Introdução

São objectivos do Projecto Mathesis e da sua Antologia, já apresentados aquando da publicação do primeiro volume, “facultar elementos de reflexão que possam contribuir para a compreensão e aprofundamento dos problemas da integração dos saberes, interdisciplinaridade e ensino integrado das ciências”.

   Nesse sentido, se na Antologia I se recolheram sobretudo textos que visavam a elucidação do conceito de interdisciplinaridade e conceitos afins nas suas determinações internas, os textos que constituem este segundo volume apresentam-se, fundamentalmente, como uma tentativa de recapitulação das diferentes áreas que definem os contornos e as articulações externas do problema da interdisciplnaridade.

Os três primeiros, da autoria respectivamente de Félix Guattari, Georges Vaideanu e Julio De Zan, foram escolhidos tendo em conta a capacidade que detêm de se constituirem como interlocutores válidos de uma discussão sobre o âmbito etico-político, as aplicações educativas e o alcance cultural da interdisciplinaridade. Por seu lado, os três últimos textos, de Jurgen Mittelstrass, Gerhard Frey e Pierre Delattre, foram seleccionados sobretudo pela abertura que proporcionam ao enquadramento da interdisciplinaridade na problemática da unidade da ciência e em termos comunicativos e sistemáticos.

 

O primeiro texto é um inédito de Félix Guattari. Trata-se de uma comunicação apresentada no último “Colóquio Internacional sobre a Interdisciplinaridade” promovido pela Unesco em Abril de 1991 e cuja autorização concedida ao Projecto Mathesis para publicação em versão portuguesa aqui gostaríamos de realçar e agradecer. Como o título anuncia, em Fundamentos ético-políticos da interdisciplinaridade opera-se um alargamento máximo do conceito de interdisciplinaridade aí não apenas pensada como cruzamento das disciplinas, mas em larga medida identificada com uma práxis individual e colectiva que se reencontra com os seus comprometimentos, isto é, deslocada “do domínio cognitivo para os domínios sociais, políticos, éticos e mesmo estéticos”. Mais do que um alargamento ecológico da questão da interdisciplinaridade, já por várias vezes estabelecido, estamos perante um texto que nos surpreende pela ambição do seu âmbito e da sua proposta. Segundo Guattari, a nossa situação no mundo de hoje só pode ser pensada — e transformada — a partir de uma perspectiva interdisciplinar mediante a qual nos seja possível fazer “um recuo planetário e problematizar as questões locais a partir de horizontes que ponham em jogo o conjunto da vida e das relações internacionais”.

   Pelo contrário, o segundo texto, A interdisciplinaridade no ensino: esboço de síntese, incide exclusivamente sobre a dimensão educativa da interdisciplinaridade. O autor, George Vaideanu,  especialista em matéria de conteúdos e metodologias de reformas de ensino, faz uma análise serena e ponderada da importância da interdisciplinaridade na resposta aos grandes desafios que estão colocados nos dias de hoje. A solução aqui defendida é mista e flexível. Mista, porque prevê a articulação da interdisciplinaridade com outras tendências pedagógicas pertinentes na nossa actualidade pois que, “se a interdisciplinaridade não constitui, por si só, a única solução para problemas tão complexos (como os da escola), o seu contributo espistemológico e pedagógico não pode e não deve continuar a ser ignorado”. Flexível, na medida em que o autor aponta para três diferentes níveis ou pontos de partida para a implementação de modelos interdisciplinares de ensino: o nível institucional da reorganização e integração dos conteúdos de ensino no quadro de uma reforma educativa; o nível pedagógico correspondente à actividade docente dos professores que, com o objectivo de melhorar a qualidade do seu ensino, têm vindo a desenvolver, até agora de forma espontânea mas que pode ser apoiada e incentivada, diversos tipos de experiências de coordenação e integração disciplinar; finalmente, a nível das realizações não formais da escola, isto é, pelo incentivo às actividades extra-escolares susceptíveis de desempenhar “um papel importante na articulação dos conhecimentos e informações recolhidas pelos alunos na escola e fora dela”.

O terceiro texto, intitulado A ciência moderna e o problema da desintegração da unidade do saber, é uma análise circunstanciada do fenómeno da desintegração do saber e das suas consequências culturais e civilizacionais. Partindo de uma caracterização, largamente inspirada em Ortega e Gasset, dos mecanismos da especialização e da ideologia cientista, o autor analisa as consequências da desintegração do saber, quer para as próprias ciências que assim perdem aquela consciência e capacidade crítica que lhes permite questionar “o domínio indiscutido dos factos”, quer para os seus praticantes, esses “exemplares humanos atípicos e sem par na História” que são os especialistas, quer ainda para a cultura e a civilização em geral, ameaçadas, hoje mais que ontem, por uma delicada e perigosa tendência à “desagregação e formação de clãs (...) incomunicantes e hostis”. Da crítica cerrada ao cientismo, reconhecido como fenómeno hoje “anacrónico, e cada vez mais raro” mas cuja consideração é o indispensável à compreensão das transfor-mações que definem o perfil cultural da ciência contemporânea (no reconhecimento das suas incidências práxicas, na alteração da sua imagem pública, no desenvolvimento da sua auto-consciência crítica, no movimento de desdogmatização que a epistemologia contemporânea estabelece e consagra, etc.) o autor acede à pergunta pelas condições de possibilidade de “um novo espírito científico aberto ao diálogo, consciente da necessidade de buscar novamente a unidade e sentido do saber”. O texto revela-se então na sua intensão instauradora das condições de uma consequente interdisciplinaridade: o reconhecimento da lei da autonomia e pluralismo metodoló-gico que governa o destino do conhecimento do científico e a reabilitação da função da filosofia enquanto “exigência, que surge no seio da ciência contemporânea, de uma interpreta-ção sintética e compreensiva”.

O texto seguinte, A unidade da ciência de Jurgen Mittelstrass e Martin Carrier, partindo também de uma reflexão sobre o fenómeno da “atomização” disciplinar, oferece uma perspectiva alargada do problema da interdisciplinaridade nas suas relações ao tema recorrente da unidade da ciência. Após uma breve referência à questão da classificação das ciências, são discutidas de perto e com algum detalhe as quatro principais figuras a que a ideia da unidade das ciências deu origem: a unidade da linguagem, a unidade das leis, a unidade do método e a unidade prática e operacional da ciência. Se, relativamente aos projectos de unidade da ciência formulados no quadro do empirismo lógico (unidade da linguagem e unidade das leis científicas) os autores adoptam uma posição globalmente crítica, discutindo os seus limites, fundamentos reducionistas e estratégias argumentativas, já no que diz respeito, quer à unidade do método, quer à unidade prática e operacional da ciência, assistimos, pelo contrário, ao esforço de apresentação de argumentos tendentes à sua sustenção. Para Mittelstrass e Carrier, a unidade da ciência poderia assim consistir, não na unidade da sua linguagem e teorias, mas na unidade dos seus processos de produção e progresso do conhecimento, isto é, “na unidade da racionalidade científica ou dos critérios de racionalidade científica” e na unidade de uma forma de investigação não disciplinar mas problemática, caracterizada em larga escala pela confrontação com problemas “cuja solução exige o esforço cooperativo de sub-áreas capazes de se modificar em virtude desse mesmo esforço”.

O quinto texto Problemas metodológicos das discussões interdisciplinares da autoria de Gerhard Frey remete-nos directamente para o nível linguístico-comunicativo do problema da interdisciplinaridade. Fazendo residir a especificidade das linguagens naturais na sua reflexibilidade, fonte de paradoxos e antinomias mas também condição de possibilidade de toda a discussão e portanto de todo o progresso do conhecimento, o autor mostra como é a linguagem natural e às suas inesgotáveis capacidades cognitivas que é necessário recorrer sempre que se procura estabelecer algum acordo entre falantes de uma mesma língua (por convenção de significados, diálogo, inferência lógica ou recurso à experiência).

 

 Porém, no que respeita ao problema das discussões interdisciplinares, a exploração das virtualidades da linguagem natural não é suficiente uma vez que cada disciplina científica desenvolve a sua linguagem própria relativa à esfera de objectos que constitui o seu domínio de estudo e investigação. Essas diferentes linguagens científicas, tendo embora todas elas a sua raíz na linguagem natural - base para enriquecimentos técnicos específicos ou metalinguagem última e radical de todos os formalismos - comportam ainda, segundo Frey, três diferentes níveis, diferentes tipos dentro de cada nível e casos particulares dentro de cada tipo. Por outras palavras, “o problema fundamental de todas as discussões disciplinares consiste no facto de as várias ciências falarem em linguagens diferentes e sobre esferas de objectos diferentes”. Assim sendo, não é possível reduzir o problema das discussões interdisciplinares a um problema de tradução. Só a unificação das diferentes linguagens científicas ou a identificação metafísica dos objectos das diversas ciências poderia, teoricamente, permitir o entendimento interdisciplinar. Face às dificuldades de concretização destes dois programas - ao carácter manifestamente irrealizável do primeiro e às implicações reducionistas do segundo - resta, segundo Frey, a difícil e precária discussão entre as diferentes linguagens das diferentes disciplinas (cujas combinatórias o autor estabelece e analisa) e a esperança de constituição de metalinguagens de segundo nível por uma equipa de “especialistas no campo das discussões interdisciplinares”.

Finalmente, o último texto seleccionado, Investigações interdisciplinares. Objectivos e Dificuldades de Pierre Delattre, estabelece a ponte entre a questão da interdisciplinaridade e a teoria dos sistemas. Partindo da constatação das capacidades sintéticas e metalinguísticas da noção de sistema - aplicável a uma grande variedade de fenómenos e, por isso mesmo, capaz de permitir uma abordagem unificada das diversas disciplinas - Delattre põe em relevo a vocação interdisciplinar dos diversos formalismos engendráveis no quadro da teoria dos sistemas, tanto no que diz respeito à elaboração de um inventário das modalidades possíveis da noção transversal de sistema e ao estabelecimento da hierarquia das suas propriedades comuns, como no que concerna às exigências semânticas que devem presidir ao trabalho de formalização e interpretação dos enunciados teóricos ou ao impacto das características e dinâmica interna dos sistemas sobre a investigação nas diferentes disciplinas (relação não aditiva entre o todo e as partes, articulação quantitativo/qualitativo, local/global/, observável/oculto, etc.). De assinalar ainda o facto de, partindo de uma colocação abstracta do problema da interdisciplinaridade em termos de teoria dos sistemas, Pierre Delattre dela extrair considerações de natureza ético-política: se a interdisciplinaridade exige dos seus praticantes espírito de síntese, apetite enciclopédico, radicalidade, curiosidade universal, anti-dogmatismo, “arrojo para renunciar ao conforto das disciplinas especializadas”, exigências estas que correspondem às dificuldades intrínsecas da própria tarefa e que, em conjugação com os obstáculos externos, permitem explicar os fracassos com que as investigações interdiscipli-nares se têm deparado, é também verdade que tais qualidades definem o perfil de um novo espírito científico capaz de reconhecer na unidade do saber “o melhor garante contra todos os obscurantismos” e “uma das condições primeiras de todo o humanismo verdadeiro”".

Olga Pombo opombo@fc.ul.pt