Comentário

 

«Antes de considerar como educar, é bom estarmos claros quanto ao tipo de resultado que queremos atingir.»1

Bertrand Russell in On Education

Londres, 1926

 

 

Julgo óbvio, para qualquer um de nós, inseridos ou iniciados nas questões da educação, que a Educação se edifica em alicerces, mais ou menos visíveis, de filosofia da educação. Daí que tenha escolhido para este trabalho o título de “Filosofia na Educação”; daí também, que se justifiquem os estudos de Filosofia (e também de História) que efectuámos ao longo da nossa preparação para futuros professores.

Como referia na introdução, acredito ser cada vez mais necessária a explicitação clara dos objectivos da educação e a reflexão permanente acerca das instituições e processos próprios do Ensino. Assim o alude Bertrand Russell, na citação que transcrevi acima.

Ser filósofo, como tivemos oportunidade de aprender ao longo desta cadeira, é acordar com questões importantes as mentes adormecidas no conformismo. O filósofo é alguém que perturba a ordem estabelecida com a necessidade de reflectir e de encarar novos factos e novos caminhos. É neste sentido que acabam muitas vezes por ser mal vistos na sociedade, ao inquietarem as mentes mais incautas e ameaçarem o poder dos tiranos.

Neste trabalho, houve oportunidade de contactar com as inquietações de dois filósofos. Foram sentidas há quase um século, mas posso, sem excluir a possibilidade de estar a cair em erro, classificá-las como bastante actuais.

Bertrand Russell e Ortega y Gasset ofereceram um contacto enriquecedor com a Filosofia da Educação. Identifiquei com eles alguns dos pormenores que me incomodam na actual situação do Ensino. Não serão, como julgo que pretendessem ser, uma visão dogmática numa reforma esperada, mas a voz que, como um farol, poderá guiar tal processo e as actividades de ensino e educação. Talvez possam vir a ter nos nossos dias, a expressão por que têm esperado ao longo destas décadas.

Tentarei, nos próximos parágrafos, coligir algumas citações importantes para a temática deste trabalho, tanto dos textos traduzidos (que constam neste trabalho), como de outros a que tive acesso. Tentarei, também, um comentário adequado a tais passagens.

 

Situação do Ensino

Já há 80 anos atrás se sentia a necessidade de mudança reflectida e objectiva que deveria ser efectuada na Educação. Já então, Russell (1996/2000, p.73) identificava um facto determinante: «Toda a gente recebe algo que se designa por educação, algo que, geralmente, é dado pelo Estado, algumas vezes também, pelas Igrejas existentes». Tal questão verificava-se, segundo o mesmo autor, porque se acreditava «que as nações se tornam mais fortes com a uniformidade de opinião e a supressão de liberdade» (idem). Num efeito perverso, acabava por chegar-se ao ponto de «a maioria das instituições educativas [serem] controladas por pessoas que não compreendem nada do trabalho em que interferem» (idem, p. 84).

Noutro texto, ainda Russell, reconhece que «O que é considerado na educação são quase nunca o rapaz ou a rapariga, o jovem ou a jovem, mas quase sempre, de certa forma, a manutenção da ordem existente»2 (Russell, ano desconhecido, p. 403), num qualquer tipo de processo redutor que mais se assemelha a uma clonagem de cidadãos. Por isso, talvez, se constate que «Quase toda a educação tem um motivo político: tenta reforçar um grupo, nacional, religioso ou mesmo social, na competição com outros grupos»3 (idem). O que resulta por sua vez num jogo complexo, num ciclo vicioso, no qual as escolas mantêm visões suportadas por sistemas, que por sua vez a suportam (idem, p. 404).

Que sucede com este tipo de atitude? Não só os objectivos da educação acabam minados por interesses que não deveriam ser os seus, como se cai no atraso terrível que Ortega y Gasset adverte: «Refiro-me ao anacronismo constitutivo de que costuma padecer o pensamento pedagógico» (Ortega y Gasset, 1982a). Não só «a Escola, cuja pretensão é precisamente organizar o futuro, vive do atraso constante de duas gerações» (idem), como se cai no ridículo, quando se «considera que é fim da educação fazer das crianças cidadão úteis aos fins de um determinado Estado [e se] esquece que, [quando] ao se tornarem adultos, já o Estado para o qual foram educados mudou» (idem). Em suma, como bem diz Ortega y Gasset, «Educa-se para ontem, em vez de para amanhã» (idem).

Não me admiro, pois, que por um lado «O que mais ressalta no ensino ministrado aos jovens em cada um destes países [seja] o nacionalismo fanático» (Russell, 1996/2000, p. 74) e que por outro, no ensino actual «os jovens [sejam] incentivados a acreditar, não naquilo que tem algum fundamento racional, mas simplesmente no que ouvem dizer.» (idem, p. 83) ou, ainda, que a «educação seja tratada como um meio de adquirir poder sobre o aluno e não como um meio de fomentar o seu crescimento pessoal.» 4 (Russell, ano desconhecido, p. 407).

Outra realidade perniciosa, que já então se encontrava na Educação, e que podemos achar com facilidade nos nossos dias, é verificarmos que apesar de o «o desejo espontâneo e desinteressado não ser incomum nos jovens»5 (Russell, ano desconhecido, p. 409) esse desejo de saber ser «ameaçado, sem remorsos, por professores que pensam apenas em exames, diplomas e graus»6 (idem) ou ainda, encontrarmos um sistema educativo controlado por interesses económicos. O que é de todo compreensível, uma vez que o objectivo da educação se centra na obtenção de cidadãos bem integrados na sociedade e com vontade de pertença ao grupo pré-existente (idem, pp. 426-427).

Por outro lado, e talvez por causa dos interesses económicos e pressão social para a obtenção de resultados (entenda-se classificações), «há, entre os reformistas da educação, um certo receio em exigir grandes esforços e, no mundo em geral, um desejo de não se ser incomodado»7 (Russell, ano desconhecido, p. 409). Uma tendência crescente (e desejada muitas vezes por quem tem o poder) de conformismo e de estagnação.

E como reage o aluno no meio desta selva de interesses? Julgo que, cada vez mais, o aluno se sente perdido no seio de uma instituição que não compreende e que não corresponde, na maioria das vezes, aos seus desejos. «O estudante é um ser humano [...] a quem a vida impõe a necessidade de estudar ciências sem delas ter sentido imediata e autêntica necessidade» (Ortega y Gasset, 1960/2000, p. 91). «Estudar é para ele uma necessidade externa, que lhe é imposta» (idem, p. 93), talvez apenas a necessidade de obter o tal grau ou o tal diploma que tem valor na sociedade em que vive e que lhe permitirá conseguir maior remuneração ou maior respeito. Com tudo isto, «ser estudante é ver-se alguém obrigado a interessar-se directamente por aquilo que não o interessa ou que, em última análise, o interessa apenas de forma vaga, genérica ou indirecta.» (idem, p. 94).

De outra perspectiva, pode também entender-se este desinteresse, pois «entretanto, amontoa-se gigantescamente, geração após geração, a mole pavorosa dos saberes humanos [...]» e «quanto mais o saber aumenta, quanto mais se enriquece e se especializa, mais longínqua será a possibilidade de que o estudante sinta uma necessidade imediata e autêntica desse saber.» (Ortega y Gasset, 1960/2000, p. 98).

Ainda, a forma como se encontra organizado o ensino, leva a que «os mais inteligentes, no final, ficam desagradados com o ensino, pretendendo esquecê-lo e entrar numa vida de acção»8 (Russell, ano desconhecido, p. 409). Mas, está claro, «o homem tem que assimilar o saber acumulado, sob pena de sucumbir individual e colectivamente» (Ortega y Gasset, 1960/2000, p. 99). Só recuperando o saber (oportunidade que lhe dá a escola) é que conseguirá entender o mundo em que vive, ou retomar o ponto onde pararam outros homens, para tentar encontrar a explicação do mundo que o rodeia. Esta verdade incontornável é muitas vezes incompreendida pelo aluno.

O que aconteceu entretanto à função do professor? «a sua função já não é ensinar aquilo que considera ser seu dever ensinar, mas incutir crenças e pressupostos cuja utilidade é estabelecida por aqueles que lhe dão emprego» (Russell, 1996/2000, p. 71). «o sentimento de independência intelectual, [...] essencial ao adequado preenchimento das funções de professor», deixou de existir. No mundo actual, «a defesa do Estado está tanto nas mãos dos professores como nas das forças armadas» (Russell, 1996/2000, p. 76) e o professor é um potencial alvo de manipulação por parte dos poderes políticos. Infelizmente, «tal como as coisas hoje se apresentam, muitos professores estão longe de dar o seu melhor.» (idem, p. 81) pois «estão de tal modo sobrecarregados de trabalho que se vêem limitados a ter que preparar os alunos para os exames em vez de lhes darem uma formação sem preconceitos.» (idem).

Indubitavelmente, são os professores «que, por intermédio de um contacto diário, mais acabam por cuidar dos jovens. «Mas [paradoxalmente,] não são eles que decidem o que deve ser ensinado ou quais os métodos de ensino a adoptar.» (Russell, 1996/2000, pp. 83-84]. Arriscaria algumas perguntas: Qual a legitimidade, por parte do Estado, em determinar reformas no Ensino? De que forma as políticas influenciam as decisões no Ensino?

«O professor deve amar os seus alunos acima do Estado ou da Igreja; de outro modo não será um professor adequado»9, como nos refere Bertrand Russell (ano desconhecido, p. 417).

 

Propostas de Solução

Bertrand Russell sugere que a liberdade de pensamento seja tida em conta e que, por isso, «a independência intelectual dos professores» (Russell, 1996/2000, p. 75) seja protegida. Para isso, adianta, «o primeiro requisito necessário é uma clara delimitação das tarefas que se pode legitimamente esperar que os professores desempenhem em benefício da comunidade.» (idem).

Mais adiante, o mesmo autor reconhece que «mais do que ninguém, os professores são os guardiões da civilização» e que lhes cabe procurar «fomentar nos jovens hábitos de investigação imparcial, levando-os a julgar as questões pelos seus próprios méritos, a estarem prevenidos contra afirmações ex parte, aceites apenas pelo seu valor aparente.» (Russell, 1996/2000, p.77)

No texto de Bertrand Russell traduzido neste trabalho, refere-se a necessidade de repensar a educação por forma a torná-la mais adequada ao desenvolvimento, no aluno, de capacidades inerentes ao pensamento crítico. Assim deixaríamos de ter situações em que os problemas são resolvidos apenas por pessoas especializadas e que poucos entendem. Deixaríamos de ter também a submissão incondicional à técnica e à ciência, que verificamos hoje. Pois apenas situações de real investigação/inquirição permitem fomentar o progresso.

Talvez alterando os modelos e os objectivos da educação, fosse também possível despertar nos alunos uma verdadeira consciência de grupo, evitando o uso da agressividade herdada do passado. Como advertia o autor noutro dos seus textos, «o homem civilizado deverá ter consciência da sua própria insignificância e da do seu meio mais próximo em relação ao mundo, tanto nas perspectivas temporais como espaciais.» (Russell, 1996/2000, p. 78). Num mundo onde tanto se deseja a globalização, talvez fosse bom começarmos por globalizar os sentimentos e preocupações. Talvez a ciência fosse um bom exemplo, já que no mundo da ciência não existem, supostamente, fronteiras ou barreiras.

Outro panorama referido, prende-se com a extensão excessiva dos currículos. Não só, como já vimos, essa questão limita a capacidade do professor em preocupar-se com os seus alunos, como faz com que seja arrastado pelas ideias já feitas que “transmite” sem qualquer filtragem.

A disciplina, o “calcanhar de Aquiles” de muitos professores, poderia ser conseguida com essa redução dos currículos e também do número de alunos das turmas. Um acompanhamento mais personalizado, uma reflexão mais constante e uma apresentação de conteúdos mais centrada no aluno, iria facilitar a devolução ao professor da dignidade e da autoridade que merece.

Algo que Ortega y Gasset refere como possível causa de problemas relaciona-se com a falsidade de que vive o ensino: uma falsidade na acção do professor, mas também nos interesses (forçados e indirectos) dos alunos. A educação deveria fomentar nos jovens a aventura mental (que já possuem) dando-lhes o apoio necessário à descoberta de possíveis soluções para os problemas que vão querendo solucionar. O que se verifica, nos nossos dias, é a triste aniquilação de qualquer desejo de exploração (que é visto, nos graus de ensino mais baixos, como desvio perigoso ao esquema existente).

 

Directivas

Acabaria o meu comentário com uma proposta baseada no texto “Apontamentos para uma educação para o futuro” de Ortega y Gasset. Numa longa dissertação, ele refere a necessidade de reconhecer a “diversidade filosófica do nosso tempo” e de efectuar um esforço para estudá-la. Tal facto parece importante e relaciona-se muito proximamente com a citação com que iniciei. Pois é de novo uma explicitação de objectivos que, julgo, apenas é possível e verdadeira quando se analisam aprofundadamente todas (ou a maioria) das perspectivas existentes.

Não podemos cair no erro de adoptar visões extremistas ou, pior ainda, soluções extremistas. Todos os estudos e todas as realidades devem ser analisadas. Mas acima de tudo, devem ser os professores quem deve sensibilizar-se para a importância das suas funções e as implicações que elas têm na sociedade em que vivem. São os professores, individual e colectivamente, e não os poderes instalados, que devem decidir o melhor rumo a dar a uma instituição que, durante tão longos séculos, serviu o propósito para que foi criada: dar aos jovens o conhecimento já alcançado pela humanidade para que possam impulsionar o desenvolvimento do mundo.

Todos os problemas que nos afligem, devem ser resolvidos no presente, sob pena de estarmos a pôr em causa o futuro, como adverte Ortega y Gasset no texto referido. Numa adaptação do final desse texto, diria que um tal objectivo pode ser conseguido pela educação. Aí tudo pode ser feito, mas pouco se concretiza.

Como ideia final, acharia importante que a avaliação fosse algo mais presente no ensino. Desejaria que fossem avaliados mais professores e também mais reformas. Que as decisões para o futuro fossem mais reflectidas e discutidas no presente.

 

 

 

1 «Before considering how to educate, it is well to be clear as to the sort of result which we wish to achieve.» (Inglês no original;Tradução livre)   [voltar]

2 «What is considered in education is hardly ever the boy or the girl, the young man or young woman, but almost always, in some form, the maintenance of the existing order» (Inglês no original;Tradução livre)   [voltar]

3 «Almost all education has a political motive: it aims at strengthening some group, national or religious or even social, in the competition with other groups» (Inglês no original;Tradução livre)   [voltar]

4 «education is treated as a means of acquiring power over the pupil, not as a means of nourishing his own growth.» (Inglês no original;Tradução livre)   [voltar]

5 «Spontaneous and desinterested desire for knowledge is not at all uncommon in the young» (Inglês no original;Tradução livre)   [voltar]

6 «remorselessly checked by teachers who think only of examinations, diplomas and degrees.» (Inglês no original;Tradução livre)   [voltar]

7 «there is among educational reformers a certain fear of demanding great efforts, and in the world at large a growing unwillingness to be bored» (Inglês no original;Tradução livre)   [voltar]

8 «The most intelligent, at the end, are disgusted with learning, longing only to forget it and escape into a life of action» (Inglês no original;Tradução livre)   [voltar]

9 «The teacher should love his children better than is State or his Church; otherwise he is not an ideal teacher.» (Inglês no original;Tradução livre)   [voltar]

 

Olga Pombo opombo@fc.ul.pt