Biologia e pedagogia (excerto)

 

 

   A Domingo Barnés

 Muitas vezes me queixei perante si, tão compreensivo entre os pedagogos, de que os homens do seu grémio, encarregados de preparar a vida futura, não costumam dar-se conta das coisas senão quando estas já passaram. Como as páginas seguintes enunciam as ideias pedagógicas inspiradas na ciência mais recente, que ainda tardará em chegar ao domínio público, quero abrigar, sob seu nome de especialista, a irremediável incompreensão que, certamente, sofrerão.

                              O “Quijote” na escola

 

A propósito da Real ordem que impõe a leitura do Quixote em todas as escolas primárias, escreve em La Libertad, António Zozaya: “ O Quixote não é uma leitura para inocentes nem para adolescentes... Na escola não fazem falta nem Don Quixote nem Hamlet.”. Desde que apareceu a Real ordem mencionada, eu esperava que alguém resolvesse a dizer isto primeiro, com a finalidade de apresar-me em ser o segundo a repeti-lo. A razão pela qual esperava cortês, a alguém que se me adiantasse não importa muito, mesmo poderia em poucas palavras expressar-se assim : os que estão condenados a pensar em muitas coisas de diferente maneira que os seus convizinhos, a ser de outra opinião, a ser heterodoxos, devem economizar quanto possam esta heterodoxia, para que não se encha de afinco, o que é uma contradição. É seguro que a real ordem quixotesca parecerá excelente em quase todo o mundo.  Como me parece em muitos sentidos um desatino, tenho o prazer de carregar com a responsabilidade desta opinião sobre os respeitáveis ombros de António Zozaya, escritor tão mensurado e reflexivo, de quem as ideias costumam apresentar-se avançando nobremente sobre um fundo de elevada filosofia.

 Não quer isto dizer que eu coincida com o resto do artigo que o senhor Zozaya escreve. As suas ideias pedagógicas diferem notavelmente das que eu teria se alguma vez me atrevesse a ter ideias pedagógicas.  Convém pois, para a nossa comum oposição à escolaridade do Quixote, que se advirta como desde pontos de vista diferentes e ainda antagónicos se chega à mesma conclusão. 

A leitura do citado artigo deixa-me a impressão de que o senhor Zozaya defende uma pedagogia praticista da mudança usada na segunda metade do século XIX.  Don Quixote e Hamlet, estorvam-lhe na escola porque “não capacitam, não preparam para a vida”. Se eu, por um deslize, me surpreendesse alguma vez em flagrante pedagogia, também teria que ser practicista e como o senhor Zozaya, pensaria que a escola tem por única missão capacitar, preparar para a vida. Mas trata-se só de uma coincidência aparente fundada no equívoco que jaz nestas palavras.

“Preparação para a vida” significa, na intenção do senhor Zozaya, aprendizagem de certas técnicas particulares que permitem exercer com alguma perfeição determinadas funções vitais. Se perguntarmos ao seu artigo quais são as funções vitais cuja técnica é de máxima urgência aprender, encontramos com que o senhor Zozaya não se refira aquelas actividades essenciais da consciência humana que em todo tempo e condição, com uns ou outros pretextos, executa o homem e que, por tanto, constituem na nossa espécie o repertório fundamental e perene da vida. O senhor Zozaya propõe que se leiam nas escolas jornais, preferencialmente a qualquer literatura. Esta opinião, em que eu não posso acompanhá-lo, revela-nos quais são as funções vitais que na sua opinião deverão ser educadas mais urgentemente. Porque o jornal não é expressão da vida, senão apenas da face que a vida tem hoje. O jornal é actualidade e superfície. A vida íntima pessoal e profunda acha-se quase inteiramente excluída dele, o jornal faz ressaltar só a vida social e mesmo desta põe em evidência o mais periférico, a política, a técnica, a economia.

O importante, diz-se, é que a criança encontra rapidamente o que é um caminho de ferro, uma fábrica, uma letra de um banco. A vida real compõe-se do uso dessas coisas, quanto melhor se conheça a sua estrutura e manipulação mais fácil será o triunfo na “luta pela existência”.

Não vou duvidar da utilidade dessas averiguações e é claro que se se pudesse ensinar tudo às crianças, também teríamos que lhes ensinar isso. Mas a questão está em que a capacidade receptiva da criança e a docente do professor são muito limitadas em volume, em qualidade e em tempo. O problema da educação é sempre um problema de eliminação e o problema da educação elementar é o problema da educação essencial.

Tudo dependerá, do acerto com que determinamos quais são as funções essenciais da vida na ordem psíquica, que é a mais discutida, problemática e relevante na pedagogia.

A bicicleta, o pé e o pseudópodo. Nem todas as funções vitais, corporais ou psíquicas são de uma mesma classe biológica. Deixando de parte o valor preeminente, que em virtude de considerações alheias á biologia, outorgamos a algumas (desde o ponto de vista ético, por exemplo, é a vontade desinteressada , a função superior do ser humano), temos que dispô-las numa hierarquia puramente vital. Por outras palavras, há funções vitais que o são num sentido mais pleno e radical que outras.

Para clarificar isto, comparemos superficialmente certas actividades corporais que têm afinidade evidente.

Andar de bicicleta, é sem dúvida, uma função vital. Quando a decompomos nos seus factores achamos, por um lado, a actividade motriz das nossas pernas e mãos, por outro lado, um aparelho mecânico, a bicicleta. Este aparelho mecânico é uma criação da actividade intelectual do homem, auxiliada por outras máquinas manejadas por sua vez por pernas e braços.  Construímos a bicicleta com o fim de obter, com um mínimo de esforço vital, um máximo de rapidez na locomoção, com uma pequena intervenção da nossa parte, o aparelho funciona segundo o seu próprio regime, extravital, mecânico. Na motocicleta vê-se ainda mais patente a finalidade de qualquer instrumento ou máquina, a saber, que a nossa actividade fica reduzida a accionar o seu funcionamento. No uso de uma máquina, esta põe quase tudo e nós quase nada.

A vantagem desta economia no esforço que a máquina proporciona tráz consigo, no entanto, compensações desfavoráveis. A máquina tem que ser feita para um determinado serviço e funciona só dentro de condições rigorosas. Quando as nossas necessidades e as condições do caso coincidem com a máquina a sua utilidade é superlativa. Mas qualquer leve discrepância a faz perfeitamente inútil, mais ainda, converte-a num estorvo.

Sobre terra quebrada ou de grandes declives, longe de depósitos de gasolina, uma motocicleta é uma desvantagem na luta pela existência. Além disso, a utilidade de uma máquina é meramente relativa e transitória, outra máquina mais perfeita deixa fora da concorrência vital quem possui uma antiquada.

Comparemos agora com o andar da bicicleta outra função vital, o andar a pé. Também no andar podemos distinguir dois factores, por um lado a energia nervosa e muscular que aplicamos, por outro o esqueleto que fazemos mover. 

É o esqueleto das pernas com os seus pés terminais, algo muito semelhante a uma máquina, como ele, tem uma forma fixa, compõe-se por peças determinadas e possui um repertório de possíveis movimentos mais amplo que uma bicicleta, mas também circunscrito. A sua diferença relativamente às máquinas é puramente relativa, adaptação a um maior circulo de condições e de serviços, menor dificuldade para a sua sustentação e emprego, independência das indústrias fabricantes e dos preços do mercado, enfim, escassa probabilidade de que se inventem modelos de pés mais velozes. De tudo isto, uma coisa parece bem clara, que salvo no caso concretissimo em que a bicicleta dê o seu rendimento normal, o pé é uma máquina de maior utilidade vital se se somam e subtraem seus maiores serviços e seus menores prejuízos.

Seria bastante absurdo que ensinássemos às crianças o uso da bicicleta e não lhes ensinássemos a andar. Comparada com esta função orgânica do nosso corpo é a ciclomoção uma função mecânica e, como tal, circunscrita, variável, condicionada por mil detalhes e fora deles inútil, o que em biologia é sinónimo de prejudicial.  Além disso, o andar de bicicleta supõe a função motriz primária do homem, com os seus aparelhos ósseos, nervosos e musculares. Enfim, implica o exercício e bom êxito das nossas faculdades científicas, criadoras do instrumento locomóvel e as faculdades jurídicas, políticas, industriais, mercantis sem as quais não haveriam bicicletas. O progresso, regressão ou simples mudança de direcção nestas funções, anula a bicicleta, substituindo-a ou suprimindo-a. 

Mas se o uso da bicicleta é um mero mecanismo e portanto menos vital que o uso do pé, este também não representa a vitalidade essencial, também é mecanismo em comparação com outras funções biologicamente primárias.

Comparemos o caminhar do homem com a translação do ser mais elementar, a amiba. A amiba carece quase completamente de uma estrutura, não tem órgãos especializados para determinadas funções. Quando quer deslocar-se avança o seu protoplasma na direcção desejada, formando uma espécie de tentáculo ou prolongação. Fabrica então, um pé momentâneo que tende para o sítio ambicionado. Por contracção elástica este pé ou pseudopodo arrasta o resto do corpo amíbico. Chegar ao lugar apetecido e desaparecer o pseudopodo é a mesma coisa. Uma vez utilizado, aquele órgão transitório reintegra-se, reabsorve-se na massa total do organismo e a amiba pode entregar-se inteiramente á nutrição, sem ter que se preocupar nem por um pé, nem com uma perna, que no caso do homem, incapazes de alimentar-se por si próprios, constituem uma carga para o estômago. O pseudópodo  é, portanto, um órgão que só existe quando e quanto é necessário, é útil para a translação sem as limitações e condicionamentos  que o pé humano, a bicicleta industrial estão sujeitos. Certamente que estes, dentro de condições muito precisas, servem a função de andar muito melhor que o pseudopodo, mas fora desta servem para pouco ou para nada, isto é, prejudicam.  A vida faz, nos seus milénios, o balanço de que o pseudopodo tem vantagens fabulosas relativamente ao pé e à bicicleta, por isso a amiba tem uma existência muito mais segura que a do homem, o caminhante, para não falar do ciclista.  Numa sociedade de seguros de vida a quota maior seria outorgada á humilde amiba, enquanto que hoje não se concede seguro ao aviador.

O caminhar da amiba é, ao mesmo tempo, uma criação de um órgão adequado a sua aplicação. Não fica nenhum mecanismo. Por outro lado, o caminhar humano é relativamente mecânico, qualquer órgão estável, na medida em que é estável, com forma fixa e funcionamento pré determinado, tem o carácter de uma máquina e a sua utilização, uma função mecânica. Isto quer dizer que toda aquela zona da vida que consiste na actuação de estruturas fixas e especializadas, representa uma vitalidade secundária mecanizada.  O plasma vivente, ao criar um órgão específico, conquista algumas vantagens ao ficar, em parte, prisioneiro da sua obra, agarrado pela sua invenção. Se detrás do funcionamento dos órgãos não ficasse a vitalidade primogénita insubmissa, inmecanizada e inespecializada, o organismo, quanto mais complicado fosse, menos apto seria a subsistir.

Mas a máquina não avança sem mão ou sem pé, nem o pé e a mão se movem sem uma força genética de existência prévia a toda a organização. O que na amiba se apresenta aos nossos olhos acontece em todos os mecanismos, mas de maneira menos descoberta. A ciência do nosso tempo, preocupada, em virtude de razões que não são actuais, pelo estudo dos órgãos e do seu funcionamento mecânico, não estudou ainda devidamente as actividades primárias da vida. Fez-se uma mecânica biológica, mas não propriamente biologia, deu atenção com raro exclusivismo, àqueles fenómenos que, acontecendo no ser vivo, são menos vida.

Se o leitor me seguiu até aqui, advertirá que se chega a definições da vida radicalmente diferentes, segundo se toma como tipo das funções vitais uma ou outra das três esboçadas.

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Civilização, cultura, espontaneidade, traduzindo este exemplo de ordem física e psíquica poderemos distinguir três classes de actividade espiritual: Primeira, o uso de mecanismos ou técnicas, políticas, industriais, etc., que em conjunto chamamos civilização e correspondem ao andar de bicicleta; Segunda, as funções culturais do pensamento científico, da moralidade, da criação artística, que sendo intimas ao homem são já especificações de ordem psíquica dentro de caminhos normativos e intransponíveis, elas equivalem na ordem psíquica o mesmo que o andar no corpóreo; Terceira, os ímpetos originários da psique, são como a coragem e a curiosidade, o amor e o ódio, a agilidade intelectual, o afinco de desfrutar e triunfar, a confiança em si no mundo, a imaginação, a memória. Estas funções espontâneas da psique, prévias a toda a cristalização em aparelhos e operações específicas, são a raiz da existência pessoal.  Sem ciência não há técnica, mas sem curiosidade, agilidade mental, perseverança no esforço, não haverá tão pouco ciência. O médico não será bom médico se não é um pouco científico e não será um pouco científico se não é bastante inteligente. É um erro acreditar, que ao ensinar técnica terapêutica, se conseguirá dotar um indivíduo de visão científica e muito menos fazê-lo inteligente. 

Mesmo assim, para que um homem exerça bem os seus actos civis, a sua moralidade deverá ser educada, afinando a sua sensibilidade para normas éticas, robustecendo a sua obediência aos imperativos do dever. Mas será inútil intentar tudo isto se não tem uma vigorosa força de vontade, entusiasmo e energia básica.

Prévia à civilização transitória dos nossos dias, prévia à cultura dos últimos milénios, há uma forma eterna e radical da vida psíquica que lhes é suposta. Ela é, em última instância, a vida essencial. O resto, inclusivamente a cultura, é já utilização das nossas potências e apetites primogénitos, é mais que a vida, precipitado de vitalidade, vida mecanizada, anquilosada.

Os graus superiores do ensino poderão atender à educação cultural e de civilização, especializando a alma do adulto e do homem. Mas o ensino elementar tem que assegurar e fomentar essa vida primária e espontânea do espírito, que é idêntica hoje e há dez mil anos, que é preciso defender contra a iniludível mecanização dela, que ocasionou, ao criar órgãos e funções especificas.

 Pensando assim, é claro que me aterra a proposição feita pelo senhor Zozaya, de que se leia o jornal na escola. Estorvam-lhe Hamlet e o Quixote porque são do século XVII e hoje vivemos no século XX. O meu gosto é o oposto e a escola ideal seria um instituto que tivesse podido permanecer idêntico desde os tempos mais avançados do futuro. Porque o que ela terá de educar é de qualidade e em conteúdo imutável, só é aperfeiçoado em intensidade. 

No meu ponto de vista, o mais urgente, não é educar para uma vida já feita, mas sim para uma vida criadora. Tratemos primeiro de fortalecer a vida vivente, a natura naturans, e depois, se há prazer, atenderemos a cultura e a civilização, a vida mecânica, a natura naturata.

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O paradoxo da selvajaria, há dezoito ou vinte anos a Espanha sofreu uma epidemia de praticismo ingénuo e mal entendido. Um fenómeno particular dessa epidemia foi crer que o futuro nacional e individual dos espanhóis estava na exploração mineira. Numerosas famílias fizeram com que seus filhos, seguissem a carreira de engenheiros de minas, tivessem ou não vocação para isso. Quando poucos anos mais tarde veio a ruína dos nossos recursos mineiros , os jovens engenheiros encontraram-se, ao concluir os estudos, especializados numa função social sem horizonte favorável e não foram poucos os que culparam os pais pelo fracasso das suas vidas.

Imagine-se se lhes tivesse submetido à especialização, não já num posterior grau do ensino, mas como queriam os pseudopracticistas, desde a educação elementar. Teríamos obtido homens totalmente incapazes para um mundo onde há minas escassas, tal como os esquimós do Heine foram insensíveis para o céu cristão porque nele não existem focas.

 Não me ocorre negar que a vida avança sempre num sentido de especialização progressa. Mas é precisamente a aberração típica da nossa época, esquecer que a vida primária e indiferenciada perdura por baixo desse especialismo. E não só perdura, senão que também progride à sua maneira. Se chamamos ao homem relativamente isento de especialização, isto é, de cultura e civilização, homem selvagem, eu diria que no homem culto perdura, como base do sustento vital, o homem selvagem e que o progresso social procede paralelamente a um progresso em selvajaria. Esta palavra selvajaria, carregada com o seu significado pejorativo, implica já um erro. Chamar selvagem  ao homem primitivo porque possui menos instrumentos materiais, políticos e intelectuais que nós, é condená-lo integramente. Chamar civilizado ao homem actual significa, fazer a sua completa apologia. Isto seria justo se a vida fosse só, ou sequer principalmente, funcionamento de órgãos, como acreditava o século XIX, submetido às influências de Darwin.  Mas é o caso que funcionamento dos órgãos supõe prontamente, a criação desses órgãos, além da sua conservação, regulação e impulsão. A vida organizada, a vida como uso de órgãos é vida secundária e derivada, é vida de segunda classe. A vida organisante é a vida primária e radical. A biologia darwiniana começa precisamente, em sentido restrito, onde a vida acaba. Darwin só pretende explicar como que de certas formas dadas, umas perduram e outras perecem. Mas deixa intacta a questão essencial, como é que essas formas dadas, como e porquê são criadas. Se o darwinismo fosse correcto, o que não é, constituiria uma biologia de segunda classe. Hoje fica excluído dos laboratórios por uma biologia mais fundamental que estuda a vida primária. Em vez de observar a suposta luta pela existência que travam entre si as formas orgânicas, investiga a principal suposição dessa luta, que são simplesmente os lutadores (1).

Tal mudança de perspectiva biológica convida- nos a atender esta humilde calinada, a cultura e a civilização, que tanto nos envaidecem, são uma criação do homem selvagem e não do homem culto e civilizado. A vida não organizada cria a organização e todo o progresso desta, a sua manutenção,  sua impulsão constante são sempre obra daquela. Isto clarifica o facto paradoxal de que todas as grandes épocas da criação e renovação cultural coincidiram ou foram precedidas por uma explosão de selvajaria, o século VI da Grécia, o século XIII, as centúrias do renascimento, o friso do século XIX (2).

Como todos os parvenus, o parvenu da civilização envergonha-se das horas humildes em que iniciou a sua existência e tende a escondê-las (sigilá-las). O progressista do nosso tempo é o melhor exemplar desta classe, daqui a sua fobia em relação ao passado, sobretudo em relação ao homem primitivo. Deslumbrado pelas botas novas da civilização actual, crê que o passado não pode ensinar-nos nada e muito menos esse passado absoluto, já fora da cronologia, no qual habita o homem pré-histórico.

No meio da refinada cultura do século XVIII, inventor do progressivismo, houve, no entanto, pessoas capazes de prestar atenção a esse homem originário. As viagens de Bougainville e de Cook atraíram a atenção dos parisienses sobre a vida silvestre do Taiti ou, como antes se dizia, O’Taiti. Um dia em Versalhes houve um grande desdobramento de simpatia em relação a uns taitianos, os quais foram trazidos por esses primeiros navegantes e que representavam a simplicidade, a nudez primogénitas perante a peruca, a enciclopédia e o mestre de baile. Muitos cortesãos se ofereciam para educar aqueles índios importados, mas segundo se refere a chronique de l’oeil-de-boeuf, uma linda marquesa, interpôs-se dizendo: “ mais vous allez leur faire perdre leur joli naturel!” Daquele movimento primitivista nasceu a alma de Rousseau, o seu regresso à natureza e com isso o novo clima moral, político e estático do século XIX.

Seria, no entanto, modificar completamente o meu pensamento emparelhá-lo com o de Rousseau. Eu peço que se atenda e fomente: a vida primitiva é ser uma nascente inesgotável da organização cultural e civil. Tomá-la a ela mesma como tipo ideal de organização é, claro está, uma prevenção como tantas outras em que abunda a obra de Rousseau. Situar, segundo o que ele faz, ao homem primitivo na floresta de Fontainebleau, além de um impossível regresso ao selvagem, me apetecer sempre fazer de Robinson.

Esta valorização da vida espontânea e se se quer denominá-la assim, da vida selvagem do espírito, é a mesma em todo o mundo aceite sem dar-se conta disso.  Nada mais geral na nossa época que a admiração pelo homem “antigo”, simbolizado na obra de Plutarco. O melhor que sabemos dizer de certas personalidades vigorosas é que têm um carácter antigo. Se fosse esta a ocasião para fazer a psicologia do homem de Plutarco, veríamos que o que nós admiramos nele são estes ou os outros conteúdos da sua cultura, a cultura grega, que tanto estimamos por outras razões, é posterior ao tipo psicológico que Plutarco descreve, se não certas qualidades psíquicas gerais, como são o ímpeto para obrar e a energia para suportar, a solidariedade e o acordo interno com que se move a personagem e que lhe dá esse cariz de substância integra (homem integro ainda é considerado como homem honrado), toda ela quieta ou toda ela vibrante como o bronze e o mármore, enfim, a violência dos peritos, o afinco invejável que aqueles homens sabiam sentir pela autoridade ou a riqueza, pela glória ou pela sabedoria. Espíritos muito menos complexos que os nossos, eram no entanto, mais vitais, as suas últimas molas biológicas funcionavam com muito maior tensão, o que os fazia avançar sobre a área da existência, certeiros e estremecendo como dardos bem lançados.

 Então, como Nietzsche repetia, citando a Joubert: “ O selvagem não é senão o antigo moderno”, é o homem de Plutarco sem Plutarco. Sob a autoridade e prestígio que envolve a cultura greco-romana, admiramos no homem antigo o homem primitivo(3) .

Uma pedagogia que queira fazer-se digna da presente hora e pôr-se à altura da nova biologia tem que intentar a sistematização desta vitalidade espontânea, analisando-a nos seus componentes, achando métodos para aumentá-la, equilibrá-la e corrigir as suas deformações.

Não é o que chamo educação da espontaneidade coisa que ande próxima à pedagogia de Emílio, como não se toma à semelhança no sentido amplissimo do ter sido Rousseau um dos alicerces eminentes da evolução das ideias pedagógicas. “A primeira educação”- diz Rousseau-” deve ser puramente negativa. Não fazer nada, não deixar fazer nada.”. Pelo contrário penso, que toda a educação tem que ser positiva, que é preciso intervir na vida espontânea ou primitiva.

Longe de abandonar a natureza da criança ao seu desenvolvimento livre, eu pediria, pelo menos, que essa natureza seja potenciada, que se intensifique por meio de artifícios. Estes artifícios são precisamente a educação.  A educação negativa é o artificio que se auto ignora, é uma hipocrisia e uma ingenuidade. A educação não poderá ser nunca uma ficção da realidade, quanto menos se reconheça como uma intervenção reflexiva e inatural, quanto mais se pretende imitar a natureza mais se afasta dela fazendo a farsa, mais complicada, subtil e refinada.

Trata-se assim, de uma coisa muito distinta da sensibilidade naturalista de Rousseau, que induziu a que as senhoras amamentassem os seus filhos no teatro, durante as representações de ópera.

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Notas

(1) O caracter vulgar deste ensaio faz com que a descrição detalhada da biologia seja inoportuna, em oposição ao que esta foi na segunda metade do século XIX. Uma série de títulos de obras e nomes estrangeiros, nada diriam ao leitor corrente. Espero, no entanto, que as alusões que faço a determinados trabalhos e a escolas, poderá levar a entender estes problemas biológicos, da biologia mais recente. Um resumo dos meus cursos universitários sobre este assunto, verá brevemente a luz.(Esta última frase da primeira edição (1921) desaparece desde a edição em Obras Completas, 1946.).

(2) Os tempos em que actualmente vivemos são desta qualidade. O grande público sente-se confuso perante a impressão de que a humanidade está sendo atravessada por um período de selvajaria. Habituado a opor esta ideia à de cultura e civilização, não suspeita que dentro dessa selvajaria estão-se construindo, uma cultura e uma civilização superiores. No entanto, na ordem cientifica já existe uma renovação, só comparável à do Renascimento. A ascensão obreira, que trás no seu seio uma nova estrutura  política é, no entanto, uma glorificação do primitivo  social. Talvez por isso Rathenau chamou ao movimento obreiro uma irrupção vertical dos bárbaros.

(3) Para todos os aficcionados de Platão não é uma novidade advertir a dupla preocupação, aparentemente contraditória, que o acompanhou durante toda a sua vida. Por um lado Platão, vizinho de Atenas, olha constantemente pelo canto do olho para Esparta, ideal do grego culto, que simboliza a razão, a medida, a arquitectura, a lei política e, enfim, através da alma dórica dos pitagóricos e Parménides, a filosofia e a matemática. Mas, por outra parte, Platão dirige uma e outra vez, o seu curioso olhar divino aos “bárbaros”. Reconhece que não se podem comparar com o gregos em graça , razão, cultura, civismo. Mas...Platão sente no seu interior uma estranha admiração indomável pelos bárbaros, apesar do seu orgulho helénico. Finalmente, no livro IV da República, obrigado aprofundar os problemas psicológicos, descobre com súbita clareza o motivo da sua estimação. Num vocábulo ainda impreciso diz: “ o bárbaro não é sábio, mas é impetuoso.”. Não se pode esquecer que, para o grego , o bárbaro é o homem primitivo.  Rousseau chamaria a toda a vida humana, espontânea, inclusive a mais especializada, sempre que se tenha desenvolvido  livre de todo o fluxo; eu chamo espontâneas só a certas funções perfeitamente determináveis e que a psicologia pode metodicamente isolar.

Tradução de Ana Margarida Rua Filipe Martins no âmbito da cadeira “História e Filosofia da Educação” no ano lectivo de 1995/96

Olga Pombo opombo@fc.ul.pt