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Pedagogia e Anacronismo

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 "Mision de la Universidad", Madrid: Alianza Editorial, 1982 pp. 155-161

Kerschensteiner é tido como um dos pedagogos mais eminentes dos tempos que correm. Não obstante, descubro que para o senhor Kerschensteiner o objectivo global da educação é formar cidadãos úteis, no sentido de servirem os fins de um determinado estado e os da humanidade1. Não compreendo como pode um homem de tão excelente nível, dizer uma coisa assim. Dá bem a ideia do descuido em que andam as ideias pedagógicas do nosso tempo. Esta trivialidade procede de múltiplas causas; no entanto, uma delas é mais fácil de definir que as demais e, de certa forma, resume-as todas.  Refiro-me ao anacronismo constitutivo de que costuma padecer o pensamento pedagógico.

A pedagogia não é, senão, a aplicação aos problemas educativos de uma maneira de pensar e sentir sobre o mundo, digamos, de uma filosofia. Não importa à questão que essa filosofia seja um sistema científico rigoroso ou uma filosofia difusa. O detalhe importante está no facto de o pedagogo não ter sido, quase nunca, o filósofo da sua pedagogia.

O pedagogo que escreve um livro em 1922, não o fundamenta nas ideias filosóficas de 1922. Como não é o criador das novas ideias e emoções que vão dominar, no futuro, o espírito colectivo, contentou-se em receber a filosofia dos seus mestres, portanto, de uma geração anterior. Com efeito, a pedagogia escrita em 1922 nutre-se da filosofia de 1890. Mas, como é necessária uma grande campanha para que as ideias impressas em livro cheguem a enformar as leis e a vida escolar, resulta que a doutrina de 1922 não começa a ser vigente nas escolas antes de 1940. Com isto, chegamos à grotesca situação de termos as crianças de 1940 educadas segundo as ideias e sentimentos de 1890, e a Escola, cuja pretensão é precisamente organizar o futuro, viver em atraso constante de duas gerações.

A frase de Kerschensteiner citada há pouco é um bom exemplo deste anacronismo. Em 1890 reinava na alma europeia uma interpretação política da História e do Homem. Pensava-se, com Kant e Hegel, com Comte e Stuart Mill, que a existência humana, ao longo de dois séculos, havia sido como que uma preparação para a conquista da liberdade política e de uma certa ordem jurídica que se denomina Estado. Mas faz já um quarto de século que esta maneira de pensar iniciou o seu refluxo e, hoje, só insistem nela os antiquados, muito especialmente os antiquados típicos do nosso tempo, que são os políticos “esquerdistas”. Não creio que exista hoje na Europa alguma cabeça “actual” à qual não produza um efeito cómico considerar que dos gigantescos feitos humanos se destaque, como o mais importante, o mais valioso, o atarracado atributo de cidadania. Os pedagogos que queiram lealmente colocar-se à altura do seu tempo, necessitam consciencializar-se da formidável ampliação de horizontes conseguida nas últimas décadas. Numa perspectiva de muito maior distância, a evolução histórica do homem ganha um aspecto muito diferente do que tinha no século passado. O Estado moderno, e também o ideal do Estado moderno, que parecia aos nossos avós como forma definitiva, conclusão da perspectiva histórica, aparece hoje como um de tantos gestos momentâneos destinados a dissolver-se no processo incessante da vitalidade humana. Impõe-se hoje de tal modo ao nosso olhar o carácter cósmico da História e do Homem, que o que sucede na dimensão política tem apenas um significado superficial.

Por esta razão, quem pesar bem o sentido das palavras «educação do Homem», não pode senão soltar uma gargalhada quando lê que o fim da educação – nada menos que o fim – é formar cidadãos. Seria como dizer, por outras palavras, que o fim da educação é ensinar o Homem a usar o chapéu-de-chuva. Cidadão! E tudo aquilo que o homem é muito mais profundamente, mais permanentemente, além de cidadão? Quem adverte do incrível erro de perspectiva que essa doutrina pedagógica comete?

Esta maneira de pensar, além de errónea, parece-me de uma modéstia excessiva. Supõe que a pedagogia se deve adaptar à política, com o que, entre outras coisas, nos submetemos a um novo factor de anacronismo. Quando se considera que é fim da educação fazer das crianças cidadãos úteis aos fins de um determinado Estado, esquece-se que, quando se tornarem adultos, o Estado para o qual foram educados já mudou. Educa-se para ontem, em vez de para amanhã. Bem o advertem agora as melhores inteligências da Alemanha. Uma geração educada por um Estado imperial, regido por princípios autoritários tradicionais, vê-se obrigada a viver num Estado democrático parlamentar.

Não pretendo com isto negar que a Educação tenha que ter em conta que a criança de hoje venha a ser o cidadão de amanhã ou, em termos menos circunstanciais, elemento de uma comunidade histórica determinada. Mas daqui a definir o fim da Educação como fabricação de cidadãos, há grande distância. E não basta ampliar a ideia, como faz Kerschensteiner ao falar dos fins da humanidade, porque entrevê desde logo, que os fins mencionados são também políticos, se bem que vagamente internacionais.

Espero que o nosso século se oponha a este menosprezar da obra educativa. Surge na Europa, uma exemplar desvalorização de toda a política. De notar, em primeiro plano das preocupações humanas, se passará a intervalos e fins mais humildes. E a todo o mundo parecerá evidente que é a política que deve adaptar-se à pedagogia, a qual conquistará os seus fins próprios e sublimes. Algo que, por certo, já Platão sonhou.

Notas:

1 Kerschensteiner: Begriff der Arbeitsschule, 1922.   [voltar]

Tradução de Nuno Ferreira no âmbito da cadeira “História e Filosofia da Educação” no ano lectivo de 2003/2004. Revisão de Olga Pombo

Olga Pombo opombo@fc.ul.pt