Interdisciplinaridade. Ambições e Limites


  Lisboa: Relógio d'Água, 2004, 203 pp.  
(edição apoiada pelo IPLB)


Prefácio (excertos)
 

Hoje as fronteiras são porosas. E nós, que havíamos sonhado com o seu derrube, sentimos que, sem elas, o mundo se tornou menos seguro. A banalidade derrubou não apenas a fronteira entre a arte e o bom senso, mas todas as fronteiras. Tudo pode ser incluído, misturado, amalgamado, simplesmente junto, lado a lado.

Ora, a interdisciplinaridade é uma palavra que tem sido convocada para descrever este domínio do indiferenciado. Ela surge tanto para sancionar essa diluição das fronteiras - espécie de sinónimo de capitulação face aos rigores que toda as posturas disciplinares implicam - como para referir o contrôle e exploração (leia-se potenciação) da transversalidade entre conhecimentos que a anulação das fronteiras entre disciplinas pode favorecer.

Entre a recusa indolente das especializações e a fertilidade heurística dos cruzamentos entre competências, a palavra interdisciplinaridade foi-se impondo como uma password universal. Ela entrou no vocabulário da investigação científica e dos novos modelos de comunicação entre pares. Qual é o projecto que hoje não reúne equipas interdisciplinares? Qual é o colóquio ou mesmo o congresso que não é interdisciplinar? Também no contexto empresarial, a palavra interdisciplinaridade tem tido uma utilização exponencial. Refira-se apenas o caso da gestão de empresas, onde alguma coisa designada por  interdisciplinaridade é usada como processo expedito de gestão e decisão, ou o caso da produção técnica e tecnológica, sobretudo a mais avançada, onde se tende cada vez mais a reunir equipas interdisciplinares para trabalhar na concepção, planificação e produção dos objectos a produzir ..

De modo similar, em muitas Escolas Secundárias e Universidades, são feitas experiências ditas interdisciplinares. Ora, o que muitas vezes acontece é que a palavra está lá, mas percebemos que a experiência em causa é insuficiente, que, muitas vezes, se resume a um acto, legítimo por certo, mas de pura animação cultural. No entanto, qual o curso que hoje não comporta elementos curriculares interdisciplinares? Qual a reforma que hoje se não reclama da interdisciplinaridade?

A interdisciplinaridade é também capturada pelos meios de comunicação, que fazem dela uma utilização selvagem, abusiva, caricatural. Quando se quer discutir um problema qualquer, a Guerra do Iraque, as eleições americanas, a moda ou o mais extravagante episódio futebolístico, a ideia é sempre a mesma: juntar várias pessoas, de diferentes áreas do conhecimento, e pô-las em conjunto a falar à roda de uma mesa, lado a lado, frente a frente, em círculo ou semicírculo, em presença ou por videoconferência, etc. Cada pessoa fala na sua vez ou procura-se que conversem umas com as outras. Porém, a maior parte das vezes, o que acontece é desentenderem-se, caírem em mal entendidos, conflitos, falhas terríveis de comunicação. Não importa! O que está subjacente a esta mera inventividade de cenários é sempre a ideia embrionária - e muito ingénua - de que a simples presença física (ou virtual) de várias pessoas (como incarnações de vários saberes) em torno de uma mesma mesa (sobretudo se for “redonda”), criaria automaticamente um real confronto de perspectivas, uma discussão mais rica porque, dir-se-á, mais interdisciplinar. Ora, em geral, isso nada tem a ver com a interdisciplinaridade. Ao contrário, na esmagadora maioria dos casos, isso tem tudo a ver com a disciplinaridade, ou seja,  com a incapacidade que todos temos de ultrapassar os nossos próprios princípios discursivos, as perspectivas teóricas e os modos de funcionamento em que fomos treinados, formados, educados.  

Do conjunto de práticas de investigação e de ensino orientadas pelo esforço de convergência entre especialidades, dos discursos mais ou menos utópicos sobre uma fraternidade última de todos os saberes, das encenações televisivas da pluralidade, restam apena essa designação vaga de interdisciplinaridade. No entanto, nem as pessoas que a praticam, nem as que a teorizam, nem aquelas que a procuram definir, sabem o que ela é. A interdisciplinaridade é uma palavra gasta, tantas vezes banalizada, vazia de sentido. Um conceito à deriva,  uma palavra à procura  de uma teoria. Por isso, falar sobre interdisciplinaridade é hoje uma tarefa ingrata e difícil - quase impossível.

Se, mesmo assim, este livro se escreve, é porque acreditamos que, na própria palavra, ou nos seus usos, selvagens ou domesticados, algo de fundamental se procura dizer, tanto sobre a condição actual do conhecimento, como sobre as formas possíveis do seu ensino. Por isso, para além de  propor novas definições deste conceito, ou outros mapas para a descrição dos seus usos em projectos de investigação, nas escolas, nas teorias da ciência, este livro procura sobretudo escutar o que, ao longo dos últimos 40 ou 50 anos, se foi procurando dizer nesta palavra interdisciplinaridade. Tentar oferecer um panorama dos estudos até agora efectuados sobre interdisciplinaridade. Tentar perceber o que por ela, e através dela, se dá a pensar.

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 A hipótese que organiza este livro é a de que, pela palavra interdisciplinaridade se dá a pensar algo que porventura merece ser pensado, que nela e por ela se procura pensar um fenómeno decisivo da ciência contemporânea. Referimo-nos à clivagem, à passagem, ao deslocamento no modelo analítico de uma ciência que se construiu desde os seus começos como a procura de divisão de cada dificuldade no seu conjunto de elementos ínfimos, isto é, que partiu do princípio de que existe um conjunto finito de elementos constituintes, e que só a análise de cada um desses elementos permite depois reconstituir o todo. Quer isto dizer que o programa analítico está em crise? Não, isto quer dizer que ele surge hoje como insuficiente. Este programa - temos que o reconhecer - deu ao homem muitas e magnificas coisas, praticamente tudo o que temos hoje como ciência, tudo o que enquadra a nossa vida e constitui a base da nossa compreensão do mundo. Só que - temos também que estar abertos a reconhecê-lo - há muita coisa que a própria ciência produziu e que já não cabe neste programa. Se não podemos esquecer, diminuir, negar os benefícios da ciência moderna, tanto em termos de compreensão do mundo como de melhoria das nossas próprias vidas, isso não pode ser impeditivo do reconhecimento dos custos que a especialização trouxe consigo.

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Paralelamente, é significativo que a investigação se faça cada vez mais, não só no interior dos adquiridos de uma disciplina especializada, mas no cruzamento das suas hipóteses e resultados com as hipóteses e os resultados de outras disciplinas. Ou seja, o progresso da ciência, a partir sobretudo da segunda metade do século XX, deixou de poder ser pensado como linear. Num número cada vez maior de casos, deixou de resultar de uma especialização cada vez mais funda mas, ao contrário e cada vez mais, depende da fecundação recíproca de diversas disciplinas, da transferência de conceitos, problemas e métodos, numa palavra, do cruzamento interdisciplinar. Trata-se de reconhecer que determinadas investigações reclamam a sua própria abertura para conhecimentos que pertencem, tradicionalmente, ao domínio de outras disciplinas e que só essa abertura vai permitir aceder a camadas mais profundas da realidade que se quer estudar. Digamos que a ciência já descobriu, ou está em vias de descobrir, tudo o que é possível descobrir através da especialização.  A partir de determinado momento, é o progresso da própria especialização  que exige o cruzamento, a articulação entre domínios.  A bioquímica já tem 50 anos e se se constituiu com disciplina científica não foi para responder a um qualquer apelo interdisciplinar. Foi porque os biólogos e os químicos perceberam que determinados problemas necessitavam da colaboração dessas duas disciplinas. Da mesma  maneira, a recente constituição da cognição como objecto de estudo das ciências cognitivas também não resultou de uma decisão voluntária ou voluntarista de um filósofo, de um matemático, de um neurologista ou de um homem da computação que, num dado momento, tivessem resolvido fazer um novo arranjo interdisciplinar para ajudar a resolver um velho problema.  O que aconteceu foi que, ao estudar esse problema, os investigadores perceberam a necessidade de convocar outras especialidades. Esta é uma primeira razão e, do meu ponto de vista, a estrutura básica da interdisciplinaridade.

Estamos, pois, perante transformações epistemológicas muito profundas. É como se o próprio mundo resistisse ao seu retalhamento disciplinar. Trata-se de compreender que o progresso do conhecimento já não se dá apenas pela especialização crescente, como estávamos habituados a pensar. A ciência começa a aparecer como um processo que exige também um olhar transversal. Há que abrir para o lado para ver outras coisas, ocultas a um observador rigidamente disciplinar.

Digamos que estamos a entrar num terceiro momento da história das relações cognitivas do homem com o mundo. O primeiro seria o momento sincrético, correspondente à civilização oral, anterior à ciência, anterior à análise, fundado numa relação indistinta entre o homem e o cosmos, isto é, a totalidade orgânica e organizada que o cerca. Um segundo momento, correspondente à Galáxia de Gutenberg como diria McLuhan (1963), seria o da especialização, da fragmentação disciplinar, do pensamento analítico governado pelo princípio, hoje insustentável na sua generalidade, de que o todo é igual à soma das partes. Estaríamos agora a entrar num terceiro momento: aquele que, justamente, reclama o contributo da interdisciplinaridade e integração dos saberes.

O que significa que, assim sendo, a interdisciplinaridade não é qualquer coisa que nós tenhamos que fazer. É qualquer coisa que se está a fazer quer nós queiramos ou não. Nós estamos colocados numa situação de transição para um terceiro momento das relações cognitivas do homem com o mundo e os nossos projectos particulares não são mais do que formas, mais ou menos conscientes, de inscrição nesse movimento. A interdisciplinaridade surge assim como algo que se situa algures entre um projecto voluntarista, algo que nós queremos fazer, que temos vontade de fazer e, ao mesmo tempo, qualquer coisa que, independentemente da nossa vontade, se está inexoravelmente a fazer, quer queiramos quer não. E é na tensão entre estas duas dimensões que nós, indivíduos particulares, na precariedade e fragilidade das nossas vidas, procuramos caminhos para fazer alguma coisa que, por nossa vontade e porventura independentemente dela, se vai fazendo. Podemos compreender este processo e, discursivamente, desenhar projectos que visam acompanhar esse movimento, ir ao encontro de uma realidade que se está a transformar para além das nossas próprias vontades e dos nossos próprios projectos. Ou podemos não perceber o que se está a passar e reagir pela recusa da interdisciplinaridade ou pela sua utilização fútil, superficial, como se se tratasse de um mero projecto voluntarista formulado no contexto de uma simples moda, passageira como todas as modas.

Perceber a transformação epistemológica em curso é perceber que lá, onde esperávamos encontrar o simples, está o complexo, o infinitamente complexo. Que quanto mais fina é a análise, maior a complexidade que se abre à nossa frente. E, portanto, que o todo não é a soma das partes. Este é, penso eu, uma das chaves fundamentais para o entendimento desta questão. Colocado na ordem do dia pelos desenvolvimentos de diversas ciências (das matemáticas às ciências da natureza e às ciências humanas), este simples enunciado tem tido um impacto e uma influência extraordinária na nossa ciência e na nossa maneira de pensar a questão da interdisciplinaridade. É que, se o todo não é a soma das partes, a especialização tem que ser complementada, ou mesmo em alguns casos substituída, por uma compreensão interdisciplinar capaz de dar conta das configurações, dos arranjos, das perspectivas múltiplas que a ciência tem que convocar para o conhecimento mais aprofundado dos seus objectos de estudo. Ou seja, o problema da especialização encontra os seus limites justamente aqui, no momento em que a ciência toma consciência da verdade desse enunciado.

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Uma última palavra diz respeito ao facto de a interdisciplinaridade se deixar pensar, não apenas na sua faceta cognitiva, enquanto sensibilidade à complexidade, capacidade de penetração do olhar no sentido de procurar mecanismos comuns, estruturas profundas que possam articular o que aparentemente não é articulável, mas também em termos de atitude: curiosidade, vontade saber, interesse real por escutar o que o outro tem para dizer, gosto pela colaboração, pela cooperação, pelo trabalho em comum, disponibilidade para abandonar a segurança do seu domínio próprio, para interromper o conforto da sua linguagem técnica, para se aventurar em campos - lavrados por muitos, é certo - mas de ninguém é proprietário exclusivo.  

Não se trata de defender que, com a interdisciplinaridade, se alcançaria uma forma de anular o poder que todo saber implica. Isso seria cair na utopia beata do sábio sem poder e, por contraponto, aceitar como boa a figura do político sem saber, do mero técnico. Trata-se de procurar partilhar, ou melhor, de desejar partilhar o poder que se tem. Não o guardar. Não o ocultar. Retirar ao poder o seu segredo. Torná-lo discursivo. Estar animado da boa vontade necessária para o discutir.

No fundo, perceber que a verdade é um compromisso colectivo. Como recordava Sócrates no Protágoras de Platão (347d) lembrando Homero, “quando dois homens caminham  juntos, um pode ver antes do outro”

Olga Pombo

 

Olga Pombo opombo@fc.ul.pt