. Quão numerosos e variados são os interesses que são conscientemente partilhados? Quão completa e independente é a interacção com outras formas de associação?. Se aplicarmos essas considerações a, digamos, um grupo criminal, vemos que os laços que conscientemente mantêm os membros unidos são poucos, reductíveis quase a um interesse comum em roubar; e são de natureza tal a isolar o grupo de outros grupos no que diz respeito a dar e receber os valores da vida. Então a educação que tal sociedade dá é parcial e distorcida. Se considerarmos, por outro lado, o tipo de família que se considera modelo, vemos que há material, intelectual, interesses estéticos nos quais todos participam e que o progresso de um membro vale para a experiência dos outros membros - é prontamente comunicável - e que a família não é um todo isolado, mas entra intimamente em relações com grupos de negócios, com escolas, com todos os agentes de cultura, tal como com outros grupos similares, e que tem um papel próprio na organização política e em troca recebe apoio dela. Resumindo, existem muitos interesses conscientemente comunicados e partilhados; e são variados e pontos livres de contacto com outras formas de associação.

          I. Vamos utilizar o primeiro elemento deste critério a um estado despoticamente governado. Não é verdade que não há um interesse comum nessa organização entre governados e governadores. As autoridades no poder têm de fazer algum apelo ás actividades nativas das pessoas, têm de por alguns dos seus poderes em jogo. Talleyrand disse que um governo pode fazer tudo com baionetas excepto sentar-se em cima delas. Esta declaração cínica é pelo menos o reconhecimento de que os laços de união não são meramente do tipo de forças coersivas. Pode-se dizer, contudo, que as actividades a que se apela são elas próprias não merecedoras e degradantes - um tal governo chama à actividade funcional simplesmente capacidade para o medo. De um certo modo, esta afirmação é verdadeira. Mas ela despreza o facto de o medo não necessitar de ser um factor indesejável na experiência. Cuidado, circunpeção, prudência, desejo de prever eventos futuros para advertir o que é perigoso, estas características desejáveis são o produto tanto do apelo a pôr o impulso do medo em jogo como uma uma submissão cobarde e abjecta. A dificuldade real é que o apelo ao medo é isolado. Evocando o medo e a esperança numa recompensa específica e tangível - digamos conforto e tranquilidade - muitas outras capacidades ficam por tocar. Ou então, são afectadas, mas de um modo tal que são pervertidas. Em vez de operarem nelas próprias elas são reduzidas a meras servidoras de conseguir prazer e evitar dor.

          Isto é equivalente a dizer que não há um número extensivo de interesses comuns; não há uma liberdade de acção entre os membros de um grupo social. Estimulação e resposta são excessivamente unilaterais. De modo a terem um grande número de valores em comum, todos os membros do grupo têm de ter igualdade de oportunidades para os receber dos outros. Tem de haver uma grande variedade de percepções e experiências partilhadas. De outro modo, as experiências que educam alguns para amos, educam outros para escravos. E a experiência de cada grupo perde em significado, quando a livre troca de diferentes modos de experiência de vida é inibida. A separação entre uma classe privilegiada e uma classe subordinada previne a endosmose social. Os males que afectam a classe superior são menos materiais e menos perceptíveis, mas igualmente reais. A sua cultura tende a ser estéril, para que se possa voltar e alimentar de si mesma; a sua arte torna-se uma mostra de ostentação e artificial; a sua riqueza luxuriante; o seu conhecimento sobre-especializado; os seus modos mais fastidiosos que humanos.

          A falta de comunicação livre e equitativa que surge de uma variedade de interesses partilhados faz com que a estimulação intelectual seja desequilibrada. Diversidade de estimulação significa novidade, e novidade significa desafio à reflexão. Quanto mais actividade for restrita a algumas linhas definidas - tal como é quando existem linhas classificativas rígidas impedindo a interacção de experiências partilhadas - mais acção tende a tornar-se  rotina por parte da classe em desvantagem, e caprichosa, sem objectivos, e explosiva por parte da classe que tem a posição materialmente favorável. Platão definiu um escravo como alguém que aceita do outro as propostas que controlam a sua conduta. Esta condição existe mesmo onde não há escravatura em termos legais. Encontra-se onde quer que o homem esteja envolvido em actividades que possam socialmente ser úteis, mas cujo serviço não entenda nem tenha interesse pessoal nele. Muito é dito acerca da gestão científica do trabalho. É uma visão estreita que restringe a ciência a qual assegura eficiência de operacionalidade aos movimentos musculares. A principal oportunidade da ciência é a descoberta das relações entre o homem e o seu trabalho - incluindo as suas relações com outros que participam - que atrairá o seu interesse no que está a fazer. Eficiência na produção requer frequentemente divisão do trabalho. Mas este é reduzido a uma rotina mecânica a não ser que os trabalhadores vejam as relações técnicas, intelectuais, e sociais envolvidas no que fazem, e se empenhem no seu trabalho devido à motivação fornecida por essas percepções. A tendência a reduzir tais coisas como eficiência na actividade e gestão científica a factores externos meramente técnicos é evidência da estimulação unilateral da reflexão dada pelos que estão no controle da industria - aqueles  que fornecem os objectivos. Devido à sua falta de abrangência e interesse social bem equilibrado, não existe estímulo suficiente para dirigir a atenção para factores humanos e relações na industria. A inteligência é diminuída pelos factores relacionados com produção técnica e "marketing" de bens. Sem dúvida, uma inteligência muito aguda e intensa pode ser desenvolvida nestas linhas estreitas, mas a falha de tomar em conta os factores sociais significantes não quer dizer de modo algum uma ausência de reflexão e a correspondente distorção da vida emocional.

          II. Esta ilustração (cujo objectivo é extender-se a todas as associações em que falte a reciprocidade de interesses) conduz-nos a um segundo ponto. O isolamento e exclusividade de um "gang" põe em realce o seu espírito anti-social. Mas este mesmo espírito encontra-se onde quer que um grupo tenha interesses "só seus" que o desviam de uma interacção completa com outros grupos, de modo que o seu objectivo principal é a protecção do que obteve, em vez de se reorganizar e progredir em relações mais amplas. Caracteriza as nações no seu isolamento em relação a outras; famílias que se isolam nas suas preocupações domésticas como se não tivessem nenhuma ligação com uma vida mais ampla; escolas quando separadas do interesse no lar e na comunidade; as divisões entre ricos e pobres; instruídos e não instruídos. O ponto essencial é que o isolamento contribui para a  rigidez e institucionalização formal da vida, para os ideais estáticos e egoístas no grupo. O facto de as tribos selvagens olharem os estranhos e inimigos de igual modo não é acidental. Deve-se ao facto de terem identificado a sua experiência com uma rígida adesão ao seus costumes do passado. Nessa base é perfeitamente lógico o receio das relações com outros, pois esse contacto pode dissolver os costumes. Certamente originará uma reconstrução. É um lugar comum que uma vida mental alerta  e expansiva depende de uma variada gama de contactos  com o ambiente físico. Mas este principio aplica-se ainda mais significativamente no campo onde estamos aptos a ignorá-lo - a esfera dos contactos sociais.

          Todas as eras expansivas na história da humanidade coincidiram com a acção de factores  que tenderam a eliminar as distâncias entre pessoas e classes que antes pouco se relacionavam. Mesmo os alegados benefícios da guerra, até agora mais que alegados, derivam do facto de os conflitos das pessoas pelo menos reforçarem as relações entre elas e por isso acidentalmente permitem-lhes aprender umas com as outras, e assim expandir os seus horizontes. Tendências para viagens, económicas e comerciais, até agora levaram ao quebrar de barreiras externas; levaram pessoas e classes a relações umas com as outras  mais apertadas e perceptíveis. Resta para a maioria assegurar o significado intelectual e emocional desta aniquilação física do espaço.

          2. O Ideal Democrático. 

Os dois elementos no nosso critério apontam ambos para a democracia. O primeiro significa não só mais numerosos e mais variados pontos de interesse comuns partilhados, mas maior confiança no reconhecimento dos interesses mútuos  como um factor de controle social. O segundo significa não só uma interacção entre grupos sociais ( uma vez isolados até ao ponto em que a intenção pode manter uma separação) mas também mudança nos hábitos sociais - o seu contínuo reajustamento através do enfrentar de novas situações produzidas por variadas relações. E estas duas características são precisamente o que caracteriza a sociedade constituída democraticamente.

          Do ponto de vista educacional, notamos primeiramente que a realização de uma forma de vida social na qual os interesses são mutuamenete interpenetrantes, e onde o progresso, ou reajustamento, é uma importante consideração, faz a comunidade democrática mais interessante que qualquer outra comunidade e é a razão de uma educação deliberada e sistemática. A devoção da democracia para a educação é um facto familiar. A explicação superficial é que um governo baseado em sufrágio popular não pode ter êxito a não ser que aqueles que elegem  e obedecem aos seus governantes sejam educados. Uma vez que a sociedade democrática repudia o princípio da autoridade externa, necessita de encontrar um substituto com disposição e interesse voluntários; estes só podem ser criados pela educação. Mas existe uma explicação mais profunda. A democracia é mais que uma forma de governo; em primeiro lugar é uma forma de vida associativa, de experiência conjunta comunicada. A extensão no espaço do número de indivíduos que participam num interesse de modo que cada um tenha que remeter a sua própria acção à dos outros, e que considerar a acção dos outros para orientar e direccionar a sua própria, é equivalente à quebra das barreiras de classe, raça, e território nacional que impede os homens de se aperceberem de toda a importância da sua actividade. Estes pontos de contacto mais numerosos e mais variados denotam a maior diversidade de estímulos a que um indivíduo tem de responder; consequentemente premiam  a variação na sua acção. Asseguram a libertação de poderes que são suprimidos enquanto as incitações à acção são parciais, na medida em que têm de estar num grupo que na sua exclusividade deixa de fora muitos interesses.

          A abertura da área de interesses partilhados, e a libertação de uma  maior diversidade de capacidades pessoais que caracteriza a democracia, não são evidentemente o produto  de um esforço deliberado e consciente. Pelo contrário, são causados pelo desenvolvimento dos tipos de manufactura e comércio, viagem, migração, e intercomunicação que derivam do comando da ciência  sobre a energia natural. Mas depois de uma grande individualização por um lado, e uma comunidade de interesses mais ampla por outro lado passarem a existir, é uma questão de esforço deliberado para mantê-los e extende-los. Obviamente que a sociedade em que a estratificação em classes separadas seria fatal, deverá ver para isso assegurar que as oportunidades intelectuais sejam acessíveis a todos em termos iguais e fáceis. Uma sociedade dividida em classes somente necessitará de estar especialmente atenta à educação dos seus elementos dirigentes. A sociedade que é versátil, onde existem muitos canais para a distribuição de uma mudança ocorrida num qualquer lugar, deverá apontar para que os seus membros sejam educados para uma iniciativa pessoal e adaptabilidade. Senão, eles serão esmagados pelas mudanças em que forem apanhados  e das quais não se apercebam  do significado ou ligações. O resultado será uma confusão na qual poucos se apropriarão dos resultados das actividades dos outros cegas e dirigidas para o exterior.

          3. A Filosofia Educacional Platónica. 

Os capítulos seguintes serão dedicados a tornar explícitas as implicações das ideias democráticas em educação. No restante deste capítulo vamos considerar as teorias educacionais que foram desenvolvidas em três épocas quando o sentido social da educação era especialmente relevante. A primeira a ser considerada é a de Platão. Ninguém poderia expressar melhor do que ele fez o facto de que uma sociedade está solidamente organizada quando cada indivíduo faz aquilo para que tem aptidão por natureza de modo a que seja útil aos outros ( ou a que contribua para o todo a que pertence); e é obrigação da educação descobrir essas aptidões e progressivamente treiná-las para uso social. Muito do que foi dito é retirado do que Platão conscientemente ensinou primeiro ao mundo. Mas as condições que le não conseguiu intelectualmente controlar levaram-no a restringir as suas ideias na sua aplicação. Ele nunca conseguiu uma concepção da pluralidade indefinida  de actividades que podem caracterizar um indivíduo e um grupo social, e consequentemente limitou a sua visão a um limitado número de classes de capacidades e de combinações sociais.

          O ponto de partida de Platão foi considerar que a organização da sociedade depende em ultima análise do conhecimento da finalidade da existência. Se não conhecermos a sua finalidade, ficaremos à mercê de acidentes e caprichos. A não ser que conheçamos a finalidade, o bem, não teremos nenhum critério para decidir racionalmente quais as possibilidades que deverão ser promovidas, nem como as combinações sociais deverão ser ordenadas. Não teremos nenhuma concepção dos limites correctos e distribuição de actividades - aquilo a que chamamos justiça - como uma característica da organização individual e social. Mas como deverá o conhecimento do bem final e permanente ser atingido? Ao lidarmos com esta questão chegamos ao aparentemente insuperável obstáculo de que esse conhecimento não é possível salvo numa ordem social justa e harmoniosa. Fora daí a mente é distraída e enganada por falsas avaliações e falsas perspectivas. Uma sociedade desorganizada e facciosa coloca uma série de diferentes modelos e normas. Sob essas condições é impossível para o indivíduo atingir consistência de pensamento. Só um todo completo é totalmente auto-consistente. A sociedade que assenta sob a supremacia de qualquer factor sobre outro sem prestar atenção ás suas pretensões racionais ou proporcionais, inevitavelmente vai num mau caminho. Recompensa umas coisas e censura outras, e cria uma mentalidade cuja unidade aparente é forçada e distorcida. A educação provém em última análise dos modelos fornecidos pelas instituições, costumes e leis. Só num estado justo estes serão de modo a dar a educação certa; e somente aqueles que tiverem mentes correctamente treinadas serão capazes de reconhecer o fim, e ordenar os princípios das coisas. Parecemos ser apanhados num círculo sem solução. No entanto, Platão sugeriu uma saída. Alguns homens, filósofos ou amantes da sabedoria - ou verdade - podem aprender pelo estudo pelo menos os perfis dos modelos correctos da verdadeira existência. Se um governante poderoso formar um estado com estes modelos, então as suas normas poderão se preservadas. Uma educação poderia ser dada de modo a examinar minuciosamente os indivíduos, descobrindo aquilo para que eram bons, e fornecendo um método de atribuir cada um ao trabalho na vida  para o qual a sua natureza o talhou. Cada um fazendo a sua parte, e nunca transgredindo, a ordem e unidade do todo seria mantida.

          Seria impossível encontrar em qualquer esquema de pensamento filosófico um reconhecimento mais adequado por um lado do significado educacional das combinações sociais e, por outro lado, da dependência dessas combinações em relação aos meios usados para educar o jovem.  Seria impossível encontrar um sentido mais profundo da função da educação em descobrir e desenvolver as capacidades pessoais, e treiná-las para que se relacionem com as actividades dos outros. Contudo a sociedade na qual a teoria foi proposta era de tal modo pouco democrática que Platão não conseguiu encontrar uma solução  para o problema cujas características ele claramente viu.

          Enquanto ele afirmou com ênfase que o lugar do indivíduo na sociedade não deve ser determinado pelo nascimento ou riqueza ou qualquer condição social, mas sim pela sua natureza tal como descoberta no processo de educação, ele não se apercebeu da singularidade dos indivíduos. Para ele os indivíduos distribuem-se naturalmente por classes, e num muito pequeno número de classes. Consequentemente as funções da educação de testar e examinar minuciosamente só mostram a qual das três  classes um indivíduo pertence. Não havendo o reconhecimento de que cada indivíduo constitui  a sua própria classe, não pode haver reconhecimento da infinita diversidade de tendências activas e combinações de tendências  de que um indivíduo é capaz. Existiriam apenas três tipos de faculdades ou poderes na constituição do indivíduo. Assim a educação depressa atingiria  um limite estático em cada classe, pois só a diversidade provoca mudança e progresso.

          Em alguns indivíduos, os desejos dominam naturalmente; são atribuídos à classe trabalhadora e comerciante, que expressa e supre as necessidades humanas. Outros revelam, pela educação, que dominando os desejos anteriores têm uma disposição generosa, extrovertida, peremptoriamente corajosa. Tornam-se os cidadãos-subordinados do estado; os seus defensores na guerra; os seus guardas internos na paz. Mas o seu limite é fixado  pela sua falta de razão, que é a capacidade de abranger o universal. Os que possuem isso são capazes do mais alto tipo de educação, e tornam-se com o tempo os legisladores do estado - visto que as leis são o universal que controla o particular da experiência. Assim não é verdade que em intenção, Platão subordinou o indivíduo ao todo social. Mas é verdade que  faltando-lhe a percepção da singularidade de cada indivíduo, da sua incomensurabilidade com os outros, e consequentemente não reconhecendo que a sociedade pode mudar e no entanto ser estável, a sua doutrina de poderes limitados e classes origina a ideia da subordinação da individualidade.

          Não podemos melhorar a convicção de Platão de que o indivíduo é feliz e a sociedade está bem organizada quando cada indivíduo tem atribuída a actividade para a qual foi naturalmente equipado, nem a sua convicção de que é tarefa principal da educação fazer descobrir este equipamento ao seu possuidor e treiná-lo para o seu uso efectivo. Mas o progresso no conhecimento tornou-nos cientes da superficialidade da aglomeração dos indivíduos e dos seus poderes originais numas poucas classes vincadamente caracterizadas proposta por Platão; ensinou-nos que as capacidades originais são indefinidamente numerosas e variáveis. Não é mais do que o outro lado desta questão dizer que no grau em que a sociedade se tornou democrática, organização social significa a utilização de qualidades  dos indivíduos específicas e variadas, não estratificação por classes. Apesar da sua filosofia educacional ser revolucionária, foi nada mais que a sujeição a ideais estáticos. Ele pensou que as mudanças ou alterações eram evidência de um movimento sem lei; que a verdadeira realidade era imutável. Assim enquanto ele teria mudado radicalmente  o estado da sociedade existente, o seu objectivo era construir um estado no qual consequentemente a mudança não teria lugar. O objectivo final da vida é fixo; dado um estado estruturado com o seu fim em vista, nem mesmo os mais pequenos detalhes deverão ser alterados. Mesmo que eles possam não ser inerentemente importantes, no entanto se for permitido eles irão acostumar as mentes dos homens à ideia de mudança, e assim seriam dissolventes e anárquicos. A falha da sua filosofia torna-se aparente pelo facto de que ele não podia confiar em melhorias graduais na educação para levar a uma melhor sociedade que deveria então melhorar a educação, e assim por diante indefinidamente. A educação correcta não poderia existir enquanto não existisse um estado ideal, e depois disso a educação seria simplesmente devotada à sua conservação. Para a existência deste estado ele foi obrigado a confiar  em algum feliz acidente através do qual a sabedoria filosófica  calharia acontecer simultaneamente com a posse do poder governativo no estado.

          4. O Ideal "Individualista" do Século Dezoito. 

Na filosofia do século dezoito encontramo-nos num circulo de ideias muito diferente. "Natureza" ainda significa qualquer coisa antitética para a organização social existente; Platão exerceu uma grande influência sobre Rousseau. Mas a voz da natureza agora fala pela diversidade do talento individual e pela necessidade de livre desenvolvimento  da individualidade em toda a sua variedade. A educação de acordo com a natureza fornece o objectivo e o método de instrução e disciplina. Além disso, o legado nativo ou original foi concebido, em casos extremos,  como não social ou mesmo anti-social. As combinações sociais foram pensadas como meros expedientes externos  pelos quais estes indivíduos não sociais podem assegurar  uma maior quantidade de felicidade privada para eles próprios.

          Todavia, esta afirmação transmite apenas uma ideia inadequada do verdadeiro significado do movimento. Na realidade o seu interesse principal era no progresso e no progresso social. A aparente filosofia anti-social era a máscara de algum modo transparente para um ímpeto dirigido a uma sociedade mais ampla e livre - para o cosmopolitismo. A ideia positiva era a humanidade.  Como  membro da humanidade, sendo distinto de um estado, as capacidades dos homens serão libertadas; enquanto existindo organizações políticas os seus poderes eram atrapalhados e distorcidos para convirem aos requisitos e interesses egoístas dos governantes do estado. A doutrina do extremo individualismo era no entanto a contrapartida, o reverso, dos ideais de perfeição indefinida do homem e da organização social  tendo um alcance tão largo como a humanidade. O indivíduo emancipado tem de se tornar o orgão e agente de uma sociedade compreensiva e progressiva.

          Os precursores destes princípios foram vivamente conscientes dos males do estado social nos quais eles próprios se encontravam. Atribuíram esses males ás limitações impostas pelos livres poderes dos homens. Essa limitação era tanto distorcedora como corruptiva. A sua apaixonada  devoção pela emancipação da vida das restrições externas que operavam com a vantagem exclusiva da classe a que o sistema feudal do passado consignou o poder, encontrou formulação intelectual  na adoração da natureza. Dar à "natureza" um balanço completo era substituir uma ordem social artificial, corrupta, e injusta por um novo e melhor reino de humanidade. Uma fé sem limites na Natureza como um modelo e poder de trabalho foi fortalecida pelas vantagens da ciência natural. Um exame da igreja e estado livre de preconceitos e impedimentos artificiais revelou que o mundo é um palco da lei. O sistema solar Newtoniano, que expressava o reino da lei natural, era um palco de harmonia maravilhosa, onde todas as forças se encontravam equilibradas com todas as outras. A lei natural teria dado o mesmo resultado nas relações humanas, se os homens simplesmente se libertassem das restrições coersivas artificiais impostas por eles próprios.

          A educação de acordo com esta natureza era pensada como o primeiro passo para assegurar esta sociedade mais social. Via-se claramente que as limitações políticas e económicas eram em última análise dependentes das limitações de pensamento e sentimento. O primeiro passo para libertar o homem destas correntes externas era emancipá-lo das correntes internas ou falsas convicções e ideais. O que era chamado vida social, instituições existentes, eram demasiado falsos e corruptos para serem instruídos neste trabalho. Como se poderia esperar empreender este trabalho  quando este empreendimento significava a sua própria destruição? "Natureza" deve então ser o poder para o qual o empreendimento deveria ser deixado. O mesmo se passa com  a teoria extremamente sensacionalista do conhecimento que partiu desta concepção. Insistir que a mente é originalmente passiva e vazia era um modo de glorificar as possibilidades da educação. Se a mente fosse uma folha em branco para nela se escrever com objectos, não haveriam limites para as possibilidades da educação por via do ambiente natural. E uma vez que o mundo natural dos objectos é um palco de "verdade" harmoniosa, esta educação infalivelmente produziria mentes cheias com a verdade.

          5. A Educação Como Nacional e Social. 

Assim que o primeiro entusiasmo pela liberdade se esvaneceu, as fraquezas da teoria acerca do lado construtivo tornaram-se óbvias. Deixar simplesmente tudo para a natureza era, no fim de contas, nada mais do que negar a própria ideia de educação. ; acreditava-se nos acidentes de circunstância. Não apenas se requeria algum método mas também algum orgão positivo, alguma agência administrativa para se encarregar do processo de instrução. O "desenvolvimento completo e harmonioso de todos os poderes", tendo como contrapartida social uma humanidade esclarecida e progressiva, requeria uma organização definida para a sua realização. Aqui e ali os indivíduos privadamente poderiam proclamar os princípios; eles não poderiam executar o trabalho. Um Pestalozzi poderia tentar experiências  e exortar pessoas propensas filantropicamente tendo riqueza e poder para seguir o seu exemplo. Mas mesmo Pestalozzi viu que qualquer procura efectiva do novo ideal de educação requeria o suporte do estado. A realização da nova educação destinada a produzir a nova sociedade estava, no fim de contas, dependente das actividades dos estados existentes. O movimento para a ideia democrática torna-se inevitávelmente um movimento para escolas publicamente dirigidas  e administradas.

          Enquanto a Europa estava preocupada, a situação histórica tinha identificado o movimento para uma educação suportada pelo estado com o movimento nacionalista na vida política - um facto com significado incalculável para os movimentos subsequentes. Sob a influência do pensamento Alemão em particular, a educação tornou-se uma função cívica  e a função cívica identificava-se com a realização do ideal  de estado nacional. O "estado" era substituído pela humanidade; o cosmopolismo deu lugar ao nacionalismo. Formar o cidadão, não o "homem", tornou-se a finalidade da educação.1 A situação histórica a que se fez referência são os pós-efeitos das conquistas Napoleónicas, especialmente na Alemanha. Os estados Alemães sentiram (e os acontecimentos  que se seguiram demonstram como esta convicção é correcta) que a atenção sistemática para a educação era o melhor meio           

          1 Existe um muito negligenciado esforço em Rousseau para tender intelectualmente nesta direcção. Ele opôs-se ao estado existente de coisas considerando que  não formavam nem o cidadão nem o homem.. Sob as condições existentes, ele preferiu apostar no último em vez de no primeiro. Mas existem muitas declarações suas que apontam para a formação do cidadão idealmente elevado, e que indicam que o seu própria tentativa como mostrou em Émile, era apenas o melhor esforço que a corrupção dos tempos lhe permitiram delinear.

para a recuperarem e manterem a sua integridade política e poder. Exteriormente eles eram fracos e divididos. Sob a liderança do estado da Prússia eles fizeram desta condição um estímulo para  desenvolvimento  de um sistema de educação pública extensivo e minuciosamente fundamentado.

          Esta mudança de prática trouxe necessariamente uma mudança da teoria. A teoria individualista retrocedeu para segundo plano. O estado fornecia não só os meios para a educação pública mas também o seu objectivo. Quando a prática actual era tal que o sistema escolar, desde os graus elementares até ás universidades, fornecia o cidadão patriótico e o soldado e o futuro oficial de estado e administrador e fornecia os meios para a defesa e expansão militar industrial e política, era impossível para a teoria não pôr enfase no objectivo de eficiência social. E com a imensa importância ligada ao estado nacionalista, rodeada por outros estados competitivos e mais ou menos hostis, era igualmente impossível interpretar a eficiência social em termos de um vago humanitarismo cosmopolitista. Uma vez que a manutenção de uma soberania universal particular requeria subordinação dos indivíduos aos interesses superiores  do estado em defesa militar e em lutas pela supremacia internacional no comércio, eficiência social era entendida como implicando uma espécie de subordinação. O processo educacional era tido como um treino disciplinar mais do que como um desenvolvimento pessoal. Uma vez que, no entanto, o ideal de cultura como um completo desenvolvimento da personalidade persistia, a filosofia educacional tentou a reconciliação das duas ideias. A reconciliação tomou a forma  de uma concepção de carácter "orgânico" do estado. O indivíduo no seu isolamento não é nada; somente com e pela absorção dos objectivos e significados das instituições organizadas é que atinge a verdadeira personalidade. O que parece ser a sua subordinação à autoridade política e a necessidade do seu próprio sacrifício ás ordens dos seus superiores na realidade não é mais que  fazer-se a si próprio a razão objectiva manifestada no estado - o único modo  de ele se tornar verdadeiramente racional. A noção de desenvolvimento que vimos ser característica do idealismo institucional (tal como na filosofia Hegeliana) era apenas um esforço deliberado de combinar as duas ideias de realização completa da personalidade e completa subordinação "disciplinar" ás instituições existentes.

          A extensão da transformação da filosofia educacional ocorreu na Alemanha na geração ocupada pela luta contra Napoleão pela independência nacional, pode ser derivada de Kant, que expressa bem o ideal indivíduo-cosmopolitano inicial. No seu tratado sobre Pedagogia, consistindo em palestras dadas nos últimos anos do século dezoito, ele define educação como o processo pelo qual o homem se torna homem. A espécie humana começa a sua história  submersa na natureza - não como Homem que é um ser de razão, enquanto a natureza fornece apenas o instinto e o apetite. A natureza oferece simplesmente o gérmen que a educação é para desenvolver e aperfeiçoar. A peculiaridade da verdadeira vida humana é que o homem tem de se criar a si próprio pelos seus próprios esforços voluntários; tem de se tornar a ele próprio verdadeiramente moral, racional e ser livre. Este esforço criativo é efectuado pelas actividades educacionais das lentas gerações. A sua aceleração depende dos homens conscientemente se esforçarem por educar os seus sucessores  não para o estado existente de coisas mas para tornar possível uma futura humanidade melhor. Mas é aqui que reside a grande dificuldade. Cada geração tende a educar os seus jovens para viver no mundo presente em vez de o fazer tendo em vista o fim próprio da educação: a promoção da melhor realização possível  da humanidade como humanidade. Os pais educam os filhos para que possam prosperar; os príncepes educam os seus súbditos como instrumentos dos seus próprios propósitos.

          Quem, então, deverá conduzir a educação para que a humanidade possa melhorar? Temos de depender dos esforços de um homem esclarecido e das suas próprias capacidades. " Todas as culturas começam com um homem e expandem-se a partir dele. Só pelos esforços de pessoas com múltiplas tendências, capazes de agarrar o ideal de melhores condições futuras, é possível a gradual aproximação da natureza humana ao seu fim.... Os governantes estão simplesmente interessados nesse treino na medida em que faz os indivíduos melhores instrumentos para as suas próprias intenções." Mesmo o subsídio pelos governantes das escolas geridas privadamente deve ser cuidadosamente salvaguardado. O interesse dos governantes na riqueza da sua própria nação no lugar do que é melhor para a humanidade, fará com que eles, se derem dinheiro para as escolas, queiram traçar os seus planos. Temos neste ponto de vista  uma afirmação expressa do cosmopolitismo individualista característico do século dezoito. O completo desenvolvimento da personalidade do indivíduo identifica-se com os objectivos da humanidade como um todo e com a ideia de progresso. Temos ainda um medo explícito da influência impeditiva de uma educação conduzida e regulada pelo estado sobre a consecução destas ideias. Mas em menos de duas décadas depois disso, os sucessores filosóficos de Kant, Fichte e Hegel, elaboraram a ideia de que a função principal do estado é educacional; em particular a regeneração da Alemanha deverá ser acompanhada por uma educação levada a cabo pelo interesse do estado, e que o indivíduo é por necessidade um ser egoísta e irracional escravizado pelos seus apetites  e circunstâncias a não ser que se submeta voluntariamente à disciplina educativa das instituições de estado e leis. Neste espírito, a Alemanha foi o primeiro país a empenhar-se num sistema educativo público, universal e compulsivo extendendo-se desde a escola primária até à universidade, e a submeter à regulação e supervisão do estado  todas as escolas privadas.

          Dois resultados devem sobressair  desta breve resenha histórica. O primeiro é que termos como indivíduo e concepção social de educação são pouco significativos se afastados, ou retirados, do seu contexto. Platão tinha um ideal de educação segundo o qual se deveria igualar a realização individual  e a coerência social e estabilidade. A sua situação forçou o seu ideal para a noção de sociedade organizada numa estratificação de classes, perdendo-se o indivíduo na classe. A filosofia educacional do século dezoito era altamente individualista na sua forma, mas esta forma era inspirada por um ideal social nobre e generoso: o da sociedade organizada de modo a incluir humanidade, e contribuindo para a indefinida perfeição do ser humano. A filosofia idealista da Alemanha no princípio do século dezanove esforçou-se mais uma vez para igualar os ideais de um desenvolvimento livre e completo da personalidade cultural co a disciplina social e subordinação política. Fez do estado nacional um intermediário entre a realização da personalidade privada por um lado e da humanidade pelo outro. Consequentemente, é igualmente possível estabelecer o seu princípio com igual verdade quer em termos clássicos de "desenvolvimento harmonioso de todos os poderes da personalidade" ou na mais recente terminologia de "eficiência social." Tudo isto reforça a afirmação que abre este capítulo: A concepção da educação como um processo e função social não tem significado enquanto não se define o tipo de sociedade que temos em mente.

          Estas considerações abrem caminho para a nossa segunda conclusão. Um dos problemas fundamentais da educação numa e para uma sociedade democrática tem origem no conflito entre um objectivo social nacionalista e outro mais amplo. A primeira concepção cosmopolitista  e "humanitária" sofria por ser vaga e por ter falta de orgãos definidos para execução e agências para administração. Na Europa, nos estados Continentais particularmente, a nova ideia da importância da educação para o bem estar humano e progresso foi captada pelo interesse nacional e equipada para fazer um trabalho cujos objectivos sociais eram definitivamente estreitos e exclusivos. O objectivo social da educação e o seu fim social foram identificados e o resultado foi um marcado obscurecimento  do significado do objectivo social.

          Esta confusão corresponde à situação existente nas relações humanas. Por um lado, ciência, comércio, e arte ultrapassam as fronteiras nacionais. São largamente internacionais  na qualidade e no método. Involvem interdependências  e cooperação entre as pessoas  habitando em diferentes países. Ao mesmo tempo, a ideia de soberania nacional nunca tinha sido acentuada em política tal como é presentemente. Cada nação vive num estado de hostilidade suprimida e guerra incipiente com os seus vizinhos. Cada um é suposto ser o juiz supremo dos seus próprios interesses, e assume-se que cada um tem interesses que são exclusivamente seus. Questionar isto é questionar a ideia da supremacia nacional que se assume ser básica para a prática política e ciência política. Esta contradição (visto que é isso mesmo) entre a larga esfera de de vida social associada e mutuamente prestável e a estreita esfera  de fins e propósitos exclusivos e no entanto potencialmente hostis, requer da teoria educacional uma concepção do significado de "social" como a função e teste da educação mais clara do que aquilo que se conseguiu até agora.

          Será possível para um sistema educacional ser conduzido por um estado nacional  sem que os plenos fins sociais do processo educativo sejam restringidos, constrangidos e corrompidos? Internamente, a questão tem de se deparar com as tendências, devidas à presente situação económica, que dividem a sociedade em classes algumas das quais são tornadas meras ferramentas para a alta cultura de outras. Externamente, a questão preocupa-se com a reconciliação da lealdade nacional, do patriotismo, com uma devoção superior ás coisas que unem o homem a fins comuns, independentemente das fronteiras políticas nacionais. Nenhuma fase do problema pode ser trabalhada meramente pelo lado negativo. Para isso não é suficiente ver que a educação não é activamente usada como um instrumento  para tornar mais fácil  a exploração de uma classe pela outra. Os meios da escola devem ser assegurados  com tal amplitude e eficiência  de modo a o serem de facto e não apenas um nome apesar dos efeitos das desigualdades económicas, e assegurar a todas as tutelas da nação igualdade de equipamento para futuras carreiras. A realização deste fim exige não só um aprovisionamento adequado dos meios escolares, e um suplemento dos recursos familiares de modo a possibilitar aos jovens o seu usufruto, mas também uma forte modificação dos ideais tradicionais de cultura, dos assuntos tradicionais de estudo e dos métodos tradicionais de ensino e disciplina pois estes mantêm os jovens sob influências educacionais até que estejam devidamente equipados para serem donos da sua própria economia e carreira social. O ideal pode parecer de difícil execução, mas o ideal democrático e de educação é uma farsa contudo trágica ilusão excepto quando o ideal domina cada vez mais o nosso sistema público de educação.

          O mesmo princípio tem aplicação nas considerações que têm a ver com as relações entre nações. Não é suficiente ensinar os horrores da guerra e evitar tudo o que possa suscitar invejas internacionais e animosidades. A tónica deve assentar em tudo o que liga as pessoas em acções humanas e resultados cooperativos, para além de possíveis limitações geográficas. O secundário e provisório carácter de soberania nacional no que diz respeito, à total , livre, e mais produtiva associação e relação de todos os seres humanos uns com os outros deve ser instaurada como uma disposição funcional da mente. Se estas aplicações parecerem remotas do ponto de vista da filosofia da educação a evidência mostra que o significado da ideia de educação previamente desenvolvido não foi adequadamente abrangido. Esta conclusão está ligada à própria ideia de educação como libertadora da capacidade individual num processo de crescimento dirigido para objectivos sociais. De outro modo um critério democrático de educação só pode ser inconsistentemente aplicado.

          Resumo. 

Visto que a educação é um processo social, e existem vários tipos de sociedade, o critério para a crítica e construção educacional implica um ideal social particular. Os dois factores seleccionados pelos quais se deve medir o valor de uma forma de vida social são o prolongamento no qual os interesses de um grupo são partilhados por todos os seus membros, e a plenitude e liberdade com que cada um inter-age com outros grupos. Uma sociedade indesejada, por outras palavras, é aquela que internamente e externamente estabelece barreiras à livre relação e comunicação da experiência. A sociedade que providencia a participação nos seus bens de todos os membros em igualdade de circunstâncias e que assegura um reajuste flexível das suas instituições através da interacção das diferentes formas de vida associativa é até aqui democrática. Tal sociedade deve ter um tipo de educação que dê aos indivíduos um interesse pessoal nas relações e controle sociais, e hábitos da mente que assegurem alterações sociais sem introduzirem desordem.

          Três filosofias históricas típicas da educação foram consideradas neste ponto de vista. Achou-se que a Platónica tinha um ideal formalmente bastante similar ao referido mas o seu funcionamento era comprometido por considerar a classe em vez do indivíduo como unidade social. O individualismo no século dezoito considerou-se como envolvendo a noção de uma sociedade tão vasta como a humanidade, de cujo progresso o indivíduo devia ser o orgão. Mas faltava-lhe algum agente que assegurasse o desenvolvimento do seu ideal tal como foi evidenciado pelo seu insucesso quando aplicado à natureza. As filosofias idealistas institucionais do século dezanove preencheram esta lacuna fazendo do estado nacional o agente, mas ao fazê-lo estreitaram a concepção do objectivo social para aqueles que eram membros da mesma unidade política e reintroduziu a ideia de subordinação do indivíduo à instituição.

Olga Pombo opombo@fc.ul.pt