Investigações interdisciplinares. Objectivos e dificuldades.

Pierre Delattre

É um lugar comum constatar que o nosso conhecimento do mundo se subdividiu, ao longo do tempo, em sectores cada vez mais numerosos e restritos. Sabemos que este estado de coisas é a consequência da especialização que se tornou necessária devido ao próprio crescimento dos nossos conhecimentos e à diversificação dos meios de investigação. Mas esta especialização, quer esteja ligada aos objectos estudados ou aos instrumentos e métodos utilizados, teve como consequência uma verdadeira segregação das disciplinas. A compartimentalização tornou-se hoje de tal modo acentuada que já não se pode ignorar o perigo que representa. As linguagens especializadas fizeram da ciência uma verdadeira torre de Babel onde cada um, no seu próprio domínio, coloca e examina os seus minúsculos problemas sem se preocupar com o significado que eles possam ter noutros domínios

A necessidade de remediar esta situação tornou-se cada vez mais clara ao longo dos últimos decénios, e isto por diversas razões. Em primeiro lugar, a complexificação crescente dos projectos técnicos e o estudo de questões vastas e difíceis, como as que dizem respeito ao ambiente, realçaram ainda mais a importância dos contactos e dos intercâmbios entre disciplinas diversas. Em segundo lugar, os limites sentidos no interior de algumas disciplinas, e a necessidade correlativa de procurar noutro lugar ideias ou métodos renovados, agiram no mesmo sentido; foi assim que nasceram especialidades mistas tais como a física-química, a biofísica, a bioquímica. Por fim, a preocupação humanista de uma certa unidade do saber, que é o melhor garante contra todos os obscurantismos, voltou a ser realidade, devido a essa dispersão e heterogeneidade dos nossos conhecimentos.

Todas estas preocupações relativas aos intercâmbios desejáveis entre disciplinas deram já lugar a uma terminologia abundante mas nem sempre muito precisa, que corre o risco de produzir algumas confusões. Falou-se de multidisciplinaridade, de pluridisciplinaridade, de interdisciplinaridade, de transdisciplinaridade para tentar dar conta da natureza e da profundidade das interconexões possíveis. Mas esta variedade de termos, no estado actual das coisas, parece supérflua enquanto as múltiplas questões estas interconexões que colocam não tiverem sido aprofundadas. Pela nossa parte, só reteremos aqui uma distinção que consideramos fundamental mantendo apenas os termos de pluridisciplinaridade e interdisciplinaridade.

A pluridisciplinaridade pode ser entendida como uma simples associação de disciplinas que concorrem para uma realização comum, mas sem que cada disciplina tenha que modificar significativamente a sua própria visão das coisas e os seus próprios métodos. A este título, a pluridisciplinaridade existe desde sempre, ainda que a sua importância tenha aumentado nos nossos dias. Toda a realização teórica que põe em prática saberes diversos corresponde de facto a um empreendimento pluridisciplinar. As disciplinas mistas a que nos referímos acima, e que nasceram na sua maioria durante o século XX, pertencem igualmente a esta categoria.

A interdisciplinaridade, pelo contrário, pretende alcançar objectivos mais ambiciosos. O seu fim é elaborar um formalismo suficientemente geral e preciso que permita exprimir numa linguagem única os conceitos, as preocupações, os contributos de um número maior ou menor de disciplinas que, de outro modo, permaneceriam fechadas nas suas linguagens especializadas. É evidente que, na medida em que se conseguir estabelecer uma tal linguagem comum, os intercâmbios que se desejam estarão facilitados. Por outro lado, a compreensão recíproca que daí resultará é um dos factores essenciais de uma melhor integração dos saberes. Por fim, a história das ciências faz-nos recordar que os intercâmbios, quando puderam realizar-se entre domínios distantes de conhecimento, foram sempre a fonte de progressos científicos ou técnicos importantes. Tudo isto mostra que o que está em causa com as investigações interdisciplinares é da maior importância.

Caracteres e enunciados científicos e linguagens especializadas

A finalidade de toda a ciência é chegar a enunciados precisos, desprovidos de ambiguidade, ligados entre si num quadro descritivo ou explicativo coerente e susceptíveis de serem objecto de amplo consenso. Estes objectivos requerem, simultaneamente, a observação conveniente dos factos, a definição de conceitos bem adaptados ao domínio de estudo escolhido e uma elaboração teórica que, a partir destes conceitos, forneça a linguagem da ciência considerada.

Tudo isto significa que os enunciados aos quais se procura chegar deverão poder encadear-se logicamente num quadro racional tão preciso quanto possível. Com efeito, explicar os fenómenos é, em definitivo, explicitar as ligações que existem entre eles, mostrar que quando certos factos se produzem há outros que necessariamente ocorrem. Esta ligação entre os factos é essencial ao progresso científico. Como dizia Henri Poincaré, “uma colecção de factos é tão capaz de constituir uma ciência, como um monte de tijolos de fazer uma casa”. Mas, do mesmo modo que todo o raciocínio lógico parte de premissas, também toda a ciência assenta sobre um certo número de princípios fundamentais que podem ter uma origem puramente racional ou ser obtidos por indução a partir de factos observados. Compreende-se facilmente que uma disciplina parece tanto melhor coordenada e coerente, quanto menor for o número de princípios fundamentais, irredutíveis uns aos outros, que permitam relacionar os fenómenos no seio dessa disciplina.

Se a lógica desempenha um papel tão importante nas ciências, é porque ela constitui o melhor instrumento que o homem forjou para encadear os enunciados, os juízos que formula sobre a realidade, e isso de uma maneira precisa, unívoca e susceptível de consenso geral. A lógica está intimamente associada às condições que despertam em nós o sentimento de evidência que está na base do acordo que podemos conceder aos enunciados que nos são propostos. Não abordaremos aqui o problema da origem deste sentimento de certeza produzido em nós pelos encadeamentos lógicos. Limitar-nos-emos a constatar este facto comum, que cada um pode verificar por si próprio.

Mas a lógica pode aplicar-se a dados e a realidades muito diversas. Pode também ser mais ou menos sofisticada, quer dizer, comportar um maior ou menor número de operações e de regras. Desde a lógica clássica de Aristóteles e dos seus sucessores até à lógica simbólica moderna, a definição dos operadores e das regras às quais estes devem obedecer, foi-se diversificando pouco a pouco, foi-se enriquecendo e precisando. Dependendo das estruturas de base consideradas, é possível pôr em prática uma lógica mais ou menos rica.

Cada disciplina científica, conforme os seus próprios conceitos fundamentais e segundo as operações às quais estes se prestam é assim levada a utilizar uma lógica mais ou menos elaborada. Todos os cambiantes são possíveis, entre o rigor extremo da linguagem matemática mais refinada e as aproximações da linguagem corrente. Aquilo que o matemático tem necessidade de demonstrar, pode revelar-se evidente no quadro de uma lógica menos exigente. Inversamente, não é raro, em certas disciplinas, usarem-se noções que, pela sua imprecisão semântica, podem parecer deficientes aos especialistas das ciências exactas. É assim, por exemplo, no uso, algo metafórico, do conceito de “energia” em psicologia, de “informação” em biologia, ou ainda de “estrutura” nos domínios mais variados.

A cada contexto correspondem conceitos próprios e uma lógica “fraca” ou “forte”. É exactamente isto que se constata na prática: cada disciplina vai constituindo um domínio de conhecimentos relativamente coerente e coordenado mas, infelizmente demasiado fechado sobre si mesmo. Este último aspecto manifesta-se assim que se procuram estabelecer conexões entre disciplinas diferentes. É sempre muito difícil transcrever os conhecimentos de uma disciplina, ou as questões que ela se coloca, no quadro conceptual e no formalismo de outra disciplina. Eis aí o maior obstáculo que as investigações interdisciplinares se esforçam por vencer. Vamos ver em que direcções se podem desenvolver os intercâmbios necessários. Em seguida, examinaremos algumas das dificuldades com que se defrontam as investigações empreendidas nesse sentido.

Noção de sistema e teoria dos sitemas

A noção de sistema é uma das mais gerais que se conhece. Se se definir esta noção como correspondendo a um conjunto qualquer de elementos que interagem entre si ou com o mundo exterior que os envolve, constata-se imediatamente que qualquer disciplina, e qualquer técnica se confrontam com sistemas. Este conceito permite-nos, portanto, dispor de um substrato comum a uma grande variedade de fenómenos, permitindo uma abordagem unificada das diversas disciplinas.188/189

Foi exactamente a partir deste conceito fundamental que se desenvolveram a maior parte das tentativas interdisciplinares durante os decénios que nos procederam. Essas investigações, pela sua própria natureza, apresentam ligações evidentes com aquelas que, ao longo dos séculos, decorreram da preocupação de unificação dos conhecimentos. Assemelham-se a todos os esforços de síntese, cuja utilidade foi reconhecida em todas as épocas como forma de compensar as desagregações provocadas pelos progressos da análise. É certo que a ciência não pode progredir senão por esta combinação de uma análise cada vez mais fina e de uma síntese que permite reencontrar a unidade a partir dos elementos revelados pela análise. Mas é muito raro que se respeite o justo equilíbrio entre estas duas tendências, dado que o homem tem naturalmente tendências para os extremos. A história do pensamento evidencia bem esta oscilação permanente entre as sínteses filosóficas insuficientemente justificadas e as análises fragmentadoras que apenas conduzem a uma poeira de constatações empíricas não relacionadas entre si. Ora, a nossa época está, sem dúvida alguma, nesta segunda situação.

A necessidade de novas sínteses aparece com tanto mais acuidade quanto maiores são as dificuldades com que nos deparamos para reconstituir, a partir das propriedades dos elementos fornecidos pela análise, os comportamentos globais que observamos também de outros pontos de vista. Um exemplo típico, entre centenas de outros, é o da impossiblidade em que estamos, apesar dos numerosos conhecimentos conquistados pela biologia molecular, de explicar a existência das propriedades globais mais gerais, tais como a assimilação e a reprodução, que os organismos vivos mais simples manifestam .

A ideia de construir uma teoria geral dos sistemas que fornecesse um formalismo de base para o estudo de sistemas muito diversos, remonta aos primeiros trabalhos de L. Von Bertalanffy, efectuados por volta de 1925. Acentuando o aspecto “organísmico” dos seres vivos, isto é, o seu carácter de sistema, Bertalanffy chamava precisamente a atenção para a dificuldade maior que apresenta a reconstituição de um todo integrado a partir dos elementos constitutivos estudados separadamente. Outros biólogos, e não dos menores (podemos citar A. Szent-Gyorgyi e P. A. Weiss), reconheceram igualmente, e desde muito cedo, a necessidade de associar às pesquisas analíticas um certo número de considerações mais globais, relativas aos níveis superiores de integração. Noutros domínios em que se abordava igualmente o estudo de sistemas muito complexos, por exemplo em sociologia, apareceram constatações análogas.

Apesar de todos os trabalhos já empreendidos, não podemos contudo dizer que exista hoje uma verdadeira teoria dos sistemas. Encontramo-nos antes em presença de um certo número de formalismos diversos, procurando todos o carácter de universalidade próprio do objectivo que se pretende, mas que diferem entre si pelos conceitos fundamentais e pelos tipos de representação fenomenológica adoptados. Tendo em conta a dificuldade da tarefa, esta diversidade no actual período de ensaios nada tem de supreendente; ela é mesmo muito útil, visto que permite explorar em profundidade métodos de apreensão científica da realidade. O que se procura, em definitivo, é precisamente realçar os caracteres específicos do processo científico no que ele tem de universal, separando progressivamente os aspectos particulares desta ou daquela disciplina especializada. É exactamente mostrando com precisão o que as diferentes disciplinas têm em comum e também, por consequência, aquilo em que elas diferem, que se lançam as bases mais sólidas para intercâmbios frutuosos. Compreende-se no entanto a dificuldade do empreendimento que implicam simultaneamente, a epistemologia, a análise metodológica e as formulações lógicas e matemáticas.

Os principais trabalhos realizados até agora do ponto de vista da teoria dos sistemas dizem respeito ao inventário dos problemas que o tratamento dos sistemas muito complexos colocam, ao estudo de algumas grandes classes de equações que aparecem em numerosos domínios e às análise das propriedades topológicas de diversas categorias de sistemas. Este último ponto é, sem dúvida, um dos mais importantes, já que as propriedades topológicas estão intimamente associadas aos fundamentos das representações que adoptamos para descrever os fenómenos, e estes fundamentos desaparecem tornando-se apenas implícitos quando nos limitamos a examinar as propriedades analíticas das equações utilizadas. A este respeito, obtiveram-se já alguns resultados muito interessantes, desde os trabalhos de G. Kron sobre a representação sob a forma de redes eléctricas das principais equações da física, até aos estudos de G.F. Oster e C.A. Desoer sobre as relações entre as propriedades das redes Kirchhoff e os teoremas fundamentais da termodinâmica dos processos irreversíveis. Foi igualmente por considerações topológicas, mas muito mais elaboradas, que R. Thom estabeleceu a sua teoria geral da morfogénese a qual fornece um formalismo de base aplicável, tanto às morfologias do mundo inanimado, como às dos seres vivos.

É evidentemente impossível citar aqui todos os estudos realizados ao longo dos últimos decénios em matéria de teoria dos sistemas. As obras mencionadas na bibliografia, no fim do presente artigo, permitem fazer uma ideia da variedade e da importância destes trabalhos. O leitor interessado poderá igualmente consultar as publicações periódicas total ou parcialmente consagradas a estas questões, e que se tornam, de ano para ano, mais numerosas: Bulletin of Mathematical Biophysics, General Systems Yearbook, Journal of Theoretical Biology, Biosystems, International Journal of Theoretical Biology, Biosystems, International Journal of Systems Science, International Journal of general Systems, Journal of Mathematical Biology, etc.

Da generalidade à subtileza das descrições

O facto de a teoria dos sistemas se preocupar em primeiro lugar com o pôr em evidência dos pontos comuns a diferentes tipos de sistemas para, em seguida, se fixar apenas no que os diferencia, é uma fonte frequente de incompreensão e mal-entendidos entre experimentadores e teóricos. Parece-nos útil tentar precisar as causas desta situação lamentável mas que, no entanto, é inteiramente explicável já que toda a ciência sólida e bem construída exige a associação estreita da experiência e da teoria.

Partindo de características gerais, aplicáveis a uma enorme variedade de sistemas e mostrando de que modo a adição de dados complementares pode progressivamente dar conta das diferenças observadas entre alguns destes sistemas, a teoria esforça-se, antes de mais, por clarificar a hierarquia das propriedades. Ela procura mostrar como uma propriedade particular pode depender ou não de uma propriedade mais geral. A existência de uma tal hierarquia não é evidentemente um mero ponto de vista, como se pode facilmente deduzir a partir de observações quotidianas. Na verdade, é mais importante, por exemplo, saber o que faz com que uma bactéria se divida, do que saber o que provoca as ligeiras variações morfológicas observáveis entre as bactérias de uma população. Do mesmo modo, não pode conceder-se importância idêntica ao conhecimento dos processos de regulação metabólica no homem e ao facto de se saber porque é que alguns homens são grandes e outros pequenos.

A oposição frequente entre os processos teórico e experimental provém precisamente, em larga medida dos pontos de partida respectivos. Se o primeiro procura mostrar qual é o substrato necessário sobre o qual se podem implantar as propriedades capazes de diferenciar os sistemas, o segundo, pelo contrário, tende sempre a empregar nas suas observações a maior subtileza compatível com os meios técnicos que ele pode utilizar. Ora, o fim de todo o projecto teórico é explicar o maior número possível de factos, ligando-os entre si e mostrando que eles são a consequência de princípios fundamentais tão pouco numerosos quanto possível. Isso não pode alcançar-se senão por um processo de generalização, quer dizer, de abstracção, que suprime a diversidade dos factos. Os princípios fundamentais que procuramos destacar podem ser obtidos, quer por indução directa a partir dos fenómenos observados, quer pela actividade puramente racional do espírito. É aí que se encontra a origem dos mais tenazes mal-entendidos na medida em que, frequentemente o experimentador tem tendência a considerar que as bases de uma teoria resultam directamente das observações negligenciando assim o segundo aspecto, puramente racional de toda a construção teórica. Contudo, os melhores teóricos, Einstein, por exemplo, insistiram muito sobre o papel primordial desse distanciamento em relação aos factos, embora, aparentemente, não tenham sido cabalmente compreendidos.

Esta divergência parece benigna enquanto se trata apenas de teorias parcelares, que permanecem muito próximas do nível experimental. Mas agrava-se à medida que a abstracção se torna maior, o que acontece quando se procura abranger um campo de experiências cada vez mais vasto. Não é de estranhar que as pesquisas interdisciplinares e a teoria dos sistemas, cujo nível de generalidade se situa bem para lá do das pesquisas teóricas correntes, se deparem com este género de dificuldade. É necessário reconhecer que as reticências manifestadas por numerosos especialistas podem estar plenas de bom senso. Se os enunciados muito gerais são ricos pela extensão do seu domínio de aplicação, eles não permitem dar conta dos detalhes muito particularizados que os experimentadores sabem observar. Esta crítica é certamente justificada no estado actual das coisas, dado que as pesquisas interdisciplinares estão ainda pouco avançadas e que com muita frequência, é muito visível a distância entre o nível de explicação teórica no qual elas se colocam e o nível das possíveis observações experimentais.

A situação desfavorável das pesquisas interdisciplinares, do ponto de vista que acaba de ser evocado, não deve, todavia, dar lugar à confusão. O seu interesse essencial reside precisamente no esforço que elas representam para colmatar pouco a pouco este hiato entre a generalidade que sabemos conceber e as particularidades do que podemos observar. Todo o progresso neste sentido não pode senão favorecer os intercâmbios pretendidos como acontece, por exemplo, com a evidenciação de algumas hierarquias de propriedades entre os sistemas simples e os sistemas complexos. Partindo de bases conceptuais bem consolidadas e apresentando uma considerável validade, a teoria dos sistemas pode orientar a experimentação definindo as características mais significativas, para uma melhor compreensão dos fenómenos quer dizer, aquelas sobre as quais devem recair as observações. O “segredo” das experiências cruciais, que proporcionam os progressos mais nítidos devido à ampla validade dos seus resultados, reside apenas na escolha judiciosa de parâmetros significativos. Um dos méritos das investigações interdisciplinares e da teoria dos sistemas é, justamente, tentar oferecer uma orientação para essa via.

Linguagem interdisciplinar e matemática

O facto de buscar uma linguagem precisa e tão universal quanto possível pode conduzir à questão de saber, depois de Leibniz e do seu projecto de uma Mathesis Universalis, se a linguagem interdisciplinar ideal não é muito simplesmente a matemática. Esta ideia é reforçada quando se constata até que ponto, sob a sua forma dita moderna, a matemática se tornou num corpo de conhecimentos unificado e coordenado, apresentando assim os caracteres essenciais de um bom instrumento de síntese. O uso cada vez mais generalizado das matemáticas nas disciplinas mais variadas acentua ainda mais esta convicção. A questão merece consideração já que, sob forma mais frequentemente adoptada, ela é, na realidade, formulada de maneira demasiado imprecisa.

Tendo em consideração os objectivos do empreendimento científico, e na medida em que a matemática constitui efectivamente a linguagem racional mais precisa de que dispomos, é possível afirmar que o propósito último de toda a ciência é exactamente chegar a exprimir-se sob esta forma. Mas, de facto, o que é propriamente matemático apenas constitui uma sintaxe. Para que se possa falar de uma verdadeira linguagem precisamos também de uma semântica. Quando a matemática opera sobre equações, faz abstracção do significado particular das variáveis e dos parâmetros — excepto no que diz respeito à sua inclusão em determinadas grandes categorias (grandezas escalares, vectoriais, tensoriais, operadores diversos, etc.) do mesmo modo que a sintaxe de uma língua só dá conta das categorias às quais pertencem as palavras (substantitvo, verbo, adjectivo, etc.). A semântica da linguagem interdisciplinar situa-se portanto, quer na justificação da conversão em equações, isto é, ao nível da elaboração de um conjunto conceptual coerente e válido para grupos disciplinares tão vastos quanto possível, quer na interpretação final dos resultados obtidos, após o tratamento puramente matemático das equações. O conhecimento da sintaxe de uma língua não é suficiente para exprimir nesta língua coisas inteligíveis ou interessantes. Se negligenciarmos a semântica, arriscamo-nos a desembocar no equívoco lógico, como acontece quando nos entregamos a uma matematização prematura ou abusiva, quer dizer, insuficientemente justificada ao nível epistemológico.

O problema essencial da linguagem interdisciplinar situa-se em definitivo a este nível fundamental. Nele deve ser assegurada a compatibilidade entre o conteúdo dos conceitos utilizados e o tratamento lógico ao qual os submetemos, quer se trate de uma lógica “fraca”, como na linguagem corrente, ou de um lógica “forte”, como na matematização mais ou menos completa do discurso científico. É esta a questão que iremos abordar de seguida.

A semantica dos sistemas e o problema da redução dos conceitos

Os conceitos que utilizamos para descrever as nossas observações constituem a matéria-prima sobre a qual operam os enunciados científicos. Pouco importa que estes conceitos sejam representados por palavras ou por símbolos e que o discurso científico seja ou não formalizado, quer dizer, matematizado.

As operações lógicas, que constituem a parte dedutiva e explicativa de toda a teoria, combinam de diversas maneiras os conceitos fundamentais escolhidos. Mas é evidente que o significado dos enunciados obtidos no termo dos processos lógico-dedutivos se mantém directamente ligado ao conteúdo semântico dos conceitos de base, mesmo que este conteúdo tenha sido perdido de vista durante as operações lógicas, como acontece no encadeamento das operações matemáticas.

A importância dos aspectos semânticos manifesta-se, portanto, simultaneamente, no início e no termo de todo o projecto teórico, isto é, no momento da elaboração dos conceitos e no momento da interpretação dos resultados obtidos por via dedutiva. Uma teoria só é verdadeiramente inteligível na medida em que os conceitos e a lógica que ela utiliza sejam coerentes, o que equivale a dizer que as relações que somos levados a estabelecer entre os conceitos não devem introduzir nenhum resultado incompatível com o seu conteúdo próprio. Citemos alguns exemplos simples para ilustrar este ponto. Se aplicarmos operações de tipo escalar a símbolos que representam, de facto, grandezas vectoriais, não é de estranhar que cheguemos, mais cedo ou mais tarde, a insuficiências ou contradições. Arriscamo-nos também a encontrar dificuldades análogas se, partindo de grandezas que, por definição, não podem, ser negativas, lhes aplicarmos operações que não excluam, de forma sistemática os valores negativos dos termos. É a situações deste género que, na maior parte dos casos, se deve o aparecimento de soluções matemáticas sem significado físico. Outro caso é o do uso de um conceito único para dar conta de fenómenos que, na verdade, relevam de diversas variáveis não relacionadas por uma combinação invariante.

É objectivo primordial da epistemologia investigar as condições necessárias para atingir coerência entre o conteúdo semântico dos conceitos e o tratamento formal ao qual os submetemos. Trata-se então, em geral, de uma operação difícil que exige uma análise precisa dos conceitos, quer dizer, a pesquisa de conceitos mais elementares que, associados em relações adequadas, permitam reconstituir os primeiros.

Esta redução dos conceitos traduz um procedimento totalmente paralelo ao do estudo de um sistema material a níveis de descrição diferentes. Este paralelo não é, de resto, uma simples imagem analógica. Ele resulta, na realidade, de isomorfismos muito mais profundos entre os fenómenos naturais e a nossa maneira de os descrever, pelo menos quando esta descrição é adequada, o que pode verificar-se pela validade mais ou menos ampla das consequências que dela extraímos.

Em todos estes problemas de redução, as entidades consideradas como elementos de um certo nível tornam-se sub-sistemas a um nível de descrição mais fino, e os elementos constitutivos do novo sistema assim obtido são definidos por características que podem ser muito diferentes daquelas que eram utilizadas no primeiro nível. É o que aconteceria, por exemplo, se descrevêssemos micro-organismos ao nível de uma população, depois ao nível de organitos intracelulares, em seguida ao nível molecular, etc. Se o sistema estudado permanece globalmente o mesmo, a passagem de um nível de descrição a um outro traduz-se em definitivo numa transcrição de dados semânticos em dados sintácticos ou, ao contrário, conforme passamos de níveis mais grosseiros para níveis mais finos, ou inversamente. Mas na maior parte dos casos: esta transcrição dos dados está muito longe de ser elucidada, a correspondência entre as propriedades dos elementos constitutivos de um sistema descrito a diferentes níveis não está, em geral, estabelecida. Trata-se, todavia, de um problema de primeira importância na perspectiva interdisciplinar. Com efeito, a divisão em disciplinas resulta, em grande parte, do desmembramento da realidade a níveis de descrição diferentes. Esforçar-se por estabelecer conexões entre as disciplinas é, portanto e, antes de mais, tentar precisar a correspondência entre estes níveis.

As dificuldades que encontramos em todas as operações de redução apresentam-se sob dois aspectos principais. A análise dos objectos materiais, ou dos conceitos, exige uma apreensão dos seus elementos constitutivos que é frequentemente limitada pela insuficiência dos nossos conhecimentos referentes, quer aos fenómenos do mundo físico, quer ao conteúdo dos conceitos que transportam os sedimentos da longa história dos usos que deles se fez. De toda a ciência analítica esta é, aliás, a pesquisa que está mais longe de estar concluída. Mas, mesmo admitindo que tenhamos chegado a uma redução aparentemente satisfatória, esta só se revelará definitivamente correcta se os elementos constitutivos por ela definidos permitirem reconstituir convenientemente elementos dos níveis mais globais, cujas propriedades devem aparecer como uma consequência das propriedades dos elementos dos níveis mais finos. É forçoso reconhecer que estas condições raramente são satisfeitas, como vimos mais acima, a propósito do exemplo da biologia molecular. Em matéria de investigações interdisciplinares esta constatação é certamente de primeira importância pois explica, em larga medida a existência das barreiras que se estabeleceram entre as diversas disciplinas. É portanto útil aprofundar agora este ponto crucial e tentar ver como podem ser abordadas as questões fundamentais que ele levanta.

Reducionismo e globalismo

A hipótese reducionista, que está na base das ciências da natureza, admite que o conhecimento das propriedades dos elementos, obtido num determinado contexto que se admite universal, é suficiente, em princípio, para alcançar por dedução as propriedades dos sistemas, quaisquer que eles sejam, constituídos a partir destes elementos. Como já dissemos, a validade desta hipótese está longe de estar demonstrada de uma maneira geral. Se deu bons resultados nos sistemas relativamente simples que a física clássica estudava, a sua extrapolação para sistemas complexos não está, pelo menos, bem assegurada. No estudo destes sistemas complexos é, com efeito, frequente, deparar com uma aparente irredutibilidade fundamental das propriedades dos elementos a um nível subjacente. Constatamos mesmo, por vezes, uma incidência muito nítida das propriedades globais sobre as propriedades dos elementos constitutivos. Em linguística, por exemplo, as tentativas feitas para deduzir as propriedades das palavras a partir das dos fonemas fracassaram; é fácil mostrar que o significado das palavras depende parcialmente da estrutura sintáctica na qual elas são colocadas. Em sociologia fazem-se constatações análogas quando se procura elucidar os papéis respectivos dos indivíduos supostamente isolados e das estruturas sociais nas quais eles estão inseridos. O comportamento dos grupos humanos em sistemas mais vastos dá lugar a observações semelhantes. Problemas deste tipo estão no centro dos estudos respeitantes às relações entre infraestruturas e superestruturas, o que constitui apenas uma outra maneira de evocar as relações entre semântica e sintaxe, entendidas em sentido lato. Como vimos, detectam-se em biologia questões do mesmo tipo se considerarmos a hierarquia dos níveis de organização molecular, celular, fisiológica, etc. Estas questões encontram-se ainda na física, para quem queira observar bem de perto, como o mostrou, entre outros, P.W. Anderson; embora aí elas sejam geralmente silenciadas, dado que contradizem a hipótese reducionista cuja herança é tanto mais pesada quando estamos a lidar com as ciências ditas exactas.

Este último ponto constitui um dos obstáculos com que a teoria dos sistemas se confronta. Do ponto de vista do rigor, é-lhe necessário inspirar-se nas ciências exactas, mas, por outro lado ela não pode — sob pena de perder a maior parte do seu interesse para as pesquisas interdisciplinares — negligenciar os aspectos característicos dos sistemas complexos. Isso mostra desde já que, para se estabelecer uma teoria dos sistemas complexos e, em particular, uma biologia teórica, não basta extrapolar, sem modificações profundas, os métodos da física, considerada como a mais exacta das ciências da natureza. Deverão ser resistentes algumas concepções fundamentais como as que dizem respeito à hipótese reducionista, ou aquelas que apenas atribuem importância aos aspectos quantitativos dos fenómenos e negligenciam, por não saber tratá-las, as transformações qualitativas. Infelizmente, os trabalhos neste sentido são ainda pouco numerosos ou pouco desenvolvidos, excepção feita aos de R. Thom que, com a sua teoria geral da morfogénese, acentuou precisamente a importância das propriedades globais dos sistemas relativamente às suas propriedades locais.

A necessidade de tomar em consideração a incidência das propriedades globais sobre os comportamentos locais é com muita frequência, mal aceite nos meios científicos tradicionais, pois que parece encerrar uma ideia de transcendência, ou de finalidade, incompatível com as relações de causalidade, tais como as concebemos habitualmente nas explicações científicas. Quando resumimos o problema dizendo que “o todo é mais do que a soma das suas partes”, como é frequente ouvir-se, mais não fazemos do que favorecer a confusão, porque é muito difícil saber a que é que se aplicam as palavras “mais” e “soma”, como bem o mostrou P.A. Weiss. Mas, é possível encarar estes fenómenos de uma maneira relativamente simples, que não introduz nenhuma contradição epistemológica e que situa as verdadeiras dificuldades ao nível das observações experimentais. Podemos, com efeito, compreender que, pelo menos algumas das características que definem um elemento variam aquando da inserção desse elemento num sistema isto não é sequer uma hipótese, posto que numerosos exemplos mostram que assim sucede com frequência. Recordemos, por exemplo, as modificações que sofre a distribuição superficial das cargas eléctricas sobre um condutor electricamente isolado que, progressivamente se introduz num campo eléctrico cada vez mais intenso. Em biologia molecular, as transformações conformacionais das proteínas, quando interagem com outras moléculas, são igualmente bem conhecidas. Estas variações de características dos elementos num sistema constituem, sem dúvida, um fenómeno bem mais corrente do que habitualmente se admite. Esta espécie de indução poderia ainda permitir explicar a incidência das propriedades globais sobre os comportamentos locais, ao dar conta do efeito de inserção nos sistemas. Sem pretender que esta seja a única visão possível, devemos reconhecer que a sua verosimilhança nos inicita a retê-la, pelo menos enquanto hipótese de trabalho. Neste caso, é provável que, muitas vezes, a verdadeira dificuldade resida na elucidação experimental das variações supostas. Com efeito, a determinação das características dos elementos é sempre feita, por definição, a partir de situações experimentais nas quais os elementos estudados estão tão isolados quanto possível, sendo também reduzido ao máximo o acompanhamento com os aparelhos de medida. Quando se inserem os elementos em sistemas mais ou menos complexos, no interior dos quais as interacções são relativamente fortes, pode tornar-se muito difícil elucidar eventuais variações de características que intervêm ao nível dos elementos em particular. Será esse o caso, se as variações elementares se compensarem e não se manifestarem sensivelmente ao nível em que nós sabemos fazer as medições.

A situação que acabámos de evocar está intimamente ligada a um problema teórico fundamental: o das variáveis observáveis e das variáveis escondidas, problema sobre o qual convém dizer algumas palavras, visto que se trata ainda de uma questão sobre a qual os pontos de vista correntes devem ser revistos. O princípio segundo o qual toda a teoria física apenas deve admitir grandezas observáveis tem tido um sucesso crescente ao longo dos últimos cinquenta anos. Pelo contrário, o ponto de vista que admite a utilização teórica de grandezas não directamente mensuráveis, é hoje bastante minoritário. Na medida em que é possível dar conta dos fenómenos, de maneira coerente e inteligível, apenas a partir de grandezas observáveis, é certo que o recurso a variáveis ocultas não é útil nem desejável. Mas a aplicação rígida deste princípio pode, por vezes, conduzir à elaboração de teorias nas quais o rigor epistemológico e, por consequência, a inteligibilidade, ficam seriamente ameaçados, tornando assim ainda mais difíceis as trocas interdisciplinares. Na verdade, se no momento da inserção dos elementos num sistema se produzem variações quantitativas ou qualitativas de caraterísticas, compreende-se facilmente que o facto de negligenciar este aspecto possa conduzir a dificuldades lógicas. Aliás, toda a incoerência conceptual no interior de uma teoria deveria conduzir a suspeitar, em primeiro lugar, da existência de tais fenómenos. É evidente que este é um problema típico da semântica dos sistemas, visto que condiciona o significado dos enunciados teóricos. A sua importância para as pesquisas interdisciplinares é, por outro lado, manifesta, porque seria contrário ao próprio princípio destas pesquisas não tentar reconhecer, sob a variedade das interpretações superficiais, a unidade possível de alguns fenómenos muito gerais.

As dificuldades humanas        

Do ponto de vista humano, as pesquisas interdisciplinares deparam-se com dois tipos de dificuldades: umas são intrínsecas, ligadas à própria natureza da tarefa, e outras extrínsecas, ligadas ao meio no qual se desenvolvem estas actividades. Examinaremos brevemente estes diferentes aspectos.

            É bem claro, em primeiro lugar, que as pesquisas interdisciplinares exigem um espírito de síntese desenvolvido. Não se trata aqui, bem entendido, da atitude primária que se satisfaz com a apreensão indiferenciada das coisas e que recusa todo o trabalho analítico. A síntese necessária é, pelo contrário, aquela que deve seguir-se à análise, a fim de reconstruir, na sua unidade, aquilo que o esforço do conhecimento primeiramente dissecou. Esta síntese não se opõe à análise, e não teria mesmo qualquer sentido na ausência da análise prévia; ela é, no fundo, como diria Bergson, “uma forma mais elevada de análise”.

Os estudos interdisciplinares necessitam também de vastos conhecimentos, em domínios tanto mais variados quanto mais ampla é a síntese pretendida. E os conhecimentos necessários são em geral difíceis de adquirir, visto que se referem menos às particularidades das disciplinas do que aos seus fundamentos essenciais os quais frequentemente, permanecem implícitos, subentendidos e por consequência, não são, directamente acessíveis.

Este último ponto liga-se a um terceiro aspecto das investigações interdisciplinares, a saber, o seu carácter fundamental. Como vimos acima, alguns dos problemas a que estas pesquisas conduzem são verdadeiramente problemas-chave, cuja resolução permitiria um progresso seguro em domínios muito diversos.

Porém, não é pela improvisação ou pela simples boa vontade que estas exigências podem satisfazer-se. O espírito de síntese, como bem o sabem os psicólogos, é mais uma questão de temperamento do que de formação recebida. É o que se passa também com o gosto pelas investigações fundamentais, ao nível dos princípios gerais e dos métodos. Enfim, a extensão dos conhecimentos necessários, que não deve ser a de uma erudição morta em que o indivíduo não é mais do que um receptáculo passivo, exige uma grande curiosidade de espírito e uma adequada capacidade de trabalho.

A estas dificuldades de ordem individual acrescentam-se as que procedem do exterior. No actual estado de coisas, a que regra parece ser o isolamento quotidiano, apenas temperado por contactos episódicos tanto para indivíduos solitários ou como para pequenos grupos vivendo num meio, na maior parte das vezes, pouco compreensivo, e por vezes mesmo hostil. Quanto à oposição dos especialistas em relação às investigações interdisciplinares, ela resulta de considerações por vezes válidas tendo em conta o estado pouco avançado dessas investigações. Mas, muitas vezes, ela é também a expressão de atitudes sumárias e dogmáticas que não têm muito a ver com a ciência e que, infelizmente, são demasiado humanas. É necessário um espírito já muito evoluído para não rejeitar como desprezível o que não se compreende. Os múltiplos aspectos que esta oposição pode tomar foram analisados no artigo “Conhecimento Interdisciplinar”˜, a que o leitor poderá reportar-se.

É evidente que, na situação que se acaba de descrever, é indispensável um certo arrojo para renunciar ao conforto das disciplinas especializadas e tentar progredir sobre os terrenos em aberto da interdisciplinaridade. Ora não se compreende muito bem como é que essa coragem poderia aparecer naqueles que não tem consciência prévia do interesse fundamental destas pesquisas para o progresso geral dos conhecimentos fundamentais e suas aplicações. Mas esta tomada de consciência só é concebível num terreno já preparado, por uma cultura suficiente. Sem um mínimo de “fé” e um sólido fundo intelectual e psicológico, aquele que se empenhe nesta via não pode senão soçobrar rapidamente sob os efeitos conjugados das dificuldades inerentes à tarefa e das tentativas de destruição provenientes do exterior.

Tudo isto explica que numerosas tentativas interdisciplinares tenham falhado ou sofrido mais-fracassos. Porém, todo o fracasso é uma fonte de ensinamentos para quem saiba e queira ver. O interesse destas investigações é tal, a sua necessidade tão evidente no actual estado de esboroamento dos conhecimentos e a sua importância tão clara para tentar sair dos impasses em que se isolam algumas disciplinas especializadas, que as condições do seu desenvolvimento normal acabarão naturalmente por aparecer. Entretanto, importa lutar para que aqueles que a elas se consagram não sejam esmagados pela massa anónima dos especialistas limitados que, de boa fé e demasiadas vezes, tomam a cauda do elefante pelo próprio elefante. Para isso é necessário paciência, pois sabemos que a rotina e a inércia do espírito só podem ser vencidas pelo tempo.

As investigações interdisciplinares inscrevem-se em definitivo na categoria dos trabalhos fundamentais de qualidade que, ao longo dos séculos, tiveram por objectivo fazer progredir os nossos conhecimentos sem perder de vista que o homem, se por um lado quer saber fazer, por outro quer também compreender este mundo, do qual ele é simultaneamente parte integrante e parte interessada, a fim de nele se inserir melhor e se sentir mais à vontade. É daí essencialmente, que provém esta necessidade de uma unidade do saber que constituiu uma das condições primeiras de todo o humanismo verdadeiro. Mas, para prosseguir a tarefa nesta via, é necessário vencer hoje o entusiasmo pela facilidade que decorre do “tecnologismo”, preocupado sobretudo com os saber-fazer parcelares e remetendo para melhores dias a busca da compreensão. Esquecemos muitas vezes que espíritos desmembrados só podem construir uma ciência e uma sociedade igualmente desmembradas.

As investigações interdisciplinares que tentam opor-se a esta tendência, parecem ter-se desenvolvido sobretudo desde há uma dezena de anos nos Estados Unidos, a julgar pelo número de investigadores que se interessam por estas questões e pelo consenso de que desfrutam. Algumas universidades, como a de Wisconsin-Green Bay, lançaram-se resolutamente nesta via. A Society for General Systems Research, filial da American Association for the Advancement of Science (AAAS), é muito activa e desempenha um papel de catalisador para as pessoas e os grupos que trabalham neste domínio. A maior parte das revistas e das obras que versam sobre este tema provêm igualmente dos Estados-Unidos. Na URSS este movimento de ideias parece estar, actualmente, menos dessenvolvido, tanto quanto se sabe. Na Europa, a revista Studium Generale, editada na Alemanha, publica regularmente estudos interdisciplinares. A nova Universidade de Sussex, na Inglaterra, fundada em 1961, adquiriu já uma sólida reputação internacional pelo seu dinamismo e pela eficácia das trocas interdisciplinares que soube produzir. O Instituto Colegial Europeu, dirigido, por G.Gadoffre, organiza todos os anos colóquios sobre temas diversos, das ciências às letras, onde se encontram, com grande proveito, homens vindos de disciplinas diferentes e abertos ao intercâmbios. O Centro para a Pesquisa e Inovação no Ensino (CERI) da OCDE , que não agrupa apenas países europeus, tomou também a iniciativa de seminários sobre a interdisciplinaridade.

Se considerarmos também o que se passa em França, constataremos que muitas universidades novas se interessam activamente por estas questões, mesmo quando permanecem ligadas ao ensino pluridisciplinar mais do que às verdadeiras pesquisas interdisciplinares, o que, aliás, se explica muito bem pela sua criação recente. Os investigadores isolados encontam-se em seminários organizados por iniciativa dos interessados, com ou sem apoio de organismos oficiais. R. Thom, do Instituto dos Altos Estudos Científicos, favorece de maneira muito liberal, e por consequência muito proveitosa, os encontros entre investigadores provenientes de diversos horizontes. E o Collège de France, onde a abertura de espírito é regra, e que por isso sempre figurou, desde há mais de quatro séculos, na ponta do progresso intelectual, não faltou à sua justa reputação. Com efeito, François Perroux e André Lichnerowicz organizam aqui, desde há vários anos, seminários de reflexão muito úteis sobre os problemas de interdisciplinaridade na investigação e no ensino.

Assim, apesar das dificuldades e da amplitude da tarefa, e apesar do meio frequentemente pouco favorável no qual elas se desenvolvem, as investigações interdisciplinares progridem pouco a pouco. Pelo espírito de compreensão mútua que favorecem e pela preocupação que as anima em estabelecer laços entre os nossos diferentes saberes, essas investigações podem ser uma contribução importante não só para o progresso dos conhecimentos, mas também para a renovação do humanismo de que temos tanta necessidade. Para isso basta que elas não sejam asfixiadas pelos que preferem, ou mesmo desejam, por várias razões, a manutenção da segregação dos conhecimentos especializados tornados perfeitamente esotéricos, segregação que não é, além do mais, senão uma forma moderna de obscurantismo. Isto não significa - compreenda-se - voltar a questionar a necessidade das disciplinas especializadas que, evidentemente, são indispensáveis. Basta que, ao lado destas, os esforços para chegar a uma melhor síntese dos conhecimentos tenham também direito de cidadania.

 

 

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Olga Pombo opombo@fc.ul.pt