A Pedagogia da Contaminação

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"Mision de la Universidad", Madrid: Alianza Editorial, 1882, pp.87-96

O que vão ouvir não é uma lição, não é um ensino. Dia a dia afirma-se a minha suspeita de que, nada que na verdade, mereça a pena de ser aprendido, pode em rigor ser ensinado. Por muito grande que seja o afinco do professor, sempre haverá uma última precisão uma claridade próspera, a mais saborosa gota da essência científica ou artística, que não nos poderá transmitir, que teremos que conquistar com o nosso próprio esforço doloroso. E essa última precisão, essa claridade próspera, essa, a mais saborosa e essencial gota do sumo, é na ciência, na arte e na vida tudo. O resto está como vago e artificial para impedir que esse valor essencial se evapore e desvaneça.

Por toda a pedagogia e especialmente na contemporânea, flui, uma triste e inelegante hipocrisia com a qual pode pactuar quem tenha feito um pacto-norma da sua conduta, mas que a um indócil ânimo só pode inspirar desdém.

A que chamam as nossas escolas, ensinar a ciência?  A descarregar sobre a alma dos discípulos um lastro de disciplinas científicas já feitas ou quanto mais uma doutrina já feita de método para a investigação.  Mas através da sua fácil textura, falta o ser da ciência como a água numa canalização e na alma do discípulo fica justamente o oposto da ciência, o dogmatismo.  Porque o real e concreto da ciência é a actividade sem descanso do intelecto, que se enfrenta valentemente, perigosamente com os problemas e briga com eles para dar-lhes uma solução. E como ao chegar a esta nova solução, do mesmo modo que chegamos ao cume mais alto, aumenta o conjunto dos problemas, e tem por sua vez, que ser corrigida, servindo apenas como ponto de apoio e de pretexto para avançar, tal como a terra serve ao que caminha só para tocá-la com o tacão e iniciar um novo passo. Quando o Físico acaba de escrever a última página de um tratado de física, o que este tratado diz, já foi avançado no seu pensamento, já avançou sobre aquela momentânea cristalização do seu esforço e já se coloca um novo problema, já está na sua mente vivaz a proa inquieta na rota de novas costas longínquas e confusas e muito do que na obra foi imprimido parece solução concluída.  Se se aceita , sem ironia, a ciência do livro, a ciência concluída e petrificada, aceita-se exactamente o oposto da ciência verdadeira que não está feita de conclusões, que é uma acção intelectualmente fluida, na perpétua superação de si mesma.  A ciência flui através de livros de ciência como um rio, móvel e liquido, pelo seu caudal sólido e quieto. O que se ensina nas escolas modernas de todo o mundo é ciência congelada, imobilizada, ultrapassada e dogmatizada, um caudal seco e estéril, pelo qual percorrem as gotas essenciais. Ainda bem que nunca faltam homens que, apesar da escola e às vezes fora desta, sentem desabrochar no seu peito o borbulhar da curiosidade cientifica.  Mas não achar a objecção de que o ensino moderno tende a ensinar, mais que um sistema doutrinal, os métodos de investigação cientifica, por tanto, a fazer ciência. Este tópico contemporâneo é uma futilidade. Os métodos de investigação não são mais que resultados do sistema doutrinal da ciência e só dentro desta têm sentido. Ao variar os princípios da doutrina, variam os métodos de investigação. A aparência impessoal, automática e imparcial induz a que muitos trabalhadores se julguem isentos de construírem uma noção do que seja a ciência e fazendo funcionar os seus aparelhos metódicos percam a sua vida em vão, como abelhas alojadas nos alvéolos de uma colmeia inexistente.

Veis pois, que da pedagogia ao uso desta, volatiliza-se o essencial da ciência, quer dizer, o movimento de pensar flutuando numa atmosfera de problemas. Com toda a delicadeza repete-se na história intelectual a metáfora do caçador, símbolo do cientifico:       ,diz Platão;  venator, diz Santo Tomás. A ciência não é um trabalho cómodo que se faz ocultado por uma doutrina aprendida. Ciência aprendida, contradictio : quem a sério, aspira à dignidade de ser cientifico, terá que ter o valor de viver sempre à intempérie espiritual, como um bom caçador.

O facto de que a sociedade contemporânea pareça, em todo o mundo, tão satisfeita dos seus centros de ensino superior, a pesar de que neles não se ensine o que faz a ciência ciência, revela simplesmente, dito sem hipocrisias, que a sociedade contemporânea não lhe interesse a ciência, não tem suspeita do que é isso. As pessoas não querem sabedorias, querem receitas, receitas para fabricar aparelhos de locomoção ou alcalóides e soros. Quando falam de cultura, entenda-se o conforto, um progresso na rapidez dos veículos e na isenção das dores corporais. Dir-me-ão que sempre aconteceu assim, que sempre o monstro do milhão de cabeças, que chamamos “pessoas”, tem sido cego e surdo para toda a vida essencial e só aspirou a que lhe encha bem o milhão de gargantas do milhão de cabeças. É verdade. Nas outras épocas as pessoas não exerciam o papel de protagonistas responsáveis que exercem no nosso tempo, viviam mais ou menos postas num segundo plano e permitiam que no eixo da Europa repercutisse a voz da opinião selecta, hoje submergida pelo alarido torrencial da opinião pública.

 É fatal e por acaso justo que a opinião pública, para quem a ciência real não pode existir, não peça mais receitas, mas com esta preocupação ao informar e dirigir o ensino, trouxe e trará consigo a mingua da verdadeira potência cientifica, chegará o tempo em que nem haverão receitas. Talvez em nenhuma época  se falou tanto de ciência como na nossa, por isso é peremptório fazer notar que essa ciência de que as pessoas falam e pela qual se interessam não é a ciência como saber, é uma utilização da ciência petrificada, materializada. Há tempos falava-se muito menos de ciência, mas os que falavam sabiam do que falavam e ninguém abusava do significado equivocado dessa palavra para fingir-se interessado do que lhe era indiferente ou odiado. Hipocrisias desta índole são características da consciência contemporânea e é necessário tempo para detalhá-las. O que sabe ou o que interessa ao bom burguês, ou ao bom obreiro, o saber, esse permanente drama subtil do intelecto que vive sempre na dúvida de si próprio, no afinco sem trégua, de sorte que ao fixar-se numa conclusão, numa doutrina é morrer? Quando vejo um desses homens com um livro na mão, dizia Leonardo, espero que façam o mesmo que os macacos que se lo mettino al naso e se domandan se sia cosa mangiativa.

Pois bem, onde há lugar na pedagogia contemporânea, que aspira a mecanizar o ensino, como diz o clássico Pestalozzi, para ensinar isso que não se pode ensinar mecanicamente, essa única realidade da ciência que é a atitude do pensamento criando-se mesmo assim um esforço cruel e negando-se a não receber nada por herança, tradição ou autoridade?

Onde se vê esta incapacidade da nossa educação tão clara é no plano da arte. Perante a arte, a opinião pública é mais sincera. Como é a arte tão evidentemente inútil, a opinião pública declara-o francamente supérfluo. Mais por inércia do que por outra coisa deixa que se perpetuem as academias e as instituições artísticas e nos outros centros de ensino deixa que deslize a história da literatura e das artes. Mas será que nalguma parte se ensina, nem que remotamente, a sublime emoção estética?

Nem se ensina a apreciar, nem se ensina a criar arte, porque nem uma nem outra delicada função da humanidade tolera ser mecanicamente ensinada. Ser artista é fazer soar a própria alma numa modulação original, nunca antes ouvida, é libertar-se heroicamente dos estilos usados e ensaiar uns novos, é em suma um elemento inesperado, a flauta de Pan.

As escolas prometem-nos ensinar moral, isto é, a viver. A vida faz em cada indivíduo o ensaio de uma nova figura e gesto de homem. Hebbel costumava dizer: “ Eu vivo, isto é, diferencio-me do resto”. Cada um de nós é o projecto e o gérmen de uma personalidade única com gestos próprios, desejos únicos, necessidades incomparáveis e deveres originais. E o professor só pode ensinar-nos maneiras lógicas, gostos genéricos, ideais e deveres mostrengos. Só pode desvirtuar as nossas possibilidades, habituando-nos a repercutir a vida de outros, a ser espectros e sombras de outros, só pode ensinar-nos a enterrar a nossa possível vida, a matar a nossa vida pessoal. Quantos por ventura são os afortunados, que ao sair de anos de educação, levam vincada na sua consciência a ideia de que, fortes ou fracos, melhor ou pior dotados, fecham no seu ser a possibilidade delicadíssima de algo novo, belo e fecundo e que a própria vida deve ser para eles o espectáculo mais harmonioso e a experiência mais valente?  Pensai na enorme quantidade de energias individuais que são quebradas,  para a humanidade, paralisadas, desperdiçadas, porque as pedagogias pretendem ensinar moral aos homens, isto é, como deve viver cada homem.

Vejam pois, que essas três coisas supremas, ciência , arte, moral não podem ser mecanicamente ensinadas, segundo o que se pretende e que se a opinião pública fica só com essas três palavras, renunciando de antemão as três coisas. Basta com um mínimo desvio para que estas realidades subtis se transformem no contrário destas, ou quanto menos em vocábulos côncavos e ocos. É tão fácil a suplantação!

São as palavras, místicas borbulhas incorpóreas que se desprendem do cento da alma e às vezes quebram-se no ar vibrante derramando o seu licor interno.

Não me pareceria nada mau, que o bom burguês e o bom operário, o bom advogado e o bom médico, o bom industrial e o bom político, nunca falassem da ciência, da arte, da moral, em suma, da cultura. Não me pareceria nada mau, até me pareceria proveitoso. O mau, o grave, o que pode fazer declinar o futuro da mesma cultura, é que se adultere o seu significado, que seja defraudada e desvirtuada. Tem direito a dizer isto tudo, o homem consciente que tenha assistido aos primeiros tempos desta guerra, quando se corria numa cortina de fogo, até incendiar toda a linha do horizonte. E não, certamente, pela própria guerra, que é por contrário, uma profunda realidade e por tanto um gigantesco problema da cultura, mas pelo que todos os dias tínhamos que ler em todos os jornais e ouvir de quase todos os lábios, aquela surpresa hipócrita de que a Europa culta se lançasse ao campo de batalha, aquelas lamentações sobre o fracasso da cultura. Se alguma dúvida restava ainda, apareceu então manifesto até que ponto é fictícia a adesão à cultura, até que ponto a consciência pública desconheceu o sentido desta. Viu-se então que o europeu médio tem da cultura a ideia, de esta ser, não sabemos bem que coisa, que se consegue de uma vez para sempre, como um dessas receitas técnicas ou preceptivas artísticas ou morais pragmáticas a que antes me referia, algo que se recebe de fora e que podemos meter num bolso sem que conservá-lo nos exija um esforço sem trégua.

O homem verdadeiramente culto, perante um fenómeno como a guerra ou outra grave emergência em que se patenteia algum defeito cruel ou insuficiência da vida, potencia a sua fé na cultura, vê com maior lucidez que nunca o sentido desta, sem necessidade radiante. Porque dar-se conta de um novo problema, ou o agravar de um problema antigo, é, ao mesmo tempo, dar-se conta de uma nova tarefa para o espirito, de uma nova solução a procurar. Não é inculta a pedra porque não acerta as soluções, mas porque não tem a sensação dos problemas.

Os princípios de Galileu e Newton, último cimento da ciência natural moderna, solapados em todo o seu redor, ameaçam hoje vir ruidosamente à terra. A democracia, ideia básica em que transitoriamente descansa a perene ânsia da justiça política, prisioneira de inumeráveis objeções que não pode subjugar, encontra-se num momento crítico de transe capitular. pouco provável é que não assistamos, os que ainda não somos muito velhos à derrocada da física de Galileu e Newton e da democracia de Rousseau e Roberspierre. O dia em que isto suceda, poderemos falar em fracasso da cultura? Já terão sucumbido essas ideias vítimas de alguma catástrofe telúrica, ou antes, não obedecerá seu desvanecimento a uma visão mais ampla e mais estrita dos problemas que elas, no seu tempo, pretenderam resolver, portanto, a uma maior perfeição da sensibilidade para os problemas, a uma exigência de maior precisão nas soluções, por tanto, a um novo triunfo da cultura? A cultura não se rende a não ser a uma cultura melhor, à qual possa dizer como o poeta Shelley à sua amada:” amiga, tu és melhor que eu.”.

Se a opinião pública, por causa da guerra, ulula o fracasso da cultura, é porque pensa que esta é a supressão dos problemas, em consequência. o oposto à própria cultura (com c ou k, como se queira, porque não tenho agora tempo nem nunca o mau gosto de entreter-me com estes jogos de palavras, sobre tudo, com um tão pouco engenhoso e à tantas décadas inventado e usado já pôr Tolstoi, num momento em que se esqueceu da elegância da sua alma.). O bom filisteu não quer a inquietude das questões e quando pede cultura entenda-se que pede para voltar a ser pedra.

Não tenhamos ilusões, falta á nossa época a consciência da cultura, isto é, daquela coisa que em aparência mais a envaidece. A isso contribuiu a expansão democrática do ensino, que se preocupou mais de estender o uso do vocabulário do que intensificar e purificar numa minoria selecta a consciência das ideias. Devido a isto, multiplicaram os médicos, os engenheiros, os advogados, os técnicos, os leitores de jornais e em troca subtraiu os homens cultos. Causa última, sintoma definitivo desta mingua é que a nossa idade padece uma forma específica da incultura, precisamente o desconhecimento daquelas meditações em que se aclara o sentido da cultura e em consequência, o sentido da vida humana, é a incultura do médico sábio. do engenheiro sábio, do jurista sábio, a ignorância do geral que padece o sábio essencial. Do século X até aos nossos dias a época que se caracteriza pela sua incultura filosófica é o século XX, século do especialismo. Porque a consciência da cultura, não é, outra coisa a não ser filosofia.

Por isso, convém que falemos de vez em quando de filosofia, somente falar dela, porque apesar de ser a ciência mais subtil, é a que menos pode ser ensinada. A filosofia, não se ensina, a filosofia contamina-se. Perante a pedagogia mecanizada, eu afirmo como única, verdadeira e sem hipocrisias a pedagogia da contaminação. Não pretendo ensinar-vos nada de filosofia e terei feito tudo se conseguisse seduzir-vos relativamente a ela.

Como uma gota vai arrastada na turbulência do rio, cada um vai submergindo nesta coisa imensa, turva e violenta que é a vida. Não é oportuno que de vez em quando tratemos de levantar a cabeça sobre a corrente e vermos onde o rio nos leva? Aristóteles no início da sua ética diz belamente:” o arqueiro procura um alvo para as suas flechas? E não o procuraremos para a nossa vida?”

Espirito significa precisamente a serenidade no meio da agitação vital da multidão de desejos parciais, de amarguras, de exaltações que nos faz perder a consciência de uma direcção, de um sentido que orienta e qualifica toda essa turbulência.

A maior parte dos homens vive atenta apenas ao pequeno negócio ou à ânsia que tem à frente, se os deixássemos sós, a vida neles teria cada vez menos pulsações. O pequeno negócio seria cada vez mais pequeno, o campo visual mais angustioso e os corações maio apertados. Por isso a missão do intelectual e sobre tudo do filósofo, é proclamar fervorosamente, exasperadamente a obrigação do esforço espiritual que dilata as almas e potência a vida. Perante o homem utilitário tem que adoptar uma atitude absurda de desinteresse e viver como o fogo consumindo-se a si mesmo.

O filósofo tem que ter esta atitude e por isso, quando aparece um filósofo verdadeiro, a humanidade sente como um verdadeiro “espolazo” pela vida.

Não pretendo ser esse verdadeiro filósofo, nem sequer um filósofo aparente, só por força administrativa suporto o título de professor de metafísica, de uma coisa que não conheço bem e que mesmo bem conhecida não se pode, em rigor, ensinar. Eu convido-vos, pois, a coincidir comigo em não tomar a sério esta minha capacidade administrativa.

A minha pretensão é incomparavelmente mais modesta, contentar-me-ia em passar perto das almas mais quietas que a minha e deixar cair nelas fermentações de dúvida, ambição e esperança. Tereis notado que ao estarmos inclinados sobre um tanque ou perto de um lago de água morta e vemos a superfície tão imóvel, polida, indiferente, onde se reflectem as nuvens viajantes, as nuvens de Abril redondas e barrocas, se apodera de nós como uma irritação e um desejo de acabar com aquela calma e polimento fictícios que escondem toda a radiante vida do fundo lodoso. E sem darmos conta, a nossa mão apanha uma pequena pedra e a atira à água, cujo cristal se parte e vibra trémulo como umas costas vivas e deixa escapar bolhas que ascendem do fundo como suspiros. Feito isto, afastamo-nos ingenuamente satisfeitos. Pois algo não menos ingénuo me seria grato fazer com as almas demasiado quietas, as minhas aspirações esgotam-se, como vedes, em chegar a ser um professor de atirar pequenas pedras nos tanques.

Tradução de Ana Margarida Rua Filipe Martins no âmbito da cadeira “História e Filosofia da Educação” no ano lectivo de 1995/96

Olga Pombo opombo@fc.ul.pt