A escola de Elias Canetti


"Tudo aquilo me tocou, tudo aquilo amei com raro amor"

Elias Canetti



"Através de mais um portão aberto, olhei para um grande pátio. Ali estavam sentadas talvez duzentas criancinhas, muito chegadas umas às outras; algumas corriam por aqui e por ali ou brincavam no chão. Na maior parte, sentadas nos bancos, seguravam cartilhas nas mãos. Em pequenos grupos de três ou quatro, balançavam-se com forca, ora para a frente ora para trás, e recitavam em voz alta: «Aleph. Beth. Gimel». As cabecinhas morenas moviam-se, ritmicamente, para lá e para cá. Havia sempre uma mais rápida, de movimentos mais impetuosos; e vindo daquelas bocas, soava o alfabeto hebraico como um decálogo nascente...

Eu entrara, entretanto, e esforçava-me por desvendar como ocupavam o tempo aquelas inúmeras crianças. As mais pequenas brincavam no chão. Entre elas encontrava-se um professor, pobremente vestido; na mão direita segurava um cinto em coiro, um cinto para bater, para castigar! Aproximou-se de ar submisso. 0 seu rosto longo era regular e sem expressão, e o olhar mortiço contrastava com toda aquela vivacidade das crianças. Parecia não só nunca poder vir a ser o seu mestre, como ate mal pago. Era um homem novo. A sua juventude, porem, tornava-o paradoxalmente mais velho. Não falava nem uma palavra de francês, e eu nada esperava dele. Sentia-me satisfeito por ali estar no meio daquele barulho ensurdecedor e por poder olhar em roda. Mas tinha-o avaliado mal. Atrás do seu olhar mortiço, escondia-se algo como a ambição. Queria mostrar-me o que os seus meninos sabiam. Chamou um rapazito, abriu-lhe a cartilha debaixo dos olhos, de tal forma que também eu podia ver o texto, e apontava rapidamente ora para uma ora para outra sílaba hebraica. Mudava de linha em todas as direcções. Era preciso que eu não pensasse que o rapaz sabia tudo de cor e que estava a recitar, cegamente, sem ler. Os olhos de garoto faiscavam, enquanto lia em voz alta: “La-lo-manusche-ti-ba-bu”. Não cometeu um erro e nunca gaguejou. Orgulho do seu professor, lia cada vez mais depressa. Quando acabou e o mestre lhe tirou a cartilha, fiz-lhe uma festa na cabeça e elogiei-o, em francês, mas isso percebeu ele. Voltou para o seu lugar e fez de conta que já me não via, enquanto chegava a vez do próximo aluno, tão envergonhado como pronto a errar. 0 professor deixou-o ir, dando-lhe uma leve palmada, e foi buscar mais um ou dois rapazes. Durante todo este quadro o barulho ensurdecedor não abrandou nunca, e as sílabas hebraicas caíam como pingos de chuva no mar agitado da escola.

Outras crianças aproximavam-se, entretanto, e olhavam-me algumas com curiosidade, algumas com atrevimento, algumas com vergonha e algumas, ate, com certa «coquetterie». 0 professor, inabalável, corria, sem piedade, com os envergonhados e deixava só os mais atrevidos. Tudo tinha o seu significado! Ele era o pobre e triste Senhor daquela secção da escola e mal a representação acabou logo lhe desapareceram do rosto todos e quaisquer leves vestígios de orgulho. Apresentei cordialmente os meus agradecimentos, muito embora com certa condescendência, como se eu próprio fosse uma visita importante. Tão satisfeito me sentia que, com a falta de tacto que me perseguiu por toda a Mellah, resolvi voltar no dia seguinte e dar-lhe então algum dinheiro. Ainda fiquei um bocado a ver os meninos a recitar, no seu vaivém balanceado.

Tudo aquilo me tocou, tudo aquilo amei com raro amor".

 

Elias Canetti, As Vozes de Marraquexe
 
(trad. port. de I. Ramalho), Lisboa: 
Diário de Notícias, 2003, pp. 54-56

Olga Pombo opombo@fc.ul.pt