Pensar a Escola

por Linda Santos Costa in Público (Mil Folhas) 23-11-2002

Se a educação aparece como uma das grandes preocupações dos portugueses (governantes e governados), há um deserto re­flexivo sobre o assunto e as pou­cas obras que vão aparecendo, na maioria dos casos, limitam-se a papaguear as ideias “cientificas e moderníssimas” do último estudo americano ou francês sem dar lugar a questionamentos incómodos e provocativos.

Olga Pombo é a autora de uma dessas obras raras – “A Escola, a Recta e o Círculo” - em que se assiste a um pensar aprofundado e apaixonado sobre o lugar da escola e do ensino na nossa sociedade. Trata-se de um livro constituído por textos elabora­dos ao longo de um percurso temporal muito alargado (a data da publicação do primeiro é de 1984 e os últimos são de 2000), escritos, a maior parte das vezes, a pretexto de colóquios; efeméri­des, encontros profissionais, etc., mas a dispersão temporal e a aparente dispersão temática (reorganizada, é certo, na “arruma­ção” a que a autora os submeteu ao subordiná-los a subtítulos que lhes conferem uma certa unida­de e que o prefácio explicita) são negadas (superadas) e o que fica é o sentimento de estarmos peran­te uma obra una e com sentido, mesmo se não estamos perante um “sistema”, como reconhece lucidamente Olga Pombo no final do prefácio.

Dois grandes temas atravessam todo o livro: a defesa apaixonada do ensino (da escola) e a denuncia de todos os lugares-comuns (no duplo sentido de trivialidades e de ideias consensuais) de que se, têm alimentado as “ciências da educação” (conjunto de saberes cuja cientificidade é justamente posta em causa) e de que são exemplo, entre outros, a pedagogia por objectivos e correlativa preocupação com avaliação, a confusão entre ensinar/educar, a própria ideia de interdisciplina­ridade (que a autora questiona, não no sentido de a pôr de lado, mas de a esclarecer, denuncian­do o seu carácter de palavra “passe-partout”).

Uma pergunta (a pergunta formulada pelos organizadores de um colóquio promovido pela Associação dos Professores de Matemática e que deu origem ao belo e metafórico texto que deu título ao livro) – “Estaremos a caminhar para uma escola de sucesso?” - torna-se a questão orientadora de toda a reflexão sobre a problemática do ensino que Olga Pombo ensaia ao longo de mais de trezentas páginas. E, como sublinha no prefácio, esta reflexão ocorre sob um “regime de resistência”: resistência con­tra as ideias feitas; resistência contra as políticas educativas; resistência contra a criticida­de do discurso das “ciências da educação”.

Mas uma resistência ilumina­da por uma profunda formação filosófica (que a restante obra de Olga Pombo ilustra, sem qual­quer margem para dúvidas, e se deixa ler em filigrana nestes tex­tos mais circunstanciais) e uma longa prática de investigação e ensino.

Uma ideia (que é também um ideal) vivifica toda a reflexão de Olga Pombo sobre a Escola - a escola é o lugar de transmissão do património cultural adqui­rido pelas velhas gerações aos vindouros (a linha como ima­gem dessa continuidade, que se presume sem fim, e exprime o percurso transgeracional), tendo como coadjuvantes a biblioteca e o museu (lugares por excelência do Mundo 3 de K. Popper) -, de que extrai o seguinte corolário: “Sem a escola a ciência seria impossível.”

Neste sentido, a Escola (o ensino) torna-se o lugar de redenção do caminhar para a morte que é o ónus da condição humana (a caducidade e o efé­mero de cada vida individual, de que o círculo, do título do livro, é a metáfora).

Mas se a escola é esse lugar de transmissão tal não significa que se identifique o ensino com qualquer tipo de educação/endoutrinamento/moralização, aparecendo, antes, o professor como "aquele que ensina aquilo que ele é".

Só assim a Escola poderá atingir o seu verdadeiro objec­tivo: ser o lugar do exercício da função cognitiva, recusando qualquer tipo de endoutrinamento e mantendo-se fiel à tarefa de investigação.

Ao professor caberia ensinar, lembra Olga, não os seus valores pessoais ou os valores circuns­tanciais da sua época ou grupo social, mas os valores de que a ciência é exemplo ou conse­quência e que resume, seguindo Popper: confiança aos poderes da razão; recusa de qualquer autoridade; humildade face ao erro; capacidade de crítica e autocrítica; tolerância; discipli­na; espírito de rigor; gratidão; honestidade intelectual.

A questão que fica em aberto é a seguinte: como pode haver ensino de um mestre para um discípulo?

A longa existência da Es­cola atesta essa possibilidade (a infinitude da linha), mas o como - os modelos institucio­nalizados -, não pode deixar de ser questionado, criticado, repensado, no círculo (breve) das nossas vidas.

 

A Escola, a Recta e o Circulo

AUTOR Olga Pombo 

EDITOR Relógio d'Agua 315 págs., €16

 

Olga Pombo opombo@fc.ul.pt