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[Um amigo de Teeteto chamado Protágoras] - [Em defesa de Protágoras] - [A arte da Parteira]
 [Thales e o riso da mulher Trácia] - [
O Testamento de Teofrasto]

 

 


"Um amigo de Teeteto chamado Protágoras"

Platão, Teeteto (trad. de A. Lobo Vilela), Lisboa: Seara Nova, 1947, pp. 48-51

 

SÓCRATES - Tiveste, pois, inteira razão em dizer que a ciência não é mais do que a sensação. Quer se admita, como Homero, Heraclito e os que pensam como eles, que tudo se move como um rio, quer se afirme, como o sapientíssimo Protágoras, que o homem é a medida de todas as coisas, ou como Teeteto que, sendo assim, a sensação se torna ciência, tudo isto significa o mesmo. Poderemos dizer, Teeteto, que é este o recém-nascido que deste à luz,graças aos meus cuidados? Que te parece?

TEETETO - É forçoso reconhecê-lo, Sócrates.

SÓCRATES- Qualquer que seja o valor deste fruto, não foi sem custo que o demos à luz. Agora que já nasceu, temos que celebrar a anfidromiadando voltas com a nossa razão em torno dele, procurando assegurar-nos se o recém-nascido merece que se crie ou não passa duma produção quimérica. Ou entendes que o teu filho deve criar-se, custe o que custar, e não devemos expó-1o? Permites que se examine e não te encolerizas se to levarem, embora seja o teu primeiro filho?

TEODORO - Teeteto aceita isso de bom grado, porque não é nada impertinente. Mas, em nome dos deuses, diz-nos se esta opinião é falsa.

SÓCRATES - É preciso seres muito guloso de discussões, Teodoro, e muito benevolente, para supores que eu sou uma espécie de saco, cheio de argumentos, e julgares que me é fácil tirar um para te provar que estas teorias são falsas. Não vês que, realmente, não sou eu que apresento os argumentos, mas sim aqueles com quem converso, e que por coisa que consiste apenas em receber os argumentos dos homens doutos e acolhê-los como convém ? É isto que vou tentar mais urna vez com este rapaz, sem dizer nada que seja meu.

TEODORO -Tens razão, Sócrates; faze como entenderes.

SÓCRATES - Pois bem, Teodoro, sabes o que me surpreende no teu amigo Protágoras.

TEODORO - Que é ?

SÓCRATES - De um modo geral, agrada-me a sua doutrina de que as coisas são o que parecem ser a cada um; mas o princípio do seu discurso surpreendeu-me. Não percebo por que motivo no começo da Verdade, não disse que a medida de todas as coisas é o porco, o cinocéfalo, ou qualquer animal ainda mais estranho entre os que são susceptíveis de sensações. Seria unia introdução magnífica e de uma soberba desenvoltura, porque mostrava que, enquanto nós o admiramos como um Deus pela sua sabedoria, ele não vale mais para a inteligência, já não digo do que outro homem, mas do que qualquer girino de rã. Não será assim, Teodoro? Se as opiniões que formamos pela sensação, são verdadeiras para cada um, se ninguém melhor que o próprio está em condições de saber o que ele experimenta nem de examinar se a sua opinião é verdadeira ou falsa, e, pelo contrário, como tantas vezes se repete, cada um forma por si mesmo as suas opiniões e estas são sempre justas e verdadeiras, porque privilégio, meu caro amigo, há-de Protágoras ser sábio até ao ponto de se julgar com direito de ensinar os outros e receber tão grossas maquias ? Porque seremos nós mais ignorantes e porque havemos de frequentar a sua escola, se cada um é a medida da sua própria sabedoria? Dar-se-á o caso de Protágoras ter dito isto por brincadeira? Quanto ao que me diz respeito e à minha arte de parteiro, e posso dizer também à prática da dialéctica em geral, não falo do ridículo que as atinge. Pois não será uma singular extravagância pretendermos examinar e refutar mutuamente as nossas ideias e opiniões, quando todas elas são verdadeiras para cada tini, se a Verdade de Protágoras é verdadeira e ele não gracejou quando proferiu os oráculos do santuário do seu livro ?


"Em defesa de Protágoras"

Platão, Teeteto (trad. de A. Lobo Vilela), Lisboa: Seara Nova, 1947, pp. 59-63

 

SÓCRATES - Começo pela questão mais difícil. julgo que se pode formular assim: é possível que o mesmo homem, sabendo uma coisa, não saiba essa coisa que sabe ?

TEODORO - Que vamos nós responder, Teeteto ?

TEETETO - Pela minha parte, considero isso impossível.

SÓCRATES - Mas não o será se admitires que ver é saber. Como sairás desta questão intrincada, ou, como costuma dizer-se, deixar-te-ás cair na rede quando um adversário intrépido, tapando-te um dos olhos com a mão, te perguntar se vês o seu fato com o olho fechado?

TEETETO - Direi que não vejo com esse olho, mas que vejo com o outro.

SÓCRATES - Então vês e não vês, ao mesmo tempo, a mesma coisa?

TEETETO - Sim, pelo menos, de certa maneira.

SÓCRATES - Não se trata disso, replicará ele: não te perguntei como, mas sim se aquilo que sabes, não o sabes. Agora é manifesto que vês o que não vês, e como por outro lado admites que ver é saber e não ver é não saber, tira daí a conclusão que te parece.

TEETETO - Pois bem, concluo que resulta o contrário do que eu tinha suposto.

SÓCRATES - Talvez, meu caro, te visses forçado a muitas outras consequências se te perguntassem : pode saber-se a mesma coisa duma maneira penetrante ou superficial, de perto ou de longe, forte ou debilmente? Multas outras perguntas semelhantes poderia fazer-te um peltasta de emboscadas, mercenário dos combates da palavra. Quando te ouvisse dizer que a ciência e a sensação são idên­ticas, lançar-se-ia sobre as sensações do ouvido, do olfato e dos outros sentidos e, mantendo o ataque sem afrouxar, refutar-te-ia até que, aturdido pela sua admirável sabedoria, caísses nas suas redes. Depois de se apoderar de ti e de te algemar, far­-te-ia pagar o resgate que combinassem. Agora vais talvez perguntar-me o que poderia dizer Protágoras em defesa da sua doutrina. Vamos tentar dizê-lo?

TEETETO - Vamos.

SÓCRATES - Fará valer tudo quanto nós temos dito em seu favor, e depois, suponho que, num corpo a corpo, nos dirá, desdenhosamente: «Este excelente Sócrates atemorizou um rapazola perguntando-lhe se um homem pode, ao mesmo tempo, lembrar-se de uma coisa e não a conhecer. Como o rapaz, timorato, respondesse que não, por não prever as consequências do que dizia, Sócrates desviou a conversa de maneira a cobrir de ridículo a minha pobre pessoa. Podes sentir-te satisfeito, Sócrates, mas a verdade é esta: Quando examinas, por meio de perguntas, algum ponto da minha doutrina, se aquele a quem interrogas, respondendo o que eu responderia, escorrega, sou eu que fico vencido; mas, se ele diz uma coisa diferente do que eu diria, é o teu interlocutor que fica vencido e não eu. Supões, por exemplo, que alguém possa admitir que a memória que tem actualmente de uma impressão passada seja uma impressão do mesmo género que a impressão passada que já não sente? De modo nenhum. Supões ainda que ele terá dificuldade em confessar que o mesmo homem pode saber e não saber a mesma coisa? ou, se receia confessá-lo, que poderá admitir alguma vez que aquilo que se tornou diferente seja o mesmo que antes de se modificar, ou que este homem seja um e não muitos e que estes muitos não se multipliquem ao infinito, porque há mudança contínua, se devemos evitar os laços que se podem armar com as palavras? Vamos, homem feliz, prosseguirá Protágoras, sê mais valente, ataca as minhas próprias doutrinas e refuta-as, se puderes, provando que as sensações de cada um de nós não são individuais, ou se o são, não se pode concluir daí que acontece aquilo que parece a cada um, ou, se é forçoso empregar a palavra ser, existe só para aquele a quem parece. Quando falas de porcos e de cinocéfalos, não só revelas a estupidez de um porco, como ainda persuades os teus ouvintes a fazerem o mesmo a respeito dos meus escritos, o que não é digno. Quanto a mim, afirmo que a verdade é como a defini, que cada qual é a medida do que existe e do que não existe, mas que um homem difere infinitamente de outro, precisamente porque as coisas são e parecem umas a este e outras àquele. Longe de negar a sabedoria e o homem sábio, digo, pelo contrário, que o sábio é aquele que, mudando o aspecto dos objectos, os faz parecer e ser bons àqueles a quem pareciam e para quem eram maus. E para que não voltes a esgrimir só com palavras vou explicar-me com mais clareza para te fazer compreender o meti pensamento. Lembra-te, por exemplo, do que já aqui se disse: que os alimentos parecem e são amargos para o doente, e são e parecem o contrário ao homem saudável. Dai não deve concluir-se que um é mais sábio do que o outro, porque não é possível; assim como não se pode concluir que o doente é ignorante por ter aquela opinião, nem que o homem saudável é sábio por ter uma opinião contrária. 0 que importa é fazer passar o doente ao outro estado, melhor que o seu. Acontece o mesmo a respeito da educação: deve-se fazer passar os homens de um estado a outro melhor, mas, enquanto o médico, emprega remédios, o sofista emprega discursos Nunca se consegue que um homem que tem opiniões falsas adquira opiniões verdadeiras acerca do que não existe, nem impressões diferentes das que tem, e que são sempre verdadeiras. Mas admito que um homem que, por má disposição de a Inia, tem opiniões de acordo com esta disposição, mudando esta disposição por uma boa, tenha opiniões diferentes, conformes à sua nova disposição, opiniões que alguns, por ignorância, qualificam de verdadeiras. Eu concordo que umas são melhores que as outras, mas não mais verdadeiras. Quanto aos sábios, meu caro Sócrates, estou longe de os comparar com as rãs: chamo médicos aos que se ocupam do corpo, lavradores aos que cultivam plantas. Afirmo que os lavradores substituem, nas plantas doentes, as sensações más por sensações boas, sãs e verdadeiras, e que os oradores sábios e virtuosos fazem que as coisas boas pareçam justas aos Estados, e não as más. Na verdade, o que parece justo e honesto a cada cidade, é o realmente para ela enquanto ela assim o julgar; somente o sábio faz que o bem, e não o mal, o seja e pareça a cada cidadão. Pela mesma razão, o sofista capaz de dirigir assim os seus discípulos é sábio e merece um alto salário quando a educação deles terminar. É neste sentido que há pessoas mais sábias que outras, embora ninguern tenha opiniões falsas, e tu, quer queiras quer não, tens que resignar-te a ser a medida das coisas, porque tudo quanto dissemos supõe este princípio. Se queres examinar a questão desde o começo, refuta o meu discurso com outro; se preferes interrogar, interroga, pois é um método que nunca se deve recusar; pelo contrário, é até aquele que um homem inteligente deve preferir. Mas em. prega-o como te vou dizer: não faças perguntas capciosas. Seria uma grande contradição que, dizendo-te amante da virtude, fosses desleal na discussão. A deslealdade consiste aqui em não distinguir, na conversa, a disputa da discussão; na- primeira, graceja-se e engana-se quanto se pode; na segunda, tratam-se os assuntos a sério e dirigimo-nos ao interlocutor limitando-nos a apontar-lhe os erros em que caiu, quer por si mesmo, quer em resultado do ensino que recebeu. Se adoptares esta norma, os teus interlocutores deitarão as culpas a si mesmos e não a ti, à sua perturbação e ao seu embaraço; voltarão a procurar-te e animar-te-ão ; sentir-se-ão descontentes consigo mesmos e, fugindo de si, refugiar-se-ão na filosofia, para se renovarem e aperfeiçoarem. Mas, se fizeres o contrário, como a maior parte dos homens, acontecer-te-á também o contrário, e, em vez de tornares filósofos os teus interlocutores, far-lhes-ás odiar a filosofia quando forem mais velhos. Portanto, se quiseres atender ao que te digo, deves evitar o espírito de hostilidade e de disputa a que me referi há pouco, e examinar com brandura e condescendência o que nós pretendemos dizer quando afirmamos que tudo está em movimento e que as coisas são o que parecem ser a cada uni, indivíduo ou Estado. Nesta base examinarás se a ciência e a sensação são idênticas ou diferentes, sem te prenderes, como há pouco, ao uso vulgar das palavras a que a maior parte da gente dá o sentido que lhe agrada, criando mutuamente toda a espécie de dificuldades.,, Aqui tens, Teodoro, o que as minhas forças me permitiram fazer em defesa do teu amigo, fraco socorro dos meus fracos recursos. Se ele ainda estivesse neste mundo, teria defendido as suas ideias com mais brilhantismo.

TEODORO - Estás a gracejar, Sócrates, defendeste-o vigorosamente.


"A arte da parteira"

Platão, Teeteto (trad. de A. Lobo Vilela), Lisboa: Seara Nova, 1947, pp. 25-30

 

SÓCRATES - Pois bem, pobre inocente, nunca ouviste dizer que sou filho da Fenarete, parteira muito hábil e de grande nomeada?

TEETETO - Sim, já ouvi dizer.

SÓCRATES - E não ouviste dizer também que eu exerço a mesma profissão?

TEETETO - Não.

SÓCRATES - Pois fica sabendo que é verdade, mas não o digas a mais ninguém. Os outros ignoram, meu caro, que possuo esta arte e é por isso que lhe não fazem referência quando falam de mim. Dizem que sou um homem extravagante, e só tenho habilidade para confundir toda a gente, a propósito de tudo. Nunca ouviste dizê-lo?

TEETETO - Sim.

SÓCRATES - Queres saber porquê?

TEETETO - Sim, dize.

SÓCRATES - Lembra-te do que acontece com as parteiras, e compreenderás mais facilmente o que quero dizer. Como sabes, nenhuma delas se ocupa do parto de outras mulheres enquanto pode conceber e ter filhos, e só exercem essa profissão quando já não podem procriar.

TEETETO - É certo.

SÓCRATES - Diz-se que este costume provém de Artemisa, que foi encarregada de presidir aos partos sem nunca ter dado -à luz. Ela não quis que as mulheres estéreis fossem parteiras, porque a natureza humana é demasiado fraca para exercer uma arte de que não tem experiência nenhuma; e reservou essas funções às mulheres que já tinham passado a idade de procriar para honrar a semelhança que tinham com ela.

TEETETO - É provável.

SÓCRATES - Não é também provável, e necessário até, que as parteiras conheçam melhor que ninguém se uma mulher está grávida ou não?

TEETETO - Certamente.

SÓCRATES - Além disso, por meio de drogas e de sortilégios, sabem apressar o momento do parto e amortecer as dores, quando querem ; fazem dar à luz as que têm dificuldade, e provocam o aborto se julgam conveniente.

TEETETO - É exacto.

SÓCRATES - Entre as suas aptidões, nunca notaste que são boas casamenteiras, porque sabem que homem e que mulher se devem unir para ter filhos robustos ?

TEETETO –Não, aí está uma coisa que eu não sabia.

SÓCRATES - Pois podes ter a certeza de que se orgulham mais desta aptidão do que de saberem cortar o cordão umbilical. Realmente, pensa um pouco: julgas que a arte de cultivar e colher os frutos da terra é a mesma que faz conhecer em que terra se deve cultivar determinada planta ou semente, ou supões que é diferente?

TEETETO - Não são artes diferentes : é a mesma.

SÓCRATES - E em relação à mulher, meu caro, supões que a arte de semear e a de colher são diferentes ?

TEETETO - Não é provável.

SÓCRATES - Não, realmente. Mas como há uma forma desonesta e arbitrária de acasalar o homem e a mulher de que se encarregam certos medianeiros, as parteiras, ciosas da sua reputação, não querem interferir nos casamentos com receio das censuras que se fazem aos outros medianeiros. No entanto, só as parteiras dignas deste nome podem fazer uma boa distribuição dos casamentos.

TEETETO - Assim parece.

SÓCRATES - Tal é, pois, o oficio das parteiras, que é inferior ao meu. Efectivamente as mulheres não podem dar à luz umas vezes quimeras e outras vezes seres autênticos, o que não é fácil distinguir. Se isso acontecesse, o maior e o mais belo trabalho das parteiras seria distinguir o verdadeiro do falso. Não te parece?

TEETETO - Sim.

SÓCRATES - A minha arte de parteiro compreende todas as funções que as parteiras desempenham, com a diferença que se exerce sobre homens e não sobre mulheres, cuida das almas e não dos corpos. A principal vantagem da minha arte é permitir-me distinguir, com segurança, se o espírito de um rapaz dá à luz uma quimera e uma falsidade, ou um fruto real e verdadeiro. Por outro lado, tenho de comum com as parteiras o ser estéril em matéria de sabedoria; por isso tem fundamento a censura que me fazem muitas vezes de interrogar os outros sem nunca emitir opinião acerca de nenhuma coisa, porque nada sei. E procedo assim porque o deus me impõe o dever de ajudar os outros a dar à luz, mas não me permite parir. É por isso que não possuo sabedoria e não posso gabar-me de nenhuma descoberta que a minha alma tenha produzido. Em compensação, aqueles que convivem comigo, embora a princípio pareçam ignorantes, fazem maravilhosos progressos à medida que recebem a minha influência, se o deus assim lhes permite, não só na sua opinião, mas também na dos outros. É claro, como o dia, que não aprendem nada comigo e encontram em si mesmos as belas coisas que dão à luz; mas, se as conceberam, foi graças ao deus e a mim. Queres a prova disso? Muitos rapazes, desconhecendo o valor da minha assistência e atribuindo a si mesmos os seus progressos, abandonaram-me antes de tempo, quer por instigação alheia, quer de livre vontade. Longe de mim, sob a influência de maus mestres, abortaram todos os gérmenes que traziam em si; e àqueles que eu lhes fiz dar à luz, mal alimentados, deixaram-nos perecer, porque faziam mais caso de mentiras e de vãs aparências do que da verdade, e acabaram por parecer ignorantes a seus próprios olhos e aos dos outros. Arístides, filho de Lisímaco, foi um deles, e há muitos mais. Quando voltam e me pedem insistentemente para os receber no meu grupo, o meu espírito familiar proíbe-me que aceite alguns e permite-me que aceite outros; estes últimos tiram proveito, como da primeira vez. Aqueles que convivem comigo assemelham-se ainda num ponto às parturientes : sentem as dores do parto e experimentam, dia e noite, inquietações mais vivas que as das mulheres. Mas a minha arte é capaz de despertar essas dores e de as fazer cessar. Eis o que faço àqueles que convivem comigo. Alguns há, porém, Teeteto, cujas almas não me parecem prenhes; e, quando reconheço que não precisam de mim, intercedo por eles com todo o carinho, e, graças ao deus, descubro facilmente a quem devo confiá-los. É assim que tenho confiado muitos a Pródico e a outros homens sábios e divinos. Tenho-me alongado tanto nestas considerações, meu caro Teeteto, porque julgo, embora tu duvides, que a tua alma está prenhe e em trabalho de parto. Confia-te, pois, aos meus cuidados, lembrando-te de que sou filho duma parteira e hábil nesse ofício. Quando te fizer perguntas, procura responder o melhor que puderes; e se, depois de examinar a tua resposta, entender que é um fantasma sem realidade, e se o extirpar e deitar fora, não te aborreças comigo, como fazem as mulheres que são mães pela primeira vez. Tenho visto muitos, meu caro amigo, tão irritados contra mim que até eram capazes de me morder por lhes ter tirado qualquer opinião extravagante. Não compreendem que é por benevolência que o faço. Ignoram que nenhuma divindade quer mal aos homens e que eu também não procedo assim por má vontade, mas sim porque não me é permitido, de modo nenhum, aceitar o que é falso nem ocultar o que é verdadeiro. Voltemos, pois, ao princípio e procura dizer-me em que consiste a ciência. Nunca me digas que não és capaz, porque, se o deus quiser e te der coragem, consegui-lo-ás.

TEETETO - Na verdade, Sócrates, assim encorajado por ti, era uma vergonha não empregar todos os esforços para te dizer o que penso. Parece-me que todo aquele que sabe uma coisa sente aquilo que sabe e, segundo julgo neste momento, a, ciência não é mais do que a sensação.


"Thales e o riso da mulher trácia"

Platão, Teeteto (trad. de A. Lobo Vilela), Lisboa: Seara Nova, 1947, pp. 71-78

 

TEODORO – Não temos nós vagar?

SÓCRATES - Certamente, e tenho reflectido muitas vezes, meu divino Teodoro, particularmente neste momento, como é natural que aqueles que passam muito tempo entregues ao estudo da filosofia pareçam ridículos oradores quando se apresentam nos tribunais.

TEODORO-Porque dizes isso?

SÓCRATES -Porque, como acabas de dizer, têm sempre vagar para conversar tranquilamente e à sua vontade uns com os outros. Fazem como nós, que já mudámos de assunto por três vezes, quando a nova questão lhes interessa mais do que a anterior, e é-lhes indiferente que a discussão seja longa ou breve, contanto- que descubram a verdade. Os outros, pelo contrário, não podem perder tempo quando falam. Premidos pela água que corre, não podem falar do que desejariam. Ali está a parte contrária para os coagir com a fórmula de acusação, chamada antomósia, lida perante eles e de cujo conteúdo não podem afastar-se. Estes discursos versam sempre a acusação e a defesa de um escravo como eles e dirigem-se a um senhor que preside e tem nas mãos qualquer queixa. A discussão tem sempre consequências ; o seu estímulo é sempre o interesse pessoal dos oradores e algumas vezes, até, está em jogo a sua vida. Tudo isto os torna impetuosos e violentos, hábeis em adular o senhor com palavras e agradar-lhe com actos; mas as suas almas estiolam e corrompem-se, porque a servidão a que estão sujeitos lhes impede o desenvolvimento, a rectidão e a liberdade, forçando-os a práticas tortuosas e expondo-os, desde a juventude, a graves perigos e a grandes temores. Não podendo suportá-las tomando o partido da justiça e da verdade, voltam-se para a mentira, respondem à injustiça com a injustiça, curvam-se e vergam de mil maneiras, de modo que passam da adolescência à idade madura com o espírito inteiramente corrompido, julgando. que se tornaram hábeis e sábios. Eis, Teodoro, o que são os oradores. Quanto àqueles que fazem parte do nosso coro, queres que tos pinte ou preferes que voltemos ao nosso assunto, sem nos determos nisso, para não abusarmos da liberdade de mudar de assunto a que há pouco nos referimos ?

TEODORO -Não, Sócrates, pinta-os. Como disseste, e muito bem, nós, que pertencemos a este coro, não estamos às ordens da argumentação; pelo contrário, é a argumentação que está às nossas ordens e o desenrolar dos argumentos depende apenas da nossa vontade, porque não temos juizes nem espectadores, como têm os poetas, que presidam às nossas conversas, nos critiquem ou nos dêem ordens.

SÓCRATES - Pois bem, já que assim desejas, vou falar dos, córifeus, porque não vale a pena ocuparmo-nos dos filósofos medíocres. Os verdadeiros filósofos ignoram, desde a juventude, o caminho que conduz à Ágora, aos locais onde funcionam os tribunais, onde reúne o Senado ou as assembleias populares. Não têm olhos nem ouvidos para as leis e decretos apregoados ou escritos; nem lhes passa pela cabeça tomar parte nos manejos das hetairas que disputam os cargos públicos, nas reuniões, nos banquetes e nas orgias com acompanhamento de tocadoras de flauta. Pode acontecer alguma felicidade ou infelicidade ao Estado, um particular pode herdar qualquer defeito dos seus antepassados, homem ou mulher, que o filósofo sabe tanto disso como do número de gotas de água do mar. Nem sequer sabe que ignora tudo isso, porque se abstém de conhecer essas coisas, não por simples gloriola, mas porque, realmente, só o corpo dele está presente e habita na cidade, enquanto o seu pensamento, considerando tudo isso com desdém, coma coisas mesquinhas e sem valor, voa, como diz Píndaro, sondando os abismos da terra e medindo a extensão da sua superfície, esquadrinhando os astros para além do céu, perscrutando a natureza e os seres no seu conjunto, sem nunca descer ao que está perto dele.

TEODORO-Que queres tu dizer com isso, Sócrates ?

SÓCRATES- 0 exemplo de Tales far-te-á compreender, Teodoro. Ele observava os astros e, como andava com os olhos postos no céu, caiu uma vez a um poço. Uma escrava da Trácia, de espírito brincalhão e trocista, riu-se dizendo que ele bem procurava saber o que se passava no céu, mas que não reparava no que tinha diante dele, a seus pés. A mesma coisa se pode dizer a todos os que passam a vida a filosofar. É certo que estes não conhecem parentes nem vizinhos, nem sabem o que eles fazem; sabem apenas se são homens ou criaturas de outra espécie; e põem toda a sua atenção a estudar e a descobrir o que é o homem, o que convém à sua natureza fazer ou suportar, o que o distingue dos outros seres. Compreendes, Teodoro, o que quero dizer?

TEODORO - Sim, e acho que dizes a verdade.

SÓCRATES - É assim, meu caro amigo, o filósofo, nas suas relações privadas e públicas com os seus semelhantes. Quando é obrigado a discutir num tribunal, ou em qualquer outra parte, acerca do que tem diante dos olhos e a seus pés, dá lugar a que se riam dele, como eu disse a princípio, não só as escravas da Trácia, mas também a multidão, caindo, a cada momento, em poços e em toda a espécie de perplexidades, por inexperiência. A sua terrível falta de jeito fá-lo passar por imbecil. Nos assaltos de injúrias, não consegue tirar da sua imaginação nenhuma injúria contra ninguém, porque não conhece os vícios de ninguém, por nunca se ter ocupado disso; então, fica calado e parece ridículo. Quando ouve os outros gabar-se e renderem-se louvores, ri-se, não para dar nas vistas, mas com sãos intuitos, e tomam-no por tolo. Se ouve elogiar um tirano ou um rei, julga ouvir exaltar a felicidade de algum pastor, cabreiro ou vaqueiro, que tira muito leite do rebanho; supõe que os reis apascentam e cuidam de uma espécie de animais mais indóceis e desleais que as rezes dos pastores e que, por falta de tempo, se tornam grosseiros e ignorantes como os pastores, encerrados em muralhas, como estes nos apriscos das montanhas. Se ouve falar de um homem que possui dez mil pletros de terra, como sendo prodigiosamente rico, parece-lhe pouco, habituado corno está a lançar os olhos pelo mundo inteiro. Quanto aos que louvam a nobreza e entendem que um homem é de boas famílias quando conta sete antepassados ricos, pensa que tal elogio é feito por pessoas de vistas baixas e curtas que, por ignorância, não podem abranger todo o género humano nem perceber que cada um de nós tem milhares de antepassados entre os quais há milhares de ricos e de pobres, de reis e de escravos, de bárbaros e de gregos, em todas as famílias. Considera mesquinhez de espírito glorificarem-se de ter vinte e cinco antepassados, fazendo remontar a linhagem a Héracles, filho de Anfitrião. 0 vigésimo quinto antepassado de Anfitrião e o quinquagésimo antepassado daquele foram o que o acaso quis, e o sábio ri-se daqueles que não reflectem nisto nem podem libertar-se desta tola vaidade. Em todas estas ocasiões, o vulgo ri-se do filósofo que umas vezes lhe parece desdenhoso e outras ignorante do que se passa à sua volta, e embaraçado com todas as coisas.

TEODORO - É exactamente isso que acontece, Sócrates.

SÓCRATES - Mas, meu amigo, quando o filósofo consegue atrair alguém para as alturas e este consente em abandonar estas questões: «Que mal te fiz eu e tu a mim ?», para examinar a justiça e a injustiça em si mesmas, investigar em que consiste uma e outra, em que diferem entre si e das outras coisas; se renuncia a inquirir se o rei que possui grandes tesouros é feliz, para considerar a realeza e a felicidade ou infelicidade do género humano, a sua respectiva essência e a maneira como o homem deve naturalmente procurar uma e fugir da outra; quando, a respeito de todas estas questões, esse homem de espírito acanhado, rude e disputador, é compelido a responder, sofre então a pena de talião. Ao ver-se suspenso tão alto, como não está habituado a contemplar as coisas de cima sente vertigens, fica aturdido, embaraçado, tartamudo e presta-se ao riso, não das escravas da Trácia, ou dos ignorantes, porque estes não se apercebem de nada, mas de todos os que tiveram uma educação diferente da dos escravos. Tal é, Teodoro, o carácter de um e outro. Um, a que chamas filósofo, educado no seio da liberdade e da ociosidade, não deve ser censurado por parecer ingénuo e inútil em presença de trabalhos servis, porque não sabe, por exemplo, arrumar uma mala de viagem, temperar comida, ou dizer lisonjas. 0 outro é capaz de fazer tudo isso com habilidade e rapidez, mas não sabe usar o manto como um homem livre, compreender a harmonia do discurso, nem cantar a vida dos deuses e dos homens felizes.


"O Testamento de Teofrasto"

Diógenes Laercio, Vidas, doutrinas e sentenças dos filósofos ilustres (trad. franc. de Robert Genaille), Paris: Garnier-Flammarion, 1965, Vol. I, pag. 246-248



Tradução (do francês) de Pedro Branco

«Tudo vai bem mas, se algum mal me acontecer, eis as minhas últimas disposições: Deixo todos os meus bens mobiliários a Melanto e Pancreon, filhos de Leon. Eis como entendo que se utilize o que me veio de Hiparco: acabar as construções próximas ao Museion e às Deusas, e tentar embelezá-las. Colocar no santuário a estátua de Aristóteles e todas as oferendas que aí se encontram já antes da minha morte. Construir junto do Museion um segundo pórtico tão belo como o primeiro. Colocar no pórtico de baixo os mapas onde estão desenhados os movimentos da terra. Construir também um altar, o mais belo e o mais perfeito que se possa fazer. Fazer executar uma estátua de Nicómaco, em tamanho natural. O trabalho será confiado a Praxiteles, que terá toda a liberdade para as despesas. Colocá-la lá, onde os executores testamentários decidirem. Para o templo e para as oferendas, seja pois assim. O terreno que tenho em Estágira, lego-o a Callinos. 

Dou todos os meus livros a Neleu. Deixo o meu jardim, o meu parque e as casas adjacentes aos meus amigos cujo nome aqui inscrevo, que queiram manter escola e filosofar em conjunto, pois não é possível aos homens estarem sempre em viagem, na condição de que estes bens não sejam nem alienados, nem possuídos privadamente por nenhum deles, mas que permaneçam indivisos como um santuário, e que todos os usem em comum, amigavel e familiarmente, como é conveniente e justo. 

Esses amigos são: Hiparco, Neleu, Straton, Calinos, Démotimos, Démarate, Calistenes, Melanto, Pancréon, Nicipo. Se ele quiser filosofar, Aristóteles, filho de Métrodoro e de Pítias, usufruirá como eles dos mesmos direitos sobre estes bens. Os mais velhos olharão por ele, afim de que ele possa ser também bom filósofo, tanto quanto possível. Serei enterrado no canto do jardim que julgarem mais conveniente, sem fazerem despesas exageradas nem com o meu enterro nem com o meu túmulo. Depois da minha morte, como convém, o templo, a o túmulo, o jardim, o parque, serão confiados a Pompilo, que ali vive, e que cuidará de tudo como tem feito comigo vivo. Os utilizadores destes bens tratarão eles mesmos de lhe pagar o salário. Pompilo e Threptès, que são livres há muito, e que me prestaram grandes serviços, olharão por si próprios sobre aquilo que lhes doei, e sobre aquilo que decidi doar-lhes através de Hiparco, a saber, dois mil dracmas, como eu disse muitas vezes a Melanto e a Pancréon, que estiveram de acordo comigo. Dou-lhes entre outras Somatale, a criadinha. Dos meus rapazes, emancipo desde agora Molon, Timon e Parménon. Quando Manès e Calias, após mais quatro anos de trabalho no jardim, serão emancipados sem merecer reprimendas. Quando os executores testamentários derem a Pompilo a quantidade de móveis que acharem justa, venderão o resto. Darei ainda Carion a Démotimos, e Dona a Neleu. Euboios será vendido. Hiparco dará três mil dracmas a Calinos. Teria declarado Hiparco co-executor testamentário com Melanto e Pancréon, se ele não nos tivesse já ajudado tanto, a Melanto, Pancréon e a mim, em deterimento da sua fortuna. Mas, como vi que não lhes era muito fácil tomar conta sozinhos dos meus negócios e que era melhor pedir a Hiparco que lhes desse uma quantia predefinida, Hiparco dará a Melanto e a Pancréon um talento a cada um. Dará também aos executores testamentários, para as despesas inscritas no meu testamento, o que for preciso a cada um, na altura necessária. Isto feito, Hiparco ficará livre de qualquer dívida para comigo. Se, em meu nome, obtiver algum lucro em Cálcis, este dinheiro pertencer-lhe-á. 

Os meus executores testamentários serão: Hiparco, Neleu, Estratão, Callinos, Démotimos, Callistenes, Ctésarco. Os testamentos, assinados por Teofrasto, ficam depositados em casa de Hegésias, filho de Hiparco. As testemunhas são Calipo de Paleno, Filomelo de Euonimeia, Lisandro e Fílon de Alopece. Olimpiodoro tem outro exemplar assinado pelas mesmas testemunhas. O terceiro exemplar, está nas mãos de Adimanto, a quem foi dado pelo seu filho Andróstenes. Está assinado pelas seguintes testemunhas: Arimnestes, filho de Cléobule, Lisistrato, filho de Fídon de Tassos, Straton de Lampsaca, filho de Arcésilas, Thésippe de Céramée, filho de Thésippe, e Dioscoride d’Épicéphia, filho de Denis.» 

Olga Pombo opombo@fc.ul.pt