Madame Roland

Uma educação burguesa no séc.XVIII

Trabalho realizado por Célia Ludovino e Maria Olga Carvalho no âmbito da cadeira de História e Filosofia da Educação, leccionada pela Professora Olga Pombo, no ano lectivo de 2003/2004.

 

O trabalho visa dar a conhecer, muito brevemente, um exemplo de educação no século XVIII. Trata-se de uma situação muito particular mas que, nem por isso, deixa de estar marcada pelo seu tempo e pelas determinações educativas que lhe correspondem 

1 - Introdução
5 - Biografia
2 - Biografia e Infância

3 - Juventude

4 - Auto retrato

1 - Introdução

Nascida a 17 de Março de 1754, Marie-Jeanne, ou Manon-Phlipon, é filha de Pierre Gratien Phlipon, mestre gravador parisiense, e de Marie-Marguerite Bonout.

Casou com Jean-Marie Roland de La Platière, ministro do interior.

Um julgamento pronunciado no dia 18 de Brumário - segundo mês do calendário da primeira República Francesa (de 23 de Outubro a 21 de Novembro) - e depois de ouvida a acusação pública, condena Marie-Jeanne - Madame Roland - à pena de morte, conforme a lei de 16 de Dezembro de 1792. O julgamento fez-se executar no próprio dia da leitura, a 8 de Novembro de 1793, às 15h30, em praça pública.

Durante o seu cativeiro, de 1 de Junho de 1793, data da encarceração, até 8 de Novembro de 1793, data em que foi executada, escreve velozmente sob o pseudónimo de Jany, as suas memórias. A obra, escrita em papéis grossos comprados pelo guarda da prisão, é publicada posteriormente em 1795 sob o título “Mémoires”.

Madame Roland descreve recordações da sua juventude, tudo o que diz respeito à sua educação, notícias históricas sobre a Revolução e sobre Jean-Marie Roland de La Platière, que viria a ser seu marido.

Tradicionalmente burguesa, a educação que Marie-Jeanne recebeu foi cheia de encanto, beleza e temperada com aquele liberalismo que reina no meio dos artistas abertos a todas as novidades. À medida que o seu carácter ia sendo moldado, ela aprende dança, música e pintura.

Marie-Jeanne foi muito precoce. Gostava mais de estudar do que qualquer outra criança da sua idade. Aos 9 anos interessa-se pela vida de homens ilustres.

Após um período de exaltação religiosa que a conduziu ao convento, para aí melhor preparar a sua primeira comunhão, afasta-se da Igreja romana sem contudo ficar ateia.

Aos 22 anos, descobre Rousseau e, a partir daí , procura pôr em prática os pensamentos tirados das suas leituras.

É como esposa do ministro Jean-Marie Roland que desempenha um papel importante nos primeiros anos da Revolução. Como mulher inteligente que é, havia já reflectido sobre o papel das mulheres na sociedade e pronunciado longos discursos à academia das ciências, letras e artes de Besançon.

Em 1777, a Academia propõe-lhe o seguinte tema: “Como é que a educação das mulheres pode contribuir para tornar os homens melhores.” Madame Roland redige então uma dissertação que envia a Besançon e na qual desenha a identidade das mulheres e se pronuncia sobre a educação ideal. As mulheres são seres doces, que sabem inspirar aqueles que as amam. Têm a delicadeza das flores que agradam pelo brilho. O primeiro efeito da sua influência aparece sob a forma de emoções vivas e doces. As mulheres pagam com dores a glória de serem mães. Têm uma paciência inabalável que resiste até às maiores crises de desespero. São predispostas a tornarem os homens melhores, fazendo nascer sentimentos que os aproximam uns dos outros. Caracterizadas pela sua grande sensibilidade é necessário que esta sensibilidade seja objecto da educação. É a educação que, pela força do hábito e pela autoridade, as obriga a usar convenientemente o lugar que devem ocupar na sociedade de acordo com as ordens da natureza e as convenções.

Há dois inconvenientes que é necessário evitar na educação das mulheres. Primeiro, nunca negligenciar o seu espírito. Segundo, não subordinar os seus conhecimentos à perfeição dos sentimentos. A moral é a ciência das mulheres por excelência. A sua educação pode contribuir a tornar os homens melhores uma vez que, através da elevação do seu espírito, elas podem desenvolver essa sensibilidade e a utilizá-la nos objectos dignos desse exercício. Nutridas de princípios de justiça, de sentimentos de bem-fazer que reúnem interesses diversos, elas inspiram aqueles a quem a natureza deu o direito de lhes tocar. Esposas fiéis, mães afectuosas, mulheres modestas e iluminadas, elas tornam os homens melhores desde que estes o mereçam.

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2 - Infância

Marie-Jeanne nasce em Paris num ambiente familiar honesto. Passa a sua juventude no seio das Belas Artes e é acalentada pelos encantos do estudo. Na sua vida não conhece a superioridade mas o mérito, não preza a grandeza mas a virtude.

O seu pai, Pierre Gratien Phlipon, era um homem activo, robusto e são mas sem instrução. Gravador de profissão, era laborioso, até porque os tempos favoreciam o exercício da sua arte. Empregava muitos trabalhadores,  mantinha relações com artistas, pintores e escultores. Não se pode dizer que fosse um homem virtuoso. Mas tinha muito daquilo a que se chama honra: pagaria por algo mais do que valia mas, por outro lado, ter-se-ia morto se não pagasse o que devia.

A sua mãe, Marie-Marguerite Bonout, era uma mulher de encantadora. Casou aos vinte e seis anos. O seu coração sensível ambicionava uma união com alguém de trato delicado. Mas, por influência dos seus pais, casou com um homem honesto cujos talentos asseguravam a sua existência.

Deste casamento, Marie-Jeanne é a segunda criança a nascer e a sobreviver. Os seus pais tiveram sete filhos mas todos os outros morreram à nascença, na sequência de diversos acidentes.

Uma tia de seu pai, escolhe para ela, nos arredores de Arpajon, uma ama sã e de bons costumes e muito estimada por todos. O seu zelo e os cuidados para com Manon, mereceram-lhe a atenção e a fixação por parte da família. Mais tarde, quando Manon completara dois anos, os seus trabalhos foram dispensados mas manteve uma estreita relação com toda a família, em especial com Manon.

A sabedoria, a bondade, o olhar carinhoso e meigo de sua mãe desde cedo influiram sobre o seu carácter suave e terno. Nunca teve necessidade de ser punida, nem de ser chamada friamente de menina, ou de ser olhada severamente. Antes, sua mãe, com ternura a chamava de minha filha.

Em relação à influência do seu pai na sua educação, este era visto como fraco porque não se impunha. Manon tinha uma forte opinião, não consentia facilmente e, como não sentia a sua autoridade, não sabia ceder. A sua obediência era praticamente nula.

A sua mãe, mais prudente e mais hábil, conseguia-a dominar pela razão ou pelo sentimento.

Manon era naturalmente recolhida, pedia apenas ocupação, e apreendia com solicitude as ideias que lhe eram apresentadas. Esta disposição para aprender era tal que, segundo ela, “…não me recordo de ter aprendido a ler; ouvi dizer que teria aprendido aos quatro anos, e que o castigo de me ensinar, por assim dizer, teria terminado nessa época,...” [pág. 27]

Com  sete anos, foi enviada todos os domingos à instrução paroquial, ou seja, à catequese, afim de se preparar para a comunhão. Lá, repetia de cor o evangelho do dia.

Na sua educação podemos marcar um contraste: Manon era uma criança que ao domingo ia à igreja, ia ver a sua avó materna e passear e que,  durante a semana, ia ao mercado com a mãe, outras vezes sozinha, para fazer compras para a casa.  Esta criança que lia obras sérias que, explicava o círculo da esfera celeste, que manejava o lápis e o escopro e que, com oito anos, era a melhor dançarina da sua idade, era muitas vezes chamada à cozinha para fazer omeletas ou arranjar legumes. Esta mistura de estudos, exercícios e tarefas domésticas preparam-na para enfrentar as vicissitudes da sua sorte.

Tinha cerca de 9 anos quando as ideias e os ideais republicanos a impressionaram, nesta altura nem sonhava que o viria a ser.

O seu tio, ensinou-lhe o latim. E foi grande o seu contentamento por encontrar um novo objecto de estudo.

Em casa, tinha soberanos da escrita, de geografia, de dança e de música. O seu desejo de aprender era tal que: “... levantava-me a partir das cinco horas, quando todos dormiam ainda na casa, deslizava-me devagar com uma pequena jaqueta, sem estar a pensar em calçar-me, até à mesa, colocada num canto do quarto da minha mãe, sobre a qual estava o meu trabalho; e copiava, repetia os meus exemplos com tanto ardor, que meus sucessos tornavam-se rápidos. Os meus mestres eram muito queridos; davam-me longas lições;” [pág. 30]

O senhor Marchand, a quem chamava M. Doucet, que desde os seus cinco anos lhe ensinou a escrever, seguidamente ensinou-lhe geografia e história, era um homem sábio, paciente, claro e metódico.

O seu mestre de música, Cajon, era pequeno em estatura mas grande no ensino do canto. Quanto a Mazon, o mestre de dança. era de uma fealdade terrível. Mignard, uma espécie de gigante espanhol, era o seu mestre de guitarra. Não passou muito tempo nas aulas de viola com o tímido Watrin, pois este parecia-lhe completamente em desordem, nos seus 50 anos, com peruca, lunetas e a vista inflamada. Em recompensa, o reverendo Collomb, confessor de sua mãe, enviou-lhe a sua viola para a consolar e passou ele mesmo a ensinar-lhe guitarra.

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3 - Juventude

Leituras

O gosto pela leitura e a busca do conhecimento sempre estiveram presentes na vida de Marie-Jeanne. Em casa tinha uma pequena biblioteca com livros elementares que devorava. O pai, de tempos a tempos, fazia-lhe ofertas de alguns livros.

Quando acabava de ler os livros novos, voltava a ler os que já tinha lido. “Lembro-me de ler a vida dos Santos, de uma bíblia em velha linguagem, duma velha tradução das guerras civis de Appien, dum teatro turco, em mau estilo, mas que reli algumas vezes. Li também cómicas romanas de Scarron, e algumas colecções (...) As memórias do bravo de Pontis e as da menina de Montpensier, da qual jamais esqueci a altivez e o orgulho (…) A raiva de aprender era tanta que li um tratado de arte heráldica. Tinha gravuras coloridas que me divertiam e eu adorava saber como se chamavam essas figuras.” [pág. 36]

Fenelon comoveu o seu coração e Tasso acendeu a sua imaginação. Algumas vezes, por ordem da mãe, lia em voz alta.

“...ao ler os episódios da ilha de Calipso a minha voz e minha respiração elevavam-se e eu sentia um calor na cara. A minha voz alterava-se com as minhas agitações”. [pág. 39]

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Entrada para o convento

Na preparação para a comunhão começou a ler livros de devoção. Leu avidamente as explicações das cerimónias da igreja e compreendeu o seu significado místico. Pensou seriamente em ter um novo modo de vida dedicado à religião.

“Imaginava-me na solidão do claustro, no seu silêncio e nas grandes ideias românticas que a minha imaginação podia enfatizar”. [pág. 47]

Um dia, pediu aos pais que a metessem num convento porque queria fazer a primeira comunhão com todo o recato exigido. Os conventos funcionavam como escolas externas para alunos do povo que eram ensinados gratuitamente. Foi para o convento tinha 12 anos.

“Cheguei ao convento à tarde, ainda não conhecia os meus colegas. Eram 34 numa sala, com idades entre os 6-18 anos, mas divididos em duas mesas para a refeição e em dois sectores para a resolução de exercícios. Juntei-me aos mais velhos. Era a mais nova entre eles (…) O que a minha mãe me tinha ensinado sobre boas maneiras, ser doce e correcta, não correspondia à brutalidade destes jovens. As religiosas diziam que a minha educação podia servir de exemplo”. [pág. 49]

No convento, e apesar do contra-exemplo dos colegas, manteve-se desperta para a leitura e para o conhecimento. Uma religiosa, com conhecimentos de ortografia, geografia e história, apercebeu-se do seu gosto pelo estudo e, depois de dar aula a toda a classe, ocupava-se dela em particular, fazendo-a repetir a geografia, a história e a gramática. Era uma das melhores a tudo.

Nas horas de recreio não ia correr ou brincar. Retirava-se solitariamente para debaixo das árvores para ler ou para sonhar. Era sensível à beleza das folhas, ao cantar dos pássaros. Os sons majestosos do órgão, a voz tocante das jovens religiosas deixavam-na em êxtase. Em tudo, via a mão da providência.

Foi assim, com fervor e extrema devoção, que se preparou para a sua primeira comunhão.

No convento, recebia todos os domingos a visita do pai e da mãe que a faziam sair para passearem juntos  no jardim.

A chegada de novos alunos ao convento era sempre uma alegria. Numa dada altura chegou ao convento uma menina com uma fisionomia doce e de nome Sophie Cannet. Esta menina não lhe foi indiferente e desde logo procurou saber mais informações sobre ela. Tinha um ar dorido que tocou toda a gente. Era tranquila, não seduzia ninguém.

“A sua tristeza e a sua maneira de ser, tocaram-me. Senti que tinha encontrado uma companheira e que nos tornaríamos inseparáveis”. [pág. 58]

No Inverno, pouco viu a sua mãe mas o seu pai vinha todos os domingos visitá-la e davam os seus longos passeios no jardim. Eram passeios charmosos em que liam versos de Thompson.

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A vida após o convento

Sabendo que a mãe negligenciava o seu apelo para a religião tomou uma decisão: “Vou pôr termo ao sacrifício que me fez separar da minha mãe”. [pág. 62]

A mãe anunciou-lhe que a avó paterna gostaria que lhe fizesse companhia por uns tempos. A situação que lhe propunha era verdadeiramente uma transição da sua separação com ela e da sua aproximação  a outra pessoa.

A sua avó paterna era uma senhora de bom coração e de bom humor. Com maneiras agradáveis, linguagem correcta e riso gracioso. Tinha 65 anos. Era amável para com as pessoas novas. Ficou viúva ao fim de um ano de casamento. Passado algum tempo, passou a ser a instrutora de Manon.

A paz da sua residência e a piedade da sua tia Angélica, irmã da sua avó, combinavam com as disposições do convento. Todas as manhãs, ia com a tia à missa e continuava a dar alguns passeios ao convento para ver a sua amiga Sophie.

Mantinha um desejo secreto de se consagrar à vida religiosa. Mas ao pensar que, sendo filha única, os seus pais nunca aprovariam a sua ida para o convento antes de atingir a maioridade, resolveu manter silêncio acerca disto.

Da biblioteca da avó leu  Saint François-de-Sales e  Santo Agostinho, que eram as suas meditações favoritas, uma doutrina ao amor. Os velhos livrinhos de viagem de forças mitológicas e as Cartas da Madame Sévigné alimentavam a sua imaginação. A sua avó pouco viu do mundo, pois raramente saiu, mas tinha um bom humor que animava as conversas enquanto Manon fazia pequenos trabalhos manuais que ela lhe ensinava.

E assim passou os seus 12-13 anos com a avó paterna.

Ao fim deste tempo voltou para a casa dos pais, para junto da sua mãe. Mas não foi fácil separar-se da avó, pois tinha-se afeiçoado demasiado a ela. A sua despedida foi envolta num grande pranto. Agora, de regresso, recorda com saudade os bons e tranquilos tempos que passou na casa da sua avó, em Saint-Louis, e com a sua tia Angélica.

O seu lar paternal não tinha a acalmia solitária que vivera em casa da sua avó. Assim que chegou, o mestre Cajon continuou a ensinar-lhe música. Adorava ensinar-lhe a teoria e depois passava à prática ensinado-lhe o instrumento e um pouco de composição. Mignard começou a ensinar-lhe guitarra, e Mazon foi novamente contratado para lhe ensinar e aperfeiçoar a dança. Ao senhor Durçais também foram solicitados serviços para lhe ensinar aritmética, geografia, história e a escrita.

O seu pai deu-lhe pequenas obras para fazer. Em recompensa, comprava-lhe, no final da semana, um livro que gostaria de ter. 

O seu tempo era passado nas lições com os mestres e, nos tempos livres, recolhia-se  para ler, escrever e meditar. À tarde executava trabalhos manuais, durante os quais a sua mãe lia, em voz alta e com compaixão, algumas obras históricas, como as dos tempos helénicos, facto que a deixava feliz. Estas leituras não a deixavam “digerir” perfeitamente as coisas ao seu agrado mas inspiravam-lhe a ideia de fazer extractos. Logo pela manhã procurava em papéis o que mais a tinha entusiasmado, depois pegava num livro e lia algumas passagens para poder apreender melhor as ideias.

Nos dias de descanso, iam ao passeio público e o seu pai, agradado com estas ocasiões, conduzia-a a todas as exposições de quadros e diversos objectos de arte, frequentes em Paris. Revelava, desta forma, o seu gosto por aparecer em público, em especial de braço dado com uma jovem menina bem parecida.

Mas Manon preferia muito mais passear no campo. Sentia-se identificada com a natureza propícia à reflexão e em harmonia com o seu coração sensível.

Aos 18 anos ficou doente com varíola. Época da qual guarda recordações profundas, não pelas dores provocadas pela doença mas pela solicitude da mãe. Durante um período de 4 a 5 meses não pôde sair. O campo era essencial para se restabelecer, para respirar ar puro. Em casa, o pai tinha apenas uma pequena biblioteca, da qual Manon já tinha lido tudo.Chegou a ler obras de Direito  e até sobre agricultura e economia, que estudava em falta de outras, pois todos os dias necessitava de aprender qualquer coisa.

Para si não havia como Rousseau. Era sem dúvida a sua leitura preferida. Começou a ler alguns livros que pedia emprestados e outros que alugava. 

O abade Jay, homem grande em tamanho e em espírito, devido à sua idade avançada, pediu que um dos seus parentes fosse para a sua residência afim de se ocupar dele. Esta tarefa coube a Madame d’Hannaches, uma senhora rica, nobre e que demonstrava a toda a gente os seus talentos económicos.

O abade tinha uma sala com uma biblioteca enorme a qual Manon usava a seu belo prazer. Uma dada altura, Madame d’Hannaches precisou de uma secretária e Manon ocupou esse cargo. Escrevia cartas, copiava a sua árvore genealógica e acompanhava-a em visitas a diversas pessoas. Ficava impressionada com a ignorância da Madame d’Hannaches e com a sua má linguagem. Nestas alturas reconhecia e valorizava ainda mais o facto de ter conhecimentos. Mas a morte do abade privou-a da frequência da biblioteca onde encontrara livros sobre historiadores, contos mitológicos e padres da Igreja. Naquela biblioteca aprendeu muita coisa. Leu, entre outros, A História do povo de Deus, de Berruyer, o poema de Joseph, algumas poesias de Voltaire, os Ensaios de moral de Nicole, a Vida dos padres do deserto por Adrien Baillet. Leu também a História Universal de Bossuet, as Cartas de São Jerónimo e o romance de Dom Quixote, além de milhares de outras coisas do mesmo género.

Em relação à religião que professava começou a mostrar-se crítica. Dizia que a primeira coisa que a repugna é a condenação universal de todos aqueles que a desconhecem ou ignoram os mandamentos da Igreja.

Por vezes sentia uma necessidade de espírito difícil de satisfazer. As obras críticas, filosóficas, moralistas e metafísicas eram as suas leituras favoritas. Ocupava-se, essencialmente, com a sua comparação e a sua análise.

O seu gosto pela leitura e a sua sede de conhecimentos era uma fonte que não secava e por isso continuou a ler vários livros: O tratado da tolerância; O dicionário filosófico; As questões enciclopédicas; As cartas do espião turco; O sistema da natureza.

Aplicou-se, com igual atenção, a procurar o que devia fazer e a examinar o que poderia querer. O estudo da filosofia passou a constituir a base da sua felicidade.

Continuou a estudar metafísica e a aperfeiçoar-se a ler poemas. Leu grandes tratados de história e as virtudes dos heróis que os tornaram célebres. “Não houve um ponto de uma acção mais interessante que eu não dissesse: é assim que eu quero agir. E com isto apaixonei-me pelos republicanos, onde encontrei grandes virtudes que suscitavam a minha admiração e homens dignos da minha estima. Deixei-me persuadir pelo seu regime”. [pág. 94]

Em 1771, toma o partido dos republicanos.

Com a morte de Victorin, seu confessor, teve necessidade de encontrar um sucessor. O abade Morel era um homem pequeno em estatura mas grande em espírito e professava uma grande austeridade de princípios. Razão esta, determinante para que Manon o escolhesse.

Houve uma altura em que, no sono profundo, começou a ter sentimentos esquisitos. O primeiro foi de medo, pois não era permitido tirar do corpo qualquer espécie de prazer, excepto durante o casamento legítimo.

“Aquilo que eu tinha sentido podia-se chamar de prazer. Senti-me bastante culpada. Senti uma grande agitação no meu pobre coração. Como evitar tal coisa? Enfim, não o poderia prever. Mas no instante em que aconteceu não tive pena que tivesse acontecido. A maneira que encontrei de me salvar foi pôr-me com os pés descalços no chão frio de Inverno e com os braços em cruz. Pedi ao Senhor para me salvar das tentações do demónio”. [pág. 87]

Da sua experiência, recordava que seriam sentimentos como estes, que agora sentira, que teriam levado S. Bernardo a cobrir-se algumas vezes com neve e S. Jerónimo a cobrir o seu corpo com silício. Acusava-se a si própria por ter tido sentimentos contrários à castidade cristã. Segundo a sua educação, confessou-se ao abade Morel com o qual se comprometeu a não mais ter maus pensamentos.

Um genovês, relojoeiro, e das boas relações de seu pai, ofereceu-lhe a sua biblioteca, para consulta. A física e depois a matemática prenderam-na durante algum tempo. Nollet, Réaumur e Bonnet leu-os todos. Leu também Rivard que a inspirava para a geometria.

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A vida em sociedade:

Nos jantares nada era esquecido: o ar burguês, a aparência de riqueza, os vestidos brilhantes, as boas maneiras, a própria linguagem que se fazia distinguir na trivialidade das expressões. As conversas eram sobre assuntos financeiros, títulos de fortuna, alianças, riquezas, ricos e seus afazeres.

Rapidamente Manon chegou à conclusão que o que apreciava era diferente de tudo aquilo.

Os concertos da Madame Lépine apresentaram-lhe um novo ponto de vista. Possuía um apartamento com uma enorme sala de concertos com a vantagem de se poder ouvir música enquanto se viam os actores e de se poder conversar nos intervalos. Junto de sua mãe, mantinha-se em silêncio, pois assim era prescrito às senhoras, e não cessava de observar e de ouvir. Mas quando estava a sós com a Madame Lépine fazia questões e as respostas surgiam claramente das suas observações.

 Foi então que a Madame Lépine propôs à sua mãe irem a uma “assembleia charmosa”. Nessas assembleias reuniam-se pessoas esclarecidas, senhoras de bom gosto e faziam-se leituras agradáveis. Era, a seu ver, “verdadeiramente delicioso”. Os salões literários realizavam-se às quartas-feiras e a sessão abria com a leitura de algumas peças em verso.

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Os primeiros pedidos de casamento

Manon foi educada de uma maneira austera e recatada. O carácter respeitável de sua mãe, a aparência de alguma fortuna, a qualidade de filha única, podiam ser qualidades sedutoras para alguns dos rapazes. O seu pai todos os dias recebia cartas, para ela, de natureza amorosa. Mas para Manon, a maneira como eram educados era muito mais importante do que ter algum dinheiro. Para o seu pai o mais importante era a riqueza.

“Nenhum dos meus pretendentes me servia. Então, o meu pai veio ter uma conversa comigo. Respondi-lhe que o homem que iria escolher era aquele com quem pudesse comunicar, partilhar os meus sentimentos e os meus pensamentos (...) Em resumo, apenas quero um homem a quem possa amar”. [pág. 137]

Para si, que estava habituada a estudar, a regular as suas afeições e a comandar a sua imaginação, era difícil ter que encarar esta nova etapa pois teria que ser submissa aos deveres de esposa.

Depois de ter tido um ataque de paralisia, a sua mãe teve uma conversa com Manon e disse-lhe que precisava de casar, uma vez que já tinha passado os 20 anos e que os pretendentes cada vez seriam menos. A mãe morreu quando Manon tinha 21 anos.

Seis meses após a morte de sua mãe, em Janeiro de 1776, conhece Jean-Marie Roland de La Platière, de 20 anos, com quem casa quatro anos mais tarde.

Dirigiu as actividades de seu marido, Jean-Marie Roland, quando este se tornou ministro do Interior em Março de 1792. Tinha especial aversão a Danton, com quem chegara a rivalizar. Contribuiu para mantê-lo afastado dos girondinos, célebre partido político da Revolução Francesa, formado, quase todo, por deputados do Sul de França. Os Girondinos opuseram-se às matanças de Setembro e recusaram-se a votar a morte do rei. Os girondinos acabaram na guilhotina. Madame Roland, sua mentora, foi presa em Junho de 1793. Vendo os sonhos da gironda transformados em sangue, exclamou, antes de morrer guilhotinada: "Liberdade, liberdade, quantos crimes se cometem em teu nome".

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4 - Auto retrato

 

“Aos 14 anos, tal como hoje, tenho perna bem feita, pés bem colocados, ancas com algum relevo, peito grande e extremamente direito, ombros descaídos, atitude firme e graciosa, marcha rápida e ligeira. A boca é um pouco grande. Não tenho um sorriso sedutor. Os olhos, ao contrário, não são fortes e grandes. A íris é cinzenta-acastanhada. O olhar é aberto, franco, vivo e doce, coroado por sobrancelhas louras como os cabelos e bem desenhadas. Expressão afectuosa e movimentos sérios. Nariz um pouco grosso. Fronte larga. O queixo tem características fisionómicas de uma certa voluptuosidade. Pele doce, braço arredondado, mão agradável, sem ser pequena. Dedos alongados e minuciosos. Dentes brancos e bem alinhados, indicadores de uma saúde perfeita. Estes são os dons que a natureza me deu. O meu porte foi desenhado algumas vezes mas nenhuma dessas imitações deu a ideia da minha pessoa. A minha imagem é difícil de fazer. Tenho muito mais espírito que figura. Muito mais expressão que trato. A minha fisionomia altera-se quando estou inspirada do mesmo modo que o meu espírito se desenvolve em proporção daquilo que se apodera de mim.

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5 - Biografia

Nome: Marie-Jeanne ou Manon-Phlipon

Sobrenome: Roland de La Platière

Data de nascimento: 17 de Março de 1754

Naturalidade: Paris

Nacionalidade: Francesa

Data da morte: 8 de Novembro de 1793

Local da morte: Paris

Causa da morte: Executada na guilhotina

Estado civil: Casada com Jean-Marie Roland de La Platière, ministro do interior do rei Luís XVI

Obra principal:Memoires”, escritas na prisão e publicadas em 1795

Profissão antes da revolução: “Salonniere”: o seu salão na rua Gueneraud, em Paris, atraía grandes homens da política, como Brissot, Robespierre, Desmoulins, Condorcet e François-Nicolas Buzot

Papel político: Sendo mulher, não podia exercer qualquer cargo ou acção relacionada com a política. No entanto, a sua influência sob o movimento dos girondinos é inquestionável.

O que disse antes de ser guilhotinada: "Liberdade, liberdade, quantos crimes se cometem em teu nome" 

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Olga Pombo opombo@fc.ul.pt