O Saber como Placebo

Nuno Nabais

(nunonabais@hotmail.com)

 

Em Portugal, há muito tempo que as universidades estão vazias por fora. Os Departamentos reproduzem-se em circuito fechado, na monotonia das gerações e das tribos internas. Os concursos só são públicos no momento da abertura. Os resultados são sempre privados. Qualquer candidato externo é suspeito. A endogamia nas nossas universidades públicas é a mais elevada da Europa. Também somos, na Europa, o país com maior percentagem de concursos internos contestados judicialmente. Excessivamente incestuoso, o quotidiano dos Departamentos não pode fazer-se senão de golpes de teatro permanentes. É por isso que, do lado de fora, o deserto não pára de crescer. Gerações e gerações de investigadores nunca chegaram a existir, ou simplesmente desapareceram, sem rasto e sem obra. 

No final dos anos 80, Cavaco Silva soube explorar a revolta dos excluídos. Mas  para a tornar no golpe mortal da universidade. Por decreto transformou uma população indiferenciada numa nova casta académica. Ao lado das centenas de investigadores talentosos que a blindagem das universidades públicas tinha expulso, surgiram donas de casa com estudos superiores, velhos professores saneados, respectivas esposas, filhos e sobrinhos. Tudo isso foi transformado em catedrático instantâneo nas universidades privadas. Parecia cumprir-se a democratização do saber, como se fosse quebrado o monopólio do conhecimento até então nas mãos dos funcionários públicos da ciência. Portugal inventou essa figura paradoxal do que seria a nacionalização de um património científico universal feito por empresas privadas.

 O absurdo desta falsificação da ideia de universidade só foi abafado com a alegria imbecil de muitas famílias. É que, subitamente, candidatos a professores e candidatos a alunos, todos tinham um lugar numa qualquer escola superior. Nunca o paraíso se assemelhou tanto a um enorme centro comercial recheado por Senhores Professores Doutores.

Esse golpe de Cavaco Silva contra as aristocracias republicanas que se tinham instalado nas Faculdades do Estado sustentou-se por pouco tempo. A população universitária está a desaparecer a um ritmo assustador. A pressão demográfica sobre as vagas no ensino superior esgotou-se. Esgotou-se também a ilusão das universidades privadas como um negócio infinito. Com contratos precários, foi então fácil encerrar cursos e despedir professores. Algo de semelhante se prepara para as universidades públicas. O Ministério da Ciência e Ensino Superior anunciou ir encerrar os cursos com número insuficiente de inscritos.

Os mais afectados são os dos saberes fundamentais. Mas esses Departamentos, como os de Matemática, Física, Literatura, Filosofia ou Engenharia não descobrem só a desertificação das suas salas de aula. Por detrás dos novos golpes de teatro que se ensaiam secretamente – desta vez, não para progressão mas para expulsão da carreira – tornou-se evidente um novo vazio. Com a urgência em captar novos alunos, os Departamentos universitários estão dispostos a tudo. Até a modificar a sua natureza mais própria. Cursos de Matemática que cada vez mais se confundem com introduções à Informática, cursos de Literatura que se mascaram em ensino de Comunicação, ou cursos de Filosofia que oferecem licenciaturas em Ciência política e Relações internacionais.

O vazio que as nossas universidades foram desenhando à sua volta, entretidas com a sua perpetuação, instala-se agora no interior das suas paredes. Corrompe as almas e os saberes. Descartamo-nos da Matemática, da Literatura e da Filosofia, só para continuarmos a ser pagos pela tarefa de alimentar o país com mais licenciados.

Portugal é o único país do mundo onde os candidatos à presidência da república exibem, como troféus, os seus títulos académicos. Francisco Louçã, e apenas para sublinhar um estilo juvenil, deixou cair os seus como quem tira a gravata. Daqui a 20 anos a campanha presidencial será ainda e sempre disputada entre Professores e Doutores. Resta saber se serão especialistas em informática, em ciências da comunicação ou em relações internacionais. Mas, deste modo - com as universidades vazias, isto é, sem comunidade de investigadores com que se renovem, e sem património de conhecimentos que reinventem - a universidade existirá ainda?

 

Olga Pombo opombo@fc.ul.pt