O Colégio de Saint-Cyr

Trabalho realizado por Catarina Leça (catarina_pontes@iol.pt) no âmbito da Cadeira de História e Filosofia da Educação leccionada pela Prof. Olga Pombo na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa durante o primeiro semestre da ano lectivo de 2001/2002.

[Introdução] [Biografia de Mme de Maintenon (1635-1719)] [O Colégio de Saint-Cyr] [A Educação segundo Mme. de Maintenon] [Biblografia] [Sites]

 

INTRODUÇÃO

A educação conheceu um vasto percurso ao longo da história. No caso concreto da educação das mulheres, foi um percurso complexo, injusto e descriminatório. Às raparigas sempre foi reservado um lugar de segundo plano atrás dos homens, fossem eles os pais, os irmãos ou os maridos. A instrução feminina, nos raros casos em que acontecia, estava reservada às mulheres pertencentes ao clero, ou às classes sociais mais elevadas. Mesmo neste último caso, a instrução era vista como mais um atractivo: uma mulher bonita, elegante, discreta e que soubesse um pouco de arte, literatura e também um pouco de música decorava bem um salão aristocrático. Ou seja, a educação das mulheres era um passatempo para senhoras ricas e sem nada para fazer.

No entanto, embora às mulheres quase sempre tenha sido negada a escola, a verdade é que chegaram até nós notícias de mulheres, provenientes de famílias cultas, que estudavam tanto como qualquer homem da sua família. Por exemplo, de Bolonha dos séculos XIII e XIV, onde funcionava uma importante universidade, chegam-nos os nomes de “numerosas mulheres copistas, como Montanaria, Antonia, Allegra, Flandina di Tebaldino ou Uliana di Benvenuto da Faenza” (Duby, 1991: 418), todas elas provenientes de famílias de copistas, calígrafos ou iluministas. Neste contexto, é igualemnte de referir “Christine de Pizan, a mais conhecida das mulheres letradas laicas da Idade Média e autora de numerosas obras magnificamente iluminadas. Ela própria era copista e conseguiu, uma vez viúva, sustentar a sua numerosa família com o fruto dessa actividade, recebendo as encomendas de membros da família real ou de cortesãos.” (Duby, 1991: 418).

Dois acontecimentos marcam um progresso sensível no final do século XVII. O Traité de l’Education des filles,de Fénelon, publicado em 1680 e a fundação de Saint-Cyr por Madame de Maintenon emm 1686.

Sem pôr em causa a sua função social exclusivamente familiar e doméstica, Fénelon (1651-1715) insurge-se contra a educação dada às raparigas, o seu fechamento em conventos, e apresenta um dos primeiros programas de estudo para mulheres. Embora exclua os conhecimentos abstractos (as línguas clássicas, a retórica e a filosofia mantêm-se um apanágio masculino), Fénelon tem o mérito de afirmar alto e bom som a necessidade de um saber feminino: ler e escrever correctamente, aprender gramática, ortografia, as quatro operações aritméticas, um pouco de direito para a administração dos negócios, história grega e romana (esta é a parte mais audaciosa) e até mesmo um pouco de História da França. No que à leitura diz respeito, Fenelon  propõe sobriedade, com medo de que se desenvolva o espírito visionário. A filosofia é perigosa. O latim apenas será permitido às jovens ‘com um julgamento firme e um espírito modesto’. A música é banida, como fonte de divertimentos envenenados.

 

Por seu lado, Madame de Maintenon, mais conhecida por ter sido amante do rei de França e mais tarde sua mulher, foi uma grande educadora, de ideias claras, inovadoras e progressistas para a época. Largamente inspirada em Fénelon, Mme de Maintenon teve o mérito de fundar o primeiro grande estabelecimento secular para educação de raparigas

– o Colégio de Saint-Cyr -

 

Françoise d’ Aubigné, mais tarde Madame de Maintenon, mostrou desde jovem grande interesse pelos temas da educação e pelas crianças. O próprio facto de nunca ter tido filhos - e talvez isso fosse uma pequena frustração na sua vida – terá contribuído para que se interessasse pelas crianças e por um sistema educativo nelas baseado e a elas destinado. Sistema que tivesse por base o carinho e o respeito, mas que não esquecesse as virtudes da firmeza e da obediência. Como escreve Grimal, “Madame de Maintenon mostra, à partida, um pouco mais de audácia nos métodos – doçura e alegria, divisão das alunas em classes por cores diferentes consoante a idade, enquadramento das alunas, emulação através de recompensas. Em Saint-Cyr aprendem-se os trabalhos domésticos, os cuidados de beleza, as boas maneiras, mas também a história antiga e moderna, a geografia, a música, o desenho e a dicção. Aprende-se ainda o teatro: as representações de Esther diante do rei e da corte ficaram célebres. Aprende-se a falar pela conversação e a escrever pela dissertação.” (Grimal, 1974: pagina 49).

 

Os objectivos de Mme de Maintenon são

 

“Dar graça, ornar a memória, elevar o coração e dotar o espírito de coisas belas”

 

 

Este trabalho baseia-se, em grande parte, no livro L’Allée du Roi, de Françoise Chandernagor (A Alameda do Rei, em tradução portuguesa), donde são retiradas várias passagens. O livro, escrito na primeira pessoa, conta a vida de Madame de Maintenon, do seu nascimento até à sua velhice, em Saint-Cyr, à espera da morte. Como a autora refere em sub-título, trata das “Recordações de Françoise d’Aubigné, marquesa de Maintenon, esposa do rei de França” e está construído com base em extensa correspondência - “Françoise de Maintenon deixou cerca de oitenta volumes de cartas (…) Dispersas ou parcialmente destruídas ao acaso de heranças e de revoluções, restam ainda mais de quatro mil.” (Chandernagor, 1997: 9). Muitas destas fascinantes cartas e ensaios tratam do tema da educação.

 

BIOGRAFIA DE MADAME DE MAINTENON (1635-1719)

A jovem Françoise d’Aubigné.

Françoise d’Aubigné nasceu a 24 de Novembro de 1635, na prisão de Niort. O seu pai, Constant d'Aubigné, filho do célebre poeta calvinista Aggripa d'Aubigné, fora preso por falsificar moeda. A sua mulher, Jeanne de Cardilhac, que o acompanhava na prisão, deu à luz a menina - Françoise - que se viria a tornar um dia a esposa morganática do Rei Sol. Tiveram dois outros filhos, Constant, nascido em 1628 e morto acidentalmente em 1647, e Charles, que nasceu em 1634 e morreu em 1703.

Enquanto o seu pai cumpria a pena na prisão e a sua mãe vivia na miséria, Françoise foi entregue, com dois anos, a uma tia de Villette, protestante, irmã mais nova de seu pai, que vivia no Castelo de Mursay. Françoise viveu aí uma infância calma e regular até que a mãe a vai buscar, no início de 1644. Após a sua saída da prisão, e seguro de obter o posto de governador de Marie Galante, nas Antilhas, o seu pai resolveu embarcar com a família para a Martinica. Mas o posto estava já ocupado e alguns meses depois abandona a mulher e os filhos para regressar a la Rochelle. A vida torna-se difícil para Françoise, sua mãe e irmãos que, passados dois anos, acabados os recursos, são obrigados a regressar a la Rochelle. A situação era tão precária que tiveram que mendigar.

Quando atingiu os doze anos, Françoise foi novamente recolhida pelos Villette, desta vez com os seus dois irmãos. Constant, o irmão mais velho, morreria passadas algumas semanas. Em Mursay viveu uma vida serena durante alguns anos até que foi levada deste novo lar pela mãe da sua madrinha, Madame de Neuillant, católica. Esta última tinha obtido uma carta de arresto da rainha mãe, Anne d'Autriche, permitindo-lhe tirar a jovem àquela família de Huguenotes. Pouco se importando com os desejos de Françoise, Madame de Neuillant decidiu confiar a sua educação religiosa às Ursulinas de Niort donde Françoise sai com dezasseis anos. Após a sua conversão, Madame de Neuillant decide casá-la.

A escolha recai sobre Paul Scarron, um poeta de grande renome, demasiado velho para Françoise (25 anos de diferença de idades) e que sofria de uma grave enfermidade que o deformava. Apesar da deficiência, Scarron era muito apreciado, mantendo um salão em sua casa, onde se encontravam pessoas ilustres, homens de letras, nobres e grandes damas. O casamento ficou marcado para 4 de Abril de 1652. Um “casamento cinzento”, como Françoise dirá mais tarde.

Françoise rapidamente ganhou ascendente sobre Scarron. O salão nunca se esvaziava e muitos homens eram atraídos pelos belos olhos da dona da casa. Scarron morreu em 1660 deixando uma jovem viúva de 25 anos. Endividada e não podendo saldar todas as suas dívidas, Françoise retira-se para o convento das Hospitalières, não desejando professar, mas apenas recolher-se. No entanto, conserva os seus amigos e admiradores e é assim que obtém uma pensão da rainha mãe Ana da Austria que lhe permite deixar o convento e instalar-se numa casa situada no Marais, em Paris.

Em 1667, a bela Montespan, amante de Louis XIV e grávida pela primeira vez, estava restes a dar à luz. Era necessário encontrar uma pessoa de confiança para se ocupar do filho bastardo do rei de forma discreta. Françoise Scarron foi a escolhida. Quando Madame de Montespan deu à luz, Françoise, disfarçada e em plena noite, acolheu o recém nascido. Para evitar qualquer suspeita, criou a primeira criança, Louise-Françoise, em Paris e o segundo, Louis-Auguste, numa pequena casa fora da cidade.

Vendo que as gravidezes se sucediam, o rei fez instalar a governanta e os bastardos em Vaugirard. Em 1673, aquando da legitimação das crianças, Françoise trocou essa residência pelo esplendor do palácio de Versailles. Progressivamente, o rei foi-se afastando da amante e começou a mostrar interesse por esta mulher, que se revelava tão doce para com os seus filhos. O seu espírito encantava-o, as suas maneiras e a sua compreensão maravilhavam-no. Em 1675, o rei doou uma importante soma de dinheiro a Madame Scarron a fim de que pudesse comprar uma terra de que tomasse o nome. A sua escolha recaiu sobre o domínio de Maintenon, pequena cidade entre Chartres e Versailles. O rei declarou-a, portanto, Madame de Maintenon.

 

A rainha Marie Teresa morreu pouco tempo depois.

 

Três meses mais tarde, o rei decidiu fazer de Madame de Maintenon sua esposa morganática e uma cerimónia secreta foi celebrada em Outubro de 1683.

 

Durante mais de trinta anos, Madame de Maintenon exerceu uma grande influência sobre o seu esposo, nomeadamente no domínio religioso.

Luís XIV, o Rei Sol

Madame de Maintenon da época do seu casamento com o rei.

Foi já na qualidade de raínha que, em 1686, Françoise realizou, finalmente, o projecto que guardava no coração: criar uma instituição para a educação das raparigas da nobreza pobre.

 

Saint-Cyr abriu assim as suas portas em Julho de 1686. O objectivo era formar as jovens para o casamento ou para o seu futuro, mesmo que este não passasse pelo casamento. A partir de então, Madame de Maintenon consagrou-se inteiramente à sua obra.

A 30 de Agosto de 1715, na véspera da morte de Louis XIV, retirou-se mesmo para a sua instituição. Em 1718, atingida de febre, deu o último suspiro no mês de Abril de 1719, com a idade de 83 anos. O seu cadáver foi enterrado na igreja de Saint-Cyr.

Aquando da revolução, os revolucionários exumaram o seu corpo ainda perfeitamente conservado e arrastaram-no vários metros pelas ruas. Os seus restos mortais, recolhidos por mãos piedosas, foram escondidos em Saint-Cyr.

Muito depois, em 1945, aquando da demolição de um edifício, foi encontrada uma caixa com a inscrição “ossos de Madame de Maintenon”. Os seus restos mortais foram então inumados no Palácio de Versailles. A esposa morganática do Rei Sol foi a única da família real que teve o privilégio de reencontrar o esplendor deste palácio, visto que, com a revolução, os despojos reais das três dinastias foram lançados em cal viva para desaparecerem para todo o sempre.

 

O COLÉGIO DE SAINT-CYR

Já depois de casada com o rei de França, Madame de Maintenon costumava fazer caridade no convento de Noisy, onde viviam cerca de quarenta crianças pobres e abandonadas. Aos poucos, Françoise foi recolhendo outras crianças e enviando-as para lá, ao ponto de se tornarem demasiadas para as pequenas instalações.

Foi assim que lhe surgiu a ideia de formar um colégio maior onde se educassem crianças pobres, sim, mas provenientes da nobreza arruinada.

 

“Pensei (…) que desperdiçávamos as nossas capacidades com aquelas pequenas camponesas, uma vez que, depois de as termos ensinado a ler, a contar, a coser e a fiar, nada mais se podia fazer senão pô-las a trabalhar; não havia ali matéria para uma dessas obras-primas de educação que se podem produzir a partir de almas de escol e de sujeitos bem-nascidos; (…). Outros pobres pareceram-me merecer mais atenção: encontrava-se na época por todo o reino um grande número de nobres sem um centavo, que viviam à custa de empréstimos e de caridades; muitos deles, filhos mais novos, não tinham terras nem gados e viviam miseravelmente (…), seria possível, com aquela matéria prima, levar mais longe a obra da educação: formar belos espíritos, talvez, mas sobretudo regenerar a nação inculcando na sua elite máximas de virtude e princípios de ciência. Educar os mais pobres dos nobres do mesmo modo que os mais ricos dos burgueses.” (cit in Chandernagor, 1997: 335).

 

Surgiu-lhe então a dúvida se esse estabelecimento deveria acolher rapazes e raparigas ou apenas estas últimas. A solução apareceu prontamente:

 

“Nada é mais negligenciado do que a educação das meninas. Diz-se que as raparigas não precisam de ser sábias, bastando que saibam obedecer aos maridos sem raciocina e no entanto, não são as mulheres que arruinam ou sustentam as casas, que regulamentam o pormenor das coisas domésticas, que educam os filhos? As ocupações das mulheres não são, na verdade, menos importantes para o público do que as dos homens; e a ignorância das jovens da nobreza é precisamente a causa da ruína desse corpo.” (cit. in Chandernagor, 1997: 336).

 

Madame de Maintenon apresentou o projecto ao rei que, a princípio, não se mostrou muito receptivo. No entanto, passado algum tempo tomou a iniciativa de ir visitar o tal convento de Noisy.

 Após a visita, o rei aceitou a proposta da mulher impondo como condição que o colégio não fosse um convento.

 

Ficou assim decidido que “teríamos nesse estabelecimento duzentas e cinquenta meninas nobres, órfãs ou sem recursos, que seriam admitidas aos seis ou sete anos de idade e educadas a expensas do rei até aos vinte; as professoras; em número de trinta e seis, não seriam religiosas, exceptuando a superiora, Madame de Brinon, que já era ursulina; finalmente, as jovens seriam instruídas tendo em vista as suas funções, e não fazer delas «monjas».

 

“Aprenderiam a ler e a escrever correctamente, estudariam, como fazem os rapazes, obras de eloquência e de poesia; conheceriam o suficiente de aritmética para fazerem as suas contas com exactidão e receberiam rudimentos de economia: o cultivo das terras, a venda do trigo, a melhor maneira de dirigir uma quinta, tudo isso lhes seria ensinado para que não fossem dessas meninas que não estabelecem qualquer diferença entre a vida campestre e a dos selvagens do Canadá; aprenderiam a história grega e romana, a história de França e a dos países vizinhos, nas quais encontrariam exemplos de coragem e de abnegação; estudariam música com os melhores mestres para aprenderem a dela tirar prazeres inocentes, e pintura, pois as obras das damas não podem ter qualquer verdadeira beleza sem o conhecimento das regras do desenho; saberiam igualmente cozer, varreriam as salas de aula, formar-se-iam no governo das crianças, devendo as mais velhas servir de mestras às mais jovens e ajudá-las a vestirem-se, a lavarem-se e a pentearem-se; conhecendo deste modo a natureza e o génio das crianças, tornar-se-iam mães admiráveis e ao mesmo tempo donas de casa perfeitas. Finalmente, seriam verdadeiras cristãs, pois ser-lhes-iam explicados os deveres da religião.” (cit. in Chandernagor, 1997: 337/8).

A obra foi iniciada a 1 de Maio de 1685 e ficou pronta quinze meses depois.

O local escolhido foi uma das extremidades do Parque de Versailles.

 

 

“As crianças lançaram exclamações de admiração ao verem os dormitórios cujos leitos brancos e cortinados estavam presos com fitas de seda verdes, amarelas, vermelhas ou azuis, conforme a cor das respectivas classes; cada menina tinha o seu baú e o seu toucador; as quatro salas de aula estavam alcatifadas de acordo com a cor que as alunas usavam, as paredes estavam cobertas de cartas geográficas com fitas da mesma cor; algumas tinham sido pintadas a fresco: uma floresta para a classe verde, um mar para a azul e campos de trigo para a amarela, com crianças na paisagem.” (cit. in Chandernagor, 1997: 338/9).

 

Do colégio faziam ainda parte numerosos espaços verdes que foram inaugurados pelo próprio rei e que faziam as delícias das crianças, pouco habituadas a todas estas comodidades.

 

“Desde o primeiro dia, o emprego do tempo de todas elas foi organizado conforme tínhamos estabelecido com o rei: de pé às seis horas, ouviram missa e tomaram o pequeno almoço até às nove; em seguida, fizeram duas horas de leitura, de escrita e de recitações; jantaram às onze horas e tiveram recreio até à uma da tarde; depois, umas fizeram canto, outras bordado, e todas se juntaram para trabalharem, durante mais duas horas, a aprender ortografia, gramática e cálculo; merendaram, foram às vésperas, repetiram o catecismo, cearam às seis horas, tiveram mais duas longas horas de recreio e deitaram-se às nove.” (cit. in Chandernagor, 1997: 339).

 

Madame de Maintenon foi, a partir desse dia, uma presença assídua e trabalhadora desta casa. Passava lá praticamente todos os dias, ajudava as crianças mais novinhas a vestirem-se, controlava a acção das mestras, dava lições de gramática, catecismo, bordado, passava pela enfermaria a confortar as que estavam doentes.

A princípio tudo correu bem. A escola da Madame de Maintenon estava na moda e era admirada por toda a Europa.

A par das actividades escolares, as alunas de Saint-Cyr dedicavam-se com gosto ao teatro. Nesse contexto, encenaram diversas peças teatrais: Athalie, de Racine, Jonathas de Duché, Iphigénie de Testu, Judith de Boyer, Saül de Longpierre e Joseph de Genest.

Em 1689, Françoise pediu a Racine que escrevesse um “drama religioso” para ser interpretado na escola.

Racine corresponde escrevendo Esther, que foi representada perante toda a corte, inclusivamente para os reis de Inglaterra que se encontravam de visita.

 

 

Original de Esther, de Racine.

Madame de Maintenon “contemplava aquelas crianças, tão belas, que só diziam coisas capazes de inspirar sentimentos honestos e virtuosos e cujo ar nobre e modesto dava ao espectador a ideia da mais perfeita inocência; ouvia elevarem-se, acima do rumor constante dos louvores e dos cumprimentos da corte, as suas vozes cheias de frescura nos cantos puros” (Chandernagor, 1997: 340/1). Como a própria Mme. de maintenon escreveu, “orgulhava-me de ter atingido o objectivo que me propusera: a virtude criada entre aquelas paredes regeneraria um dia o reino inteiro” (cit. in Chandernagor, 1997: 340/1).

Mas, foi precisamente aqui que o projecto de Saint-Cyr se perdeu. A peça foi muito apreciada. No entanto, muitos julgaram reconhecer na peça de Racine toda a teia de intrigas da corte.

Françoise, por seu lado, sentia-se orgulhosa. Era o seu triunfo e o da sua família na pessoa da heroína da peça, que a representava. Era a vitória da escola. Esta vaidade e orgulho tolos acabaram por passar para as alunas, já de si “inchadas” com a afluência da corte às suas peças teatrais. “Os aplausos recebidos incharam-lhes os corações e deram-lhes de si mesmas uma opinião tão ridícula que chegaram ao ponto de não quererem cantar na igreja para não estragarem as vozes com os salmos e o latim” (Chandernagor, 1997: 376).

Madame de Maintenon, que a princípio não quisera censurar as fitas, os pós, os perfumes, as pérolas, assistiu por fim a todo o deboche das intrigas, das cartas e bilhetes passados às alunas, dos pagens do castelo que saltavam os muros, dos sumptuosos fatos que mal deixavam reconhecer o uniforme da instituição. Dizia-se que Madame de Maintenon chegara à ribalta do poder através de golpes baixos e intrigas acabando ela própria por perceber que, em vez de criar mulheres com um espírito livre, as levara a tornarem-se cortesãs bem sucedidas, à sua imagem e semelhança.

A igreja começou a censurar estas liberdades e a legitimidade da escola. Os próprios amigos de Madame de Maintenon expressaram o seu desagrado face à situação. Embora reconhecesse justiça nas críticas que lhe eram feitas, Madame de Maintenon arranjava sempre maneira de desculpar as suas pupilas, julgando que ainda seria capaz de pôr ordem em todos os excessos cometidos sem desmentir os princípios de educação que formulara. Pôs em marcha uma reforma, que pretendia refrear certas atitudes, mas que em nada mudou o que se passava. Como ela própria confessa:

 

“Tornou-se-me evidente que os métodos de doçura e de liberdade que tão bem me tinham resultado com as crianças que eu própria educara não eram aplicáveis a uma comunidade tão grande e que, para prevenir as desordens eram necessários mais castigos e menos bombons, mais oração e menos razão.” (cit. in Chandernagor, 1997: 377).

 

 

Meninas de Saint-Cyr.

O caos chegou ao ponto de três “azuis” tentarem envenenar uma professora por esta as ter admoestado quanto a certas cartas secretas que as meninas trocavam ente si. As culpadas foram açoitadas e expulsas. Mas o episódio abalou muito Madame de Maintenon. A igreja, que não via com bons olhos o carácter laico da escola, viu no caso o pretexto certo para finalmente intervir. Monsieur de Chartres, superior diocesano do Instituto disse a Françoise: “Quiz evitar a mesquinhez dos conventos e Deus castigou o seu orgulho (…) não se confiam almas, e almas tão ternas, a laicos (…) (Madame) tem demasiado gosto pelas novidades; é preciso voltar aos princípios mais comuns e fazer de Saint-Cyr um mosteiro regular.” (Chandernagor, 1997: 377). Madame de Mantenon teve que ceder. Era impossível negar que o projecto não dera os frutos previstos.

Em 1692 um vento de severidade sopra sobre Saint-Cyr acabando com o teatro, e com todas as outras actividades mundanas. De acordo com Madame de Maintenon, era necessário “renunciar aos nossos ares de grandeza, a esta liberdade de falar, a estas maneiras de zombaria mundana, enfim, à maior parte das coisas que nós fazemos” (cit. in Chandernagor, 1997: 376).

Saint-Cyr toma então um rumo totalmente oposto ao inicial. De um espaço de liberdade para o Mundo, passa para um espaço fechado direccionado para Deus. As raparigas dedicar-se-hão à devoção e à simplicidade. O clero havia levado Madame de maintenon a convencer o rei a transformar Saint-Cyr num convento, ou seja, a contrariar precisamente a condição que aquele tinha imposto inicialmente. A 30 de Novembro de 1692, Saint-Cyr tornava-se um convento regular da Ordem de Santo Agostinho. Algumas das mestras saíram, outras iniciaram o noviciado para poderem permanecer na casa.

Para Madame de Maintenon tratou-se de uma derrota pessoal. o que a levava a recolher-se com muita frequência para rezar, a estar obcecada com o pecado.

No entanto, estavam ainda para vir muitas e pesadas derrotas. Tendo deixado de frequentar a corte, Madame de Maintenon passava muito do seu tempo em Saint-Cyr encarregando-se ela própria dos aspectos temporais do estabelecimento. Trabalhava nas cozinhas, fazia as contas, tratava da capoeira e do pomar. As suas pupilas, permeáveis a tudo o que se passava com a sua mestra, haviam começado também a mostrar-se obcecadas com a religião e o pecado. Foi então que Françoise se começou a aperceber de determinados factos, no mínimo estranhos, que ocorriamno colégio. Por todos os cantos da casa se encontravam alunas de olhos revirados e boca aberta, em êxtase. Nos recreios já só se falava de “«puro amor», de «abandono», de «santa indiferença» e de «simplicidade», (…) crianças de seis anos falavam como santas, ou como iluminadas.” (Chandernagor, 1997: 386). Em pouco tempo, as crianças nada mais faziam que rezar e orar, negligenciando todos os seus deveres “terrenos”. “Uma, em vez de varrer, ficava, sonhadora, apoiada à vassoura; outra, em vez de ocupar-se da instrução das alunas, entrava em inspiração e abandonava-se ao espírito.” (Chandernagor, 1997: 386). Estas perturbações estavam relacionadas com certas leituras introduzidas no colégio por uma tal Madame de Guyon e que se aproximavam perigosamente do quietismo, doutrina defendida por Molino, teólogo espanhol cujos escritos Roma havia já condenado. Tratava-se de uma corrente teológica que faz consistir a suma perfeição da alma humana na união com Deus, isto é, na anulação da vontade, na contemplação passiva e na indiferença absoluta.

Madame de Maintenon ficou alarmada com a situação. Saint-Cyr descambava na desobediência completa, “era-se tão «simples» que se dirigiam livremente injúrias às mestras, era-se tão «livre» que não se aceitava obedecer a quaisquer ordens.” (Chandernagor, 1997: 387).

 

Infelizmente, Saint-Cyr encontrava-se demasiado no centro das atenções de toda a corte para que o caso passasse despercebido. Assim, ao mesmo tempo que Madame de Maintenon conseguia reconduzir o colégio à obediência, chegavam a Paris os primeiros boatos. Em breve se espalhou por todo o lado a acusação de quietiesmo, tal como outrora as acusações de bruxaria. Demasiadas pessoas se encontravam já envolvidas e o caso cresceu como uma bola de neve. Foram dadas ordens para serem retirados de Saint-Cyr todos os livros relacionados com as doutrinas proibidas. Como acontece sempre nestes casos, toda e qualquer atitude passa a parecer suspeita, já ninguém confiava em ninguém, os próprios amigos se traíam uns aos outros.

Madame de Maintenon duvidava agora de tudo e todos, do amor do rei, da amizade, de Deus. Como escreve:

 

“Já não sabia de que maneira rezar para manter-me dentro da ortodoxia (…) via que todos os passos que ainda dava eram passos em falso, que me espiavam sem tréguas, que vigiavam até o meu mais pequeno pestanejar. A calúnia acusava-me, ora de continuar, por teimosia, a proteger secretamente a heresia, ora de ter, por inconstância, abandonado cobardemente os meus amigos.” (cit. in Chandernagor, 1997: 397).

 

Acabou por adoecer gravemente, e quando já se temia pela sua sobrevivência, o rei, seu marido, acabou por interceder no caso. Destituíu, despediu e pressionou, exortou o papa a declarar heréticos determinados escritos e, por último, foi ele próprio ao colégio a fim de chamar a comunidade à obediência. “Em poucas semanas, o quietismo foi varrido e eu deixei de ter inimigos declarados.” (cit. in Chandernagor, 1997: 399).

A partir daqui tudo correu melhor. Saint-Cyr era o mais próximo possível daquilo que Madame de Maintenon sonhara:

 

“admito sem dúvida que Saint-Cyr, tal como eu o quis, não está ao abrigo de todas as críticas: a educação flutua um pouco excessivamente entre a mundanidade e a renúncia, entre o retiro ea atracção do século, e as crianças passam, por vezes sem transição, de Deus para um mestre de etiqueta e da meditação para uma lição de reverência; mas a vida das mulheres é de tal modo feita, pelo menos a daquelas que Deus não chama à condição de religiosas, que têm constantemente de trocar a oração pelas panelas e as panelas pelas futilidades de uma conversa. Parecia-me salutar, vistas bem as coisas, que as minhas meninas estivessem preparadas para tudo o que as aguardava no mundo e não me cansava de contemplar a culminação da minha obra naqueles rostos recolhidos na capela, atentos nas aulas e alegres no recreio.”

(cit. in Chandernagor, 1997: 469/70).

 

O rei Luís XIV morreu a 1 de Setembro de 1715. No dia 6, Françoise fechou-se definitivamente em Saint-Cyr, onde chegara dia 30 do mês anterior, para não mais daí sair até à sua morte.

 

“Tinha resolvido que as desgraças que ameaçavam a França poupariam Saint-Cyr e que os tormentos daquele século deixariam o céu calmo por cima daquelas poucas jeiras de terra. Fechei a minha porta aos princípes e aos cortesãos e mandei-lhes dizer que não queria viver mais no mundo e nem sequer ouvir falar dele.

(cit. in Chandernagor, 1997: 488)”

 

Madame de Maintenon viveu ainda mais quatro anos, falecendo em 1719, com 83 anos.

Em 1793, Saint-Cyr foi transformado em hospital militar, e mais tarde em Escola Militar. O edifício foi muito antingida pelos bombardeamentos dos Aliados em 1944, tendo ficado quase totalmente destruído. Em 1963, o General de Gaulle, ex-aluno de Saint-Cyr, ordenou a sua reconstrução. Hoje em dia funciona aí a Ecole Spéciale Militaire de Saint-Cyr, pertencente ao Comando de Formação do Exército (CoFAT), da tutela do Ministério da Defesa.

Fig. 7 – École Militaire de Saint-Cyr, no século XIX.

Fig. 8 - École Militaire de Saint-Cyr, actualmente.

 

A EDUCAÇÃO SEGUNDO MADAME DE MAINTENON

 

 

“Ao contrário da maneira que a maior parte dos pedagogos utiliza e que via impor indiferentemente a Monseigneur o Delfim, aos pequenos d’Heudicourt ou aos filhos dos burgueses de Fontainebleau, eu tinha como regra que em educação não há regras e que nunca se deve ter pressa de concluir, mas observar primeiro longamente o humor e a capacidade de cada criança, e conduzir-se depois conforme a natureza de cada um.

A educação é uma longa paciência, em que aquilo que não vem cedo pode vir tarde, mas não há más naturezas quando se sabe como agir e se age cedo; quando muito, semeamos por vezes o que outros hão-de colher.

No que respeita ao saber, considero inútil ter pressa; as crianças não gostam de ser obrigadas e é frequentemente funesto forçar-lhes o espírito teimando em fazer delas maravilhas antes do tempo; o delfim, entre as palmatoadas de Monsieur de Montauzier e as longas lições quotidianas de Boussuet, tinha aprendido aos seis anos um milhar de versos latinos, mas dizia que, quando fosse senhor de si mesmo, nunca mais abriria um livro, e o certo é que cumpriu a sua palavra.”

 

 

 

“Também não queria empregar, na educação das minhas crianças, essa severidade que tanto agradava aos Montemart.

Uma educação triste não passa de uma triste educação.

São necessários, julgo eu, recreios, risos, distracções. Comigo as lições eram sempre entremeadas de corridas, partidas de cartas e de dados, visitas às cavalariças ou à horta; pensava que é possível transformar todas as aprendizagens num jogo e, da mesma maneira que mais tarde escrevi para Saint-Cyr «conversas» e «provérbios» a fim de ensinar alegremente o vocabulário e a moral, inventei, para o duque do Maine e para as irmãs, pequenos jogos de espírito que, sem que eles disso se apercebessem, lhes ensinava a aritmética e a gramática; mas também esses jogos nada tinham de uniformes e eram diferentes conforme o humor e o gosto de cada criança.

 

 

 

“Tinha como absolutos e aplicáveis a todos apenas dois princípios: que é preciso ter doçura no governo das crianças e razão em tudo”.

 

 

 

“Defendo que se deve falar a uma criança de sete anos tão razoavelmente como a um homem de vinte. É fácil conseguir a obediência explicando a razão de tudo o que se recusa e de tudo o que se exige, sobretudo se nunca se inventam histórias nem medos inúteis, mostrando sempre o verdadeiro como verdadeiro e o falso como falso, nada prometendo que se não possa cumprir, seja recompensa ou castigo, e esgotando, enfim, todas as razões antes de chegar ao rigor.

Se há que ser firmeno fim que pretendemos atingir, convém permanecer muito suave nos meios de que nos servimos; para isso, seguramente, não podemos ver todas as faltas. É uma tolice pensar que se não pode deixar uma única falta sem castigo: é conforme a falta, conforme a criança, conforme o momento. Por mim, sempre fiz de modo a não ver tudo nem ouvir tudo; senão os castigos tornar-se-iam habituais e deixariam de sortir efeito.

É preciso saber que há dias infelizes em que as crianças estão numa emoção ou num desarranjo tais que nem todas as admoestações, todas as reprimendas, bastam para metê-las na ordem; convém nestes casos deixar correr as coisas o mais suavemente possível e nunca comprometer a nossa autoridade.

Há também crianças tão exaltadas e que têm paixões tão vivas que, quando se zangam, pode bater-se-lhes dez vezes com o chicote que é inútil. É preciso dar-lhes tempo para se acalmarem e acalmarmo-nos nós próprios, mas, a fim de que não possam pensar que nos rendemos e que pela sua teimosia se tornaram os mais fortes, convém usar de habilidade para afastá-los da nossa vista e dizer que só adiamos a punição para torná-la ainda mais terrível.”

(cit. in Chandernagor, 1997: 275/6).

 

A experiência do Colégio de Saint-Cyr demonstrou que o conceito de educação de Madame de Maintenon não se aplicava à sociedade da época. Adiantada em relação ao seu tempo, as suas concepões educativas terão sido uma consequência da sua vida e das suas experiências. Uma infância de dificuldades, a viagem para as Antilhas, o casamento com Scarron (que a pôs em contacto com a intelectualidade da época), a miséria; Françoise teve visão da sociedade algo incomum, sobretudo para uma mulher.

O seu projecto estava condenado ao fracasso. O mundo, a sociedade, a corte, as próprias alunas, não estavam preparados para uma tão grande liberdade. Uma revolução deste tipo nunca se faz sem grandes perturbações. De qualquer maneira, a experiência levada a cabo por Madame de Maintenon, assim como os erros praticados, constituem um momento particularmente rico da História da Educação. Talvez que a sua maior contribuição fosse o facto de ver cada criança como um ser humano, uma pessoa que precisava respeitar e de ser respeitada.

 

BIBLIOGRAFIA

Chandernagor, Françoise (1997) - A Alameda do Rei, Lisboa: Quetzal Editores.

Grimal, Pierre (dir.) (1974) - Histoire mondiale de la femme, Sociétés Modernes et Contemporaines, Paris: Nouvelle Librairie de France.

Duby, Georges; Perrot, Michelle (1991) – Histoire des femmes en Occident, Paris: Plon.

Pinto, Teresa  (2000) – O ensino industrial feminino oitocentista: a Escola Damião de Góis em Alenquer, Lisboa: Edições Colibri.

 

SITES

http://www.mairie-saint-cyr78.fr/default.htm (A actualidade da Escola de Saint-Cyr)

http://www.chez.com/courduroisoleil/documents/maintenon.htm (Biografia de M. de Maintenon)

http://www.ac-strasbourg.fr/pedago/lettres/Victor%20Hugo/Notes/Maintenon.htm (Biografia de M. de Maintenon)

http://www.perso.wanadoo.fr/coldo/Dixhuit.htm (Saint-Cyr)

http://www.globalvisioncs.com/byrd/fenelon.asp (Fénelon)

Olga Pombo opombo@fc.ul.pt