Professores

de

Mário de Carvalho

Quando à noite um grupo de amigos  se reencontra e a conversa vai descaindo para os velhos tempos e se evocam as velhas correrias, as velhas aulas, os velhos professores hão-de reparar que os risos se tornam forçados, os entusiasmos fictícios os gestos moles, ma convivência pastosa de quem já pouco tem em comum. Passa-se tempo, faz-se tempo, perde-se tempo. Alguém mexe obsessivamente num bibelô, trocam-se olhares furtivos, o mais escondido dos circunstantes, entre dois bocejos, ajeita o relógio. Vamos trabalhando o riso, tentando salvar a noite. Todos temos histórias - sempre as mesmas histórias - todos andámos pelos liceus, todos fomos injustiçados, todos fomos finos psicólogos, todos fomos atentos observadores, todos fomos pequeninos heróis, todos fomos indefesas vítimas, todos fomos algozes gelados, lamentavelmente cruéis. Todos acrescentamos, avivamos e lustramos aquelas tontices do passado. E todos sabemos que nada há de novo, nestes nossos serões, nem nunca mais haverá...

A mim, dá-me agora para escrever sobre as neves de antanho, com a melancolia com que o velho Professor Chips ia remoendo os nomes dos alunos desaparecidos: por onde andarão aquelas personagens que nos divertiram, espantaram ou aterrorizaram? Terão eles sabido que, de uma forma ou de outra, para o bem e para o mal, deixaram marcas - em tantos casos insuspeitadas - nos seus alunos daquele tempo?

Recordo o cheiro entranhado das antigas salas de aula que me parecia provir sempre de aparas de lápis, de borrachas, de gizes, materiais que, em boa verdade, não cheiram a nada. E ainda me parece ter debaixo das mãos as maceradas tampas de carteira, de verniz velho, cruzado de riscos, com crateras, canais, montanhas e mares que não precisavam de muita imaginação para figurarem o solo lunar ou os vales misteriosos lá das Áfricas, atrás dos montes longínquos onde os elefantes iam morrer e legar as suas presas.

Em cima de um estrado, com um quadro de ardósia por detrás, inevitavelmente lascado, junto a uma pobre secretária, dezenas de homens e mulheres sofredores, tiveram, ano após ano, a incumbência de me ilustrar, a mim e a outros trinta gaiatos que sentiam como ponto de honra, às vezes ostensivo e grosseiro, o fingir que aquilo não era nada com eles. E não havia da nossa parte, nem a mais pequena contemplação, nem uma ponta fugaz de compaixão por aquelas pessoas. Resistíamos, estávamos ali a resistir. Não contra um sistema, não contra uma opressão, não em prol de uma dignidade ofendida, não por qualquer causa que é pudesse ser qualificada como nobre, mesmo à escala de uma sala de aula, mas apenas porque , a nossa afirmação pessoal assentava nessa rebeldia. Lá em cima do estrado situava-se o outro. O outro não sabia nada de índios, nem de "cow-boys" nem de juramentos de sangue, nem de Sandokan, nem de Rocambole, nem de D'Artagnan O outro queria era respostas sobre a orientação dos cristais, ou a classificação do monotrémato. O outro não brincava às mesmas coisas. O outro não estava a crescer. O outro que não se deixasse ir abaixo, que se pusesse em guarda, porque tudo faríamos para lhe complicar a existência!

Como é que nós, sabendo nada da vida, éramos tão endurecidos? Se calhar é mesmo assim: tem-se o coração empedernido quando não se sabe nada da vida. Talvez por isso fôssemos tão insensíveis aos problemas e às inseguranças dás criaturas que se sucediam sobre o estrado.

Pelos tempos fora, fui guardando dos meus professores, umas frases, uns relances, umas atitudes que nunca mais esqueci. Alguns erros, também: tenho pronunciado mal certas palavras inglesas porque um professor dá disciplina, aliás excelente, não atinava com elas. Recusei-me, durante anos, a usar a expressão "em ordem a" porque um mestre de Português, fortemente repugnado, a rejeitou como anglicismo espúrio. Depois encontrei-a, repetidamente em Francisco Manuel de Melo...

Num certo ano, tive quatro professores de Francês: uma balzaquiana, já muito grávida e assaz simpática que dava beijinhos a toda a gente que fosse capaz de se desembaraçar dum conjuntivo; depois, em substituição, uma senhora minúscula, muito mirrada, que lá ficava quieta no seu sítio, a assistir com um sorriso envergonhado às ribaldeiras escandalosas que atroavam aquelas paredes. De vez em quando, acentuava o sorriso, chamava um de nós com um dedo trémulo e sussurrava-lhe ao ouvido: "Sr. número tal, tem uma falta de castigo. Faça o favor de sair..." Alguém percebeu que a senhora merecia melhor sorte e houve nova substituição: um velhote muito pequenino, muito magro e muito teso, de chapéu de coco, fato escuro apertado, alvíssimos e abundantes bigodes republicanos, passou a ocupar o estrado. Era jacobino. Amava desveladamente a República. Contava peripécias do Bernardino Machado e do Afonso Costa. No meio da balbúrdia das aulas tentava transmitir-nos a ideia que tinha da fonética francesa. Nunca passou da fonética. Ele ditava e a gente (enfim, um ou outro...) escrevia páginas e páginas com frases como: "o e final antes de t, lê-se ë..." Não aqueceu o lugar. A despedida, no pátio, quis apertar a mão aos seus rapazes. Alguns dos seus rapazes mais altarrões, encheram-lhe as abas do chapéu com pedrinhas. Finalmente, apareceu um jovem de óculos e cachecol (a quem logo foi atribuída uma alcunha parva) que tinha a tineta dos cadernos devidamente sublinhados a várias cores. A chatice que aquilo dava e a ronceirice daquelas aulas... Um belo dia, a propósito de uma gravura do livro único, desata a falar de arte. Ainda me recordo do tema que lhe ocorreu espontaneamente e que o empolgou: "como a falsidade na representação pode acentuar o verismo". Era a estátua do general não sei quantos, eram os cavalos suspensos de Géricault, era um sem número de exemplos e referências que lhe ocorriam em cachoeira. Não houve aula de francês nesse dia, houve a revelação absolutamente inesperada de um homem capaz de falar apaixonadamente daquilo que amava. No dia seguinte voltaram as lições ao ramerrão, e as nossas relações às quezílias dos sublinhanços a vermelho e a azul já nem sei de quê. Deve ter dado por perdido aquele latim que, em hora de distracção, gastou connosco, a atirar pérolas a quem as não merecia. Se, à noite, regressado a casa, caído em si, pensou assim, enganou-se Nada daquilo tombou em saco roto. Se ele ainda for vivo, que fique ao menos a sabê-lo Ainda tenho presentes aqueles arrobos entusiasmados o cachecol sempre á descair, o livro aberto com um dedo apontado para as gravuras, o sorriso, raro e feliz, os gestos largos...

Mais tarde,  lá para o meu sexto ano, no liceu Camões, havia um santo homem que ensinava Latim, de uma maneira pausada e sonolenta Nós, adolescentes esclarecidíssimos, entendíamos (toe o estudo do Latim era um puro exercício de crueldade mental. Lá estudávamos para a nota. Fazíamos o frete.

Nunca mais esqueço o entusiasmo com que ele nos contou como Aníbal (pronunciava Hannibal, à latina, com agá aspirado e acento na primeira sílaba) tinha levado os seus elefantes pelos Alpes, por sítios onde um homem não passava. Fazia uma pausa, olhava-nos com um ar penetrante e acrescentava, levantando um indicador malicioso: "nem de rastos! ".

Na altura, quem nos dava aulas de Português era Mário Dionísio. A grande fleuma, a voz inalterada, os gestos discretos, a ironia fina - colocando-nos ao nível de quem era capaz de perceber uma ironia - impressionavam os nossos quinze anos. Discorria com uma inteligência, uma capacidade de associação, um maneio cultural que eu nunca tinha encontrado antes. Aqueles textos do programa, noutras circunstâncias rebarbativos e massudos, tomavam ali vida, impregnavam-se de história, naquela sala de aula. E alguns dos autores distantes tornavam-se (tornaram-se) interlocutores indispensáveis.

lima vez, li desastradamente um soneto de Bocage. "Bom, acabámos de assassinar o Bocage - disse-me, tranquilamente - Vamos agora esquartejá-lo".

Passaram-se os tempos, as personagens do estrado foram substituídas pelas dos anfiteatros. Lá tive, em dada altura, como os outros do meu curso, de me sujeitar às aulas de Medicina Legal. Aí pontificava, também no sarcasmo, o Professor Arsénio \'unes. Sempre com uma bata encardida de nódoas suspeitas, encarava com um profundo desdém aqueles estudantes de Direito, inacreditavelmente ignorantes, cheios de horror aos mortos, alheados das manchas de sangue, das impressões digitais, dos livores cadavéricos, dos tiros de caçadeira "embalados". Apontava para uma maca, onde jazia uma vítima nua, com uma etiqueta num pé e explicava: "isto, meus senhores é um cadáver. É preciso não confundir um cadáver com um defunto. 0 defunto é respeitável, atam-lhe um lenço aos queixos, choram-no. Um cadáver é uma coisa em que se mexe!" Nunca consegui adaptar-me a esse ponto de vista, mas fiquei sabendo que ele existia...

Todas ás histórias e personagens que me vão ocorrendo davam provavelmente para um livro. se calhar inútil e maçador. Nunca conseguiria provocar nos outros á impressão que alguns feitios, gestos e palavras dos meus professores deixaram em mim. Daria a tal figura dos convivas quarentões ao serão, entre bocejos.

Tenham ao menos os professores de agora a consolação de saber que o que dizem e que fazem fica (às vezes perversamente) assinalado por uma vida inteira. Sempre é uma pequenina imortalidade...

 

Olga Pombo opombo@fc.ul.pt