Convite à leitura de Rousseaupor Olga Pombo
Numa época profundamente dividida como é a nossa pela fronteira de uma especialização cada vez mais funda, é com profunda admiração que contemplamos espíritos universais como o de Rousseau, é quase com atónita emoção que vemos desenharem-se, atrás de nós, os contornos dessas figuras gigantes onde tudo está, onde tudo teve o seu começo, onde é sempre possível ir beber inspiração, ensinamentos e exemplo. Rousseau é um desses pensadores que praticamente abarca com o seu génio todos os grandes temas de reflexão humana, um desses homens, cada vez mais raros, que deixa profundas marcas em vastíssimas e aparentemente muito dissimilares aspectos da actividade cultural humana. As suas obras, de inesgotável riqueza, estão cheias de pressentimentos, alusões e pensamentos de notável actualidade. De tal modo que nos parece legítimo dizer-se que, tendo vivido e pensado no século XVIII, Rousseau conseguiu descobrir nele os sinais – imperceptíveis para a maioria dos seus contemporâneos – de um futuro que antecipadamente pensou. O que faz dele um dos mais contemporâneos pensadores do século XVIII. São portanto dois os traços da sua obra que gostaria de realçar: a contemporaneidade reflexiva e a multiplicidade temática. Veremos adiante como essa multiplicidade não é senão aparente, como há uma intuição fundadora que lhe dá sentido e unidade. Por agora, passemos em revista, enumerando-as apenas, as suas principais facetas. Há, em primeiro lugar, o Rousseau político, acusador da sociedade do seu tempo, pensador da sociedade civil, da democracia e da liberdade, redactor de um Projet de Constitution pour la Corse (1764), autor das Considérations sur le gouvernement de Pologne, et sur sa réformation projeté (1772), de uma Économie Politique (1755). Autor sobretudo do Contrat Social (1762), obra na qual Rousseau se interroga sobre as condições de legitimidade do poder político e opera um deslocamento porventura decisivo. Trata-se de uma verdadeira revolução coperniciana pela qual a política deixa de ser considerada do lado de quem manda para passar a sê-lo do lado de quem obedece: “o mais forte nunca é suficientemente forte se não conseguir transformar a sua força em direito e a obediência em dever”. A partir de Rousseau, o critério de legitimidade do poder não mais poderá ser procurado do lado do governante, da sua força, da sua virtude, da sua pertença a uma linhagem dinástica investida do direito divino de mandar, mas do lado dos governados, no consentimento livre e portanto racional dos súbditos, elevados à categoria de cidadãos. Aqui se joga algo de capital importância. Algo que define o núcleo incontestado das nossas actuais convicções democráticas – a igualdade de todos perante a lei, o princípio da soberania popular, a necessidade de, de algum modo, encontrar uma vontade geral resultante do livre jogo das liberdades. Du Contract Social ou Principes du Droit Politiqueé uma obra capital que não aponta para uma qualquer alternativa política mas constitui uma profunda reflexão sobre as condições de legitimidade possível de qualquer regime político. Não um texto pragmático mas fundamentalmente um texto filosófico, que interroga o problema crucial das relações entre sujeito e estado, liberdade individual e interesse social, dever e direito: “Perguntar-me-ão se sou príncipe ou legislador para escrever sobre política. Responderei que não, mas que é precisamente por essa razão que escrevo sobre este tema. Se fosse príncipe ou legislador, não perderia o meu tempo a dizer o que é necessário fazer; fa-lo-ia ou ficaria calado”. No entanto, a obra foi lida de formas muito divergentes. Rousseau aparece como inspirador de Robespierre mas também de Napoleão, como o pai da democracia mas também do anarquismo. Uns vêem nele um liberal, outros um crítico do Estado; um revolucionário, um subversivo ou um conservador, um defensor da ordem estabelecida; um totalitarista que prevê a alienação da liberdade individual à vontade geral, a entrega total de cada homem ao Estado ou um igualitarista mais ou menos libertário que propõe a dissolução do Estado face a inalienável autonomia da vontade e liberdade dos indivíduos.
Há depois o grande Rousseau pedagogo, preceptor particular, autor do Emile ou De l’Éducation (1758), pai reclamado de Pestalozzi, Froebel, Claparède ou Neil, inventor da infância. Digo inventor porque, contra a tradicional redução da criança a um homúnculo, contra a incapacidade dos seus antecessores e contemporâneos para reconhecerem a especificidade da infância, a sua particular forma de inserção na realidade, Rousseau é o primeiro, ou pelo menos o mais veemente, defensor da diferença infantil: “a natureza quer que os homens sejam crianças antes de serem homens. Se pervertermos esta ordem produziremos frutos precoces sem maturidade e sem sabor que não tardarão a corromper-se. Teremos jovens doutores e crianças velhas. A infância tem modos próprios de ver, pensar e sentir e nada há de menos sensato que querer substituí-los aos nossos”. Mas Rousseau vai mais longe. Não só
adopta uma perspectiva compreensiva relativamente aos valores da criança cuja
diferença reclamadamente afirma, como a liberta da culpa de um pecado que sobre
ela pesava desde a origem dos tempos. Se há algum aspecto em que a nossa
gratidão para com Rousseau mais seja de realçar é, segundo creio, nessa sua
violenta e apaixonada recusa de aceitar o postulado do pecado original. Daí que
as suas propostas em matéria educativa só possam consistir em preservar o mais
possível a bondade e a inocência naturais da criança, em retardar o mais
possível o contágio com a corrupção cultural (pedagogia negativa).
Depois, há o grande Rousseau “écrivan”, escritor e poeta, autor de algumas das mais belas páginas da literatura francesa do século XVIII, por exemplo, nas Rêveries du Promeneur Solitaire (1776), romancista, autor dos Dialogues (1772-76) e da La Nouvelle Helòise (1756), criador mesmo de um novo estilo literário – a autobiografia. Les Confessions (1765) são efectivamente um texto inaugural e talvez mesmo, como queria Rousseau, “uma obra única, sem exemplo no passado e sem imitadores no futuro”.Antes, havia Santo Agostinho, Santa Teresa de Àvila ou Montaigne. Mas os seus textos, de natureza religiosa, contavam o encontro desses autores com Deus e não consigo próprios. Depois, o Cardeal Retz, o próprio Voltaire, Saint-Simon e tantos outros. Mas então, o que é descrito são os grandes acontecimentos em que esses autores participaram, as personagens ilustres que conheceram e não, como fez Rousseau, a simples e difícil história do próprio eu. Aparecerão posteriormente o diário íntimo (Auriel), a Recherche (Proust), a moderna literatura autobiográfica. Mas sempre, por um traço ou outro, esses textos se distinguem e afastam das paradoxais Confessions de Rousseau. Para uns, obra de um doente, de um narcisista, de um exibicionista que teve a indiscrição de contar a sua vida. Para outros, obra de um homem único que teve a coragem de se expor, de oferecer à humanidade a mais espantosa e tocante discrição autobiográfica, o mais rico e apaixonante relato introspectivo. Porém, falar do Rousseau “écrivain”, não pode consistir apenas na referência aos seus mais belos textos literários. É necessário reconhecer o apuramento formal de todos os seus escritos, a harmonia da letra, o ritmo das frases, a inquietante beleza com que comunica, tanto as impressões mais ocasionais, como os mais profundos pensamentos e sublimes intuições. Beleza imensa e pesada que dá ao seu texto um enigmático estatuto, difícil de classificar, impossível de encenar num dos comportamentos culturais. Texto literário sem dúvida! Texto mesmo que ajuda a literatura a tomar consciência de si própria.
No entanto, é aqui, a nosso ver, que se situa a chave do entendimento da unidade possível da sua obra, o núcleo que organiza e permite reconduzir a dispersão aparente dos seus escritos a uma singular estrutura de forma e conceitos. Na verdade, subjacente à multiplicidade dos seus escritos há, sob o ponto de vista formal, uma unidade profunda, resultante da ardente paixão de escritor que, em todos eles, corre velada. E, sob o ponto de vista conceptual, como o próprio Rousseau explicitamente reconhece, há uma intuição fundadora que dá unidade e coerência a toda a sua obra:
É afinal no filósofo Rousseau que Rousseau nunca quis ser que se encontra a trama sistemática de um pensamento que, de tão criador fica aquém daquilo que pensa, de tão original, se desdobra, dispersa e derrama em polissémicas direcções, como que procurando esgotar-se e incansavelmente pensar-se até ao fim. Companheiro de Condillac, amigo exaltado de Diderot, hóspede ingrato de David Hume, inspirador reconhecido de um movimento filosófico que teve em Kant o seu grande pensador e no romantismo alemão a sua máxima fulguração, Rousseau nunca se quis assumir como filósofo ainda que estivesse de facto na posse de um sistema notavelmente criador. Sistema que, como vimos, decorre de uma intuição fundadora e consiste no desenvolvimento do princípio de que “a natureza fez o homem feliz e bom mas a sociedade deprava-o e torna-o miserável”. Sistema que adopta uma particular perspectiva metodológica fazendo-nos recuar até um local de análise, simultaneamente anterior, exterior e interior, meramente hipotético e mesmo impossível, de qualquer modo, local de referência paradigmático a partir do qual se torna possível pensar. Sistema
que se traduz numa coerente concepção do mundo mediante a qual Rousseau denuncia
a negatividade das ciências e das artes (Primeiro Discurso),
a corrupção da vida social (Segundo
Discurso), a ilegitimidade das relações políticas vigentes (Contrato Social),
a perversão educativa (Emílio).
Filósofo “malgré tout”, há ainda um outro Rousseau de que gostaria de vos falar: um Rousseau feminino! Não se trata de proclamar que Rousseau não era afinal um homem mas uma mulher escondida sob um vestuário e pseudónimo masculinos, de anunciar a descoberta sensacional de uma personagem hermafrodita ou de revelar uma nova Georg Sand. Trata-se de interpretar diversos sinais que pontuam a obra e a vida de Rousseau, de julgar perceber a razão que os funde e a raiz que os alimenta. Um primeiro sinal reside no facto de as mulheres terem tido um papel muito importante na vida de Rousseau. Em primeiro lugar, a mãe que morre quando o dá a luz, facto do qual Rousseau sempre se sentiu de algum modo responsável: “custei a vida à minha mãe e o meu nascimento foi a primeira das minhas infelicidades”. De futuro, tratar-se-á sempre, para Rousseau, de procurar substitutos para a mãe perdida.
Mas a feminilidade de Rousseau, tal como eu a entendo, não corresponde a uma dimensão explícita da sua obra mas uma intenção latente da sua alma. Porventura, apenas a um desejo meu (e assumido) de leitora infiel. Quer-me no entanto parecer que os vários aspectos que referi, se não chegam para garantir a legitimidade da leitura que procuro construir, são pelo menos marcas de uma instância conceptual da maior importância, dotada, além do mais, de grande coerência sistemática – o conceito de alteridade. Vimos atrás como o princípio fundador do sistema filosófico de Rousseau: “A natureza fez o homem feliz e bom mas a sociedade deprava-o e torna-o miserável”, implica, na sua concepção como no seu desenvolvimento, a adopção de uma perspectiva metodológica de análise suficientemente recuada para permitir descobrir o outro do homem civilizado de hoje – o homem natural do começo – e para compreender e denunciar a decadência que se verificou na passagem de um estado a outro. Digamos que Rousseau, colocando-se na perspectiva do homem natural que inventou, isto é, pensando a partir da hipostasiada exterioridade de um espaço pré-social e pré-cultural, o que afinal reivindica é a exigência de reconhecimento da diferença, o que afinal descobre é o caminho para pensar a alteridade: conceito que funciona na sua obra como o paradigma que secretamente o conduz. É aqui que radica a já referida paternidade de Rousseau em relação à moderna antropologia e etnologia. Quando, por exemplo Lévy-Strauss, dois séculos mais tarde, diz que é necessário “procurar a sociedade da natureza para aí meditar sobre a natureza da sociedade” é ainda (e reconhecidamente) o eco dessa atitude inventada por Rousseau que se faz ouvir. Conceito paradigmático de que Rousseau retira imediatas consequências éticas ao nível da atitude, a alteridade é ainda em Rousseau um sentimento ou, ao invés, por ser um sentimento é que é transmutada em atitude e em conceito. De qualquer modo, sentimento que corresponde a um dos traços mais característicos da personalidade e da vida de Rousseau: “Não sou feito como nenhum dos que tenho visto; ouso crer não ser feito como nenhum dos que existem. Se não valho mais, pelo menos sou diferente (je suis autre)” . Marginal e marginalizado, Rousseau teve a audácia e o orgulho de se sentir e afirmar diferente, assumindo essa diferença não só ao nível do “sistema” como também ao nível da escrita e da vida. As Confessions são a exposição radical e veemente dessa diferença. Mas todo o espaço significante da sua escrita se encontra igualmente por ela inundado. Quanto à sua existência, sabemos como a fez rodear e envolver por uma série de sinais indicativos da sua tão reclamada diferença: a recusa da vida social e urbana: “levanto-me à hora a que se deitam em Paris, deito-me antes que lá se jante, o meu dia termina antes do que lá começa (...) sufoco num quarto, numa sela, numa casa, numa rua, na praça Vendôme; o pavimento, o cinzento das paredes e dos tectos provocam-me pesadelos”.
A sua
diferença é, de facto, completa: à racionalidade opõe o sentimento; à adultez a
infância; aos valores da cultura, a natureza; à cidade, a floresta; ao homem
civilizado, o homem primitivo. E como é que essa diferença podia ser levada até
às suas últimas consequências? Qual a fronteira limite que Rousseau deveria
ainda transpor para alcançar um completo descentramento? Não deveria Rousseau,
por exigência sistemática, procurar adoptar o ponto de vista da mulher, dessa
Julie em nome de quem havia escrito cartas de amor, dessa mulher cuja história
chegou a projectar escrever, dessa mãe arquetípica que morreu para lhe dar a
vida e cuja sombra, e cujo eco, incansavelmente procurou noutras mulheres? Reencontramos assim, por um diverso caminho, a hipótese de leitura que vos proponho. Se, de início, essa hipótese pretendia construir-se a partir da interpretações de sinais (mais ou menos episódicos) relativos à vida e à obra de Rousseau, se procurava, por detrás desses sinais, uma razão ou raiz fundante de que eles pudessem ser símbolos, isto é, se indutivamente estabelecia uma série original de que os referidos sinais seriam sintomas, agora, essa leitura encontra, dedutivamente, um novo fundamento e justificação pois que a feminilidade aparece como exigência sistemática e consequência lógica de algo que constituiu, no nosso autor, um sentimento profundo, uma atitude ética e um conceito paradigmático: a alteridade. Porque soube colocar-se na perspectiva da infância, Rousseau pôde escrever uma obra como o Émile e definir-se a si próprio como “uma criança envelhecida”. Porque adoptou o ponto de vista do homem natural, Rousseau pôde construir o Discours sur l’Origine et les Fondements de l’Inégalité parmi les Hommes e afirmar-se como o herdeiro de uma verdade por todos esquecida. Mas, porque, embora tendo tentado, não conseguiu assumir até ao fim a perspectiva da mulher, não chegou a realizar o projecto de escrever uma história vista do ponto de vista da mulher e foi só numa obra de ficção como a Nouvelle Hëloise que tomou a palavra em nome de Julie. É certo que, por dois breves momentos, Rousseau parece reconhecer em si próprio a sua própria feminilidade: quando, em Les Confessions, escreve: “assim começava a formar-se ou a mostrar-se em mim este coração tão digno e tão terno, este carácter efeminado”, e quando, noutra passagem da mesma obra, se define como “uma espécie de mulher escondida sob os hábitos de um homem”. Mas poderia de facto fazê-lo? Seria exigível que adoptasse a perspectiva da mulher, tal como soube adoptar a da criança e a do selvagem? Se Rousseau procurasse assumir inteiramente a perspectiva da mulher, não estaria afinal a impedir-se de a reconhecer diferente? A criança e o homem natural são ainda categorias recuperáveis. Esquecidas, abafadas sob o peso da adultez e da história social, é possível reencontrá-las por um esforço de memória e reflexão. É que, da criança ao adulto, do selvagem ao civilizado, há, apesar de tudo, uma transição que, não sendo legítima nem inevitável, não constituindo um progresso mas uma decadência lamentavelmente tecida no desenrolar do tempo, é, no entanto, uma transição contínua. Pelo contrário, entre o homem e a mulher, existe uma radical descontinuidade, abre-se o espaço de uma diferença intransponível. Um abismo metafísico e não apenas uma distância temporal e histórica. Rousseau
teve talvez essa intuição. Compreendeu que, porventura, a fidelidade ao seu
próprio pensamento da alteridade o impedia de pensar esse pensamento até ao
fim. Digamos que a sua atracção pela alteridade o lançava para essa aventura, mas a sua
fina inteligência travava esse movimento. Mas, digamos também que, se o que
caracteriza um pensamento criador é o facto de ficar aquém daquilo que pensa,
então, Rousseau é o mais criador dos pensadores, aquele que colocando-se como
tarefa pensar o outro radical – a mulher – necessariamente se encontrou sempre
aquém daquilo mesmo que quis pensar.
Textos online de Rousseau e outros sites http://un2sg4.unige.ch/athena/rousseau/rousseau.html - J. J. Rousseau, Oeuvres et Documents,
ATHENA |
Olga Pombo: opombo@fc.ul.pt
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