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Prefácio
(excertos)
Hoje
as fronteiras são porosas. E nós, que havíamos sonhado com o seu
derrube, sentimos que, sem elas, o mundo se tornou menos seguro. A
banalidade derrubou não apenas a fronteira entre a arte e o bom senso,
mas todas as fronteiras. Tudo pode ser incluído, misturado, amalgamado,
simplesmente junto, lado a lado.
Ora,
a interdisciplinaridade é uma palavra que tem sido convocada para
descrever este domínio do indiferenciado. Ela surge tanto para
sancionar essa diluição das fronteiras - espécie de sinónimo de
capitulação face aos rigores que toda as posturas disciplinares
implicam - como para referir o contrôle e exploração (leia-se
potenciação) da transversalidade entre conhecimentos que a anulação
das fronteiras entre disciplinas pode favorecer.
Entre
a recusa indolente das especializações e a fertilidade heurística dos
cruzamentos entre competências, a palavra interdisciplinaridade foi-se
impondo como uma password universal. Ela entrou no vocabulário da
investigação científica e dos novos modelos de comunicação entre
pares. Qual é o projecto que hoje não reúne equipas
interdisciplinares? Qual é o colóquio ou mesmo o congresso que não é
interdisciplinar? Também no contexto empresarial, a palavra
interdisciplinaridade tem tido uma utilização exponencial. Refira-se
apenas o caso da gestão de empresas, onde alguma coisa designada por
interdisciplinaridade é usada como processo expedito de gestão
e decisão, ou o caso da produção técnica e tecnológica, sobretudo a
mais avançada, onde se tende cada vez mais a reunir equipas
interdisciplinares para trabalhar na concepção, planificação e produção
dos objectos a produzir ..
De
modo similar, em muitas Escolas Secundárias e Universidades, são
feitas experiências ditas interdisciplinares. Ora, o que muitas vezes
acontece é que a palavra está lá, mas percebemos que a experiência
em causa é insuficiente, que, muitas vezes, se resume a um acto, legítimo
por certo, mas de pura animação cultural. No entanto, qual o curso que
hoje não comporta elementos curriculares interdisciplinares? Qual a
reforma que hoje se não reclama da interdisciplinaridade?
A
interdisciplinaridade é também capturada pelos meios de comunicação,
que fazem dela uma utilização selvagem, abusiva, caricatural. Quando
se quer discutir um problema qualquer, a Guerra do Iraque, as eleições
americanas, a moda ou o mais extravagante episódio futebolístico, a
ideia é sempre a mesma: juntar várias pessoas, de diferentes áreas do
conhecimento, e pô-las em conjunto a falar à roda de uma mesa, lado a
lado, frente a frente, em círculo ou semicírculo, em presença ou por
videoconferência, etc. Cada pessoa fala na sua vez ou procura-se que
conversem umas com as outras. Porém, a maior parte das vezes, o que
acontece é desentenderem-se, caírem em mal entendidos, conflitos,
falhas terríveis de comunicação. Não importa! O que está subjacente
a esta mera inventividade de cenários é sempre a ideia embrionária -
e muito ingénua - de que a simples presença física (ou virtual) de várias
pessoas (como incarnações de vários saberes) em torno de uma mesma
mesa (sobretudo se for “redonda”), criaria automaticamente um real
confronto de perspectivas, uma discussão mais rica porque, dir-se-á,
mais interdisciplinar. Ora, em geral, isso nada tem a ver com a
interdisciplinaridade. Ao contrário, na esmagadora maioria dos casos,
isso tem tudo a ver com a disciplinaridade, ou seja,
com a incapacidade que todos temos de ultrapassar os nossos próprios
princípios discursivos, as perspectivas teóricas e os modos de
funcionamento em que fomos treinados, formados, educados.
Do
conjunto de práticas de investigação e de ensino orientadas pelo
esforço de convergência entre especialidades, dos discursos mais ou
menos utópicos sobre uma fraternidade última de todos os saberes, das
encenações televisivas da pluralidade, restam apena essa designação
vaga de interdisciplinaridade. No entanto, nem as pessoas que a
praticam, nem as que a teorizam, nem aquelas que a procuram definir,
sabem o que ela é. A interdisciplinaridade é uma palavra gasta, tantas
vezes banalizada, vazia de sentido. Um conceito à deriva,
uma palavra à procura de
uma teoria. Por isso, falar sobre interdisciplinaridade é hoje uma
tarefa ingrata e difícil - quase impossível.
Se,
mesmo assim, este livro se escreve, é porque acreditamos que, na própria
palavra, ou nos seus usos, selvagens ou domesticados, algo de
fundamental se procura dizer, tanto sobre a condição actual do
conhecimento, como sobre as formas possíveis do seu ensino. Por isso,
para além de propor novas
definições deste conceito, ou outros mapas para a descrição dos seus
usos em projectos de investigação, nas escolas, nas teorias da ciência,
este livro procura sobretudo escutar o que, ao longo dos últimos 40 ou
50 anos, se foi procurando dizer nesta palavra interdisciplinaridade.
Tentar oferecer um panorama dos estudos até agora efectuados sobre
interdisciplinaridade. Tentar perceber o que por ela, e através dela,
se dá a pensar.
(...)
A
hipótese que organiza este livro é a de que, pela palavra
interdisciplinaridade se dá a pensar algo que porventura merece ser
pensado, que nela e por ela se procura pensar um fenómeno decisivo da
ciência contemporânea. Referimo-nos à clivagem, à passagem, ao
deslocamento no modelo analítico de uma ciência que se construiu desde
os seus começos como a procura de divisão de cada dificuldade no seu
conjunto de elementos ínfimos, isto é, que partiu do princípio de que
existe um conjunto finito de elementos constituintes, e que só a análise
de cada um desses elementos permite depois reconstituir o todo. Quer
isto dizer que o programa analítico está em crise? Não, isto quer
dizer que ele surge hoje como insuficiente. Este programa - temos que o
reconhecer - deu ao homem muitas e magnificas coisas, praticamente tudo
o que temos hoje como ciência, tudo o que enquadra a nossa vida e
constitui a base da nossa compreensão do mundo. Só que - temos também
que estar abertos a reconhecê-lo - há muita coisa que a própria ciência
produziu e que já não cabe neste programa. Se não podemos esquecer,
diminuir, negar os benefícios da ciência moderna, tanto em termos de
compreensão do mundo como de melhoria das nossas próprias vidas, isso
não pode ser impeditivo do reconhecimento dos custos que a especialização
trouxe consigo.
(...)
Paralelamente, é significativo que a investigação se faça cada vez
mais, não só no interior dos adquiridos de uma disciplina
especializada, mas no cruzamento das suas hipóteses e resultados com as
hipóteses e os resultados de outras disciplinas. Ou seja, o progresso
da ciência, a partir sobretudo da segunda metade do século XX, deixou
de poder ser pensado como linear. Num número cada vez maior de casos,
deixou de resultar de uma especialização cada vez mais funda mas, ao
contrário e cada vez mais, depende da fecundação recíproca de
diversas disciplinas, da transferência de conceitos, problemas e métodos,
numa palavra, do cruzamento interdisciplinar. Trata-se de reconhecer que
determinadas investigações reclamam a sua própria abertura para
conhecimentos que pertencem, tradicionalmente, ao domínio de outras
disciplinas e que só essa abertura vai permitir aceder a camadas mais
profundas da realidade que se quer estudar. Digamos que a ciência já
descobriu, ou está em vias de descobrir, tudo o que é possível
descobrir através da especialização.
A partir de determinado momento, é o progresso da própria
especialização que exige o
cruzamento, a articulação entre domínios.
A bioquímica já tem 50 anos e se se constituiu com disciplina
científica não foi para responder a um qualquer apelo
interdisciplinar. Foi porque os biólogos e os químicos perceberam que
determinados problemas necessitavam da colaboração dessas duas
disciplinas. Da mesma maneira,
a recente constituição da cognição como objecto de estudo das ciências
cognitivas também não resultou de uma decisão voluntária ou
voluntarista de um filósofo, de um matemático, de um neurologista ou
de um homem da computação que, num dado momento, tivessem resolvido
fazer um novo arranjo interdisciplinar para ajudar a resolver um velho
problema. O que aconteceu
foi que, ao estudar esse problema, os investigadores perceberam a
necessidade de convocar outras especialidades. Esta é uma primeira razão
e, do meu ponto de vista, a estrutura básica da interdisciplinaridade.
Estamos,
pois, perante transformações epistemológicas muito profundas. É como
se o próprio mundo resistisse ao seu retalhamento disciplinar. Trata-se
de compreender que o progresso do conhecimento já não se dá apenas
pela especialização crescente, como estávamos habituados a pensar. A
ciência começa a aparecer como um processo que exige também um olhar
transversal. Há que abrir para o lado para ver outras coisas, ocultas a
um observador rigidamente disciplinar.
Digamos
que estamos a entrar num terceiro momento da história das relações
cognitivas do homem com o mundo. O primeiro seria o momento sincrético,
correspondente à civilização oral, anterior à ciência, anterior à
análise, fundado numa relação indistinta entre o homem e o cosmos,
isto é, a totalidade orgânica e organizada que o cerca. Um segundo
momento, correspondente à Galáxia de Gutenberg como diria McLuhan
(1963), seria o da especialização, da fragmentação disciplinar, do
pensamento analítico governado pelo princípio, hoje insustentável na
sua generalidade, de que o todo é igual à soma das partes. Estaríamos
agora a entrar num terceiro momento: aquele que, justamente, reclama o
contributo da interdisciplinaridade e integração dos saberes.
O que significa que, assim sendo, a interdisciplinaridade não é
qualquer coisa que nós tenhamos que fazer. É qualquer coisa que se está
a fazer quer nós queiramos ou não. Nós estamos colocados numa situação
de transição para um terceiro momento das relações cognitivas do
homem com o mundo e os nossos projectos particulares não são mais do
que formas, mais ou menos conscientes, de inscrição nesse movimento. A
interdisciplinaridade surge assim como algo que se situa algures entre
um projecto voluntarista, algo que nós queremos fazer, que temos
vontade de fazer e, ao mesmo tempo, qualquer coisa que,
independentemente da nossa vontade, se está inexoravelmente a fazer,
quer queiramos quer não. E é na tensão entre estas duas dimensões
que nós, indivíduos particulares, na precariedade e fragilidade das
nossas vidas, procuramos caminhos para fazer alguma coisa que, por nossa
vontade e porventura independentemente dela, se vai fazendo. Podemos
compreender este processo e, discursivamente, desenhar projectos que
visam acompanhar esse movimento, ir ao encontro de uma realidade que se
está a transformar para além das nossas próprias vontades e dos
nossos próprios projectos. Ou podemos não perceber o que se está a
passar e reagir pela recusa da interdisciplinaridade ou pela sua utilização
fútil, superficial, como se se tratasse de um mero projecto
voluntarista formulado no contexto de uma simples moda, passageira como
todas as modas.
Perceber a transformação epistemológica em curso é perceber
que lá, onde esperávamos encontrar o simples, está o complexo, o
infinitamente complexo. Que quanto mais fina é a análise, maior a
complexidade que se abre à nossa frente. E, portanto, que o todo não
é a soma das partes. Este é, penso eu, uma das chaves fundamentais
para o entendimento desta questão. Colocado na ordem do dia pelos
desenvolvimentos de diversas ciências (das matemáticas às ciências
da natureza e às ciências humanas), este simples enunciado tem tido um
impacto e uma influência extraordinária na nossa ciência e na nossa
maneira de pensar a questão da interdisciplinaridade. É que, se o todo
não é a soma das partes, a especialização tem que ser complementada,
ou mesmo em alguns casos substituída, por uma compreensão
interdisciplinar capaz de dar conta das configurações, dos arranjos,
das perspectivas múltiplas que a ciência tem que convocar para o
conhecimento mais aprofundado dos seus objectos de estudo. Ou seja, o
problema da especialização encontra os seus limites justamente aqui,
no momento em que a ciência toma consciência da verdade desse
enunciado.
(...)
Uma última palavra diz respeito ao facto de a
interdisciplinaridade se deixar pensar, não apenas na sua faceta
cognitiva, enquanto sensibilidade à complexidade, capacidade de penetração
do olhar no sentido de procurar mecanismos comuns, estruturas profundas
que possam articular o que aparentemente não é articulável, mas também
em termos de atitude: curiosidade, vontade saber, interesse real por
escutar o que o outro tem para dizer, gosto pela colaboração, pela
cooperação, pelo trabalho em comum, disponibilidade para abandonar a
segurança do seu domínio próprio, para interromper o conforto da sua
linguagem técnica, para se aventurar em campos - lavrados por muitos,
é certo - mas de ninguém é proprietário exclusivo.
Não se trata de defender que, com a interdisciplinaridade, se
alcançaria uma forma de anular o poder que todo saber implica. Isso
seria cair na utopia beata do sábio sem poder e, por contraponto,
aceitar como boa a figura do político sem saber, do mero técnico.
Trata-se de procurar partilhar, ou melhor, de desejar partilhar o poder
que se tem. Não o guardar. Não o ocultar. Retirar ao poder o seu
segredo. Torná-lo discursivo. Estar animado da boa vontade necessária
para o discutir.
No fundo, perceber que a verdade é um compromisso colectivo. Como
recordava Sócrates no Protágoras de Platão (347d) lembrando Homero,
“quando dois homens caminham juntos,
um pode ver antes do outro”
Olga Pombo
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