Matemática na Alice?

 

Alice no País das Maravilhas tornou-se um dos mais famosos romances para miúdos e graúdos. A sua aceitação pela opinião pública da época foi imensa. Seguiu-se o livro Alice do Outro Lado do Espelho, a continuação das aventuras da pequena Alice. E também ele foi um grande sucesso! Lewis Carroll estava consagrado como escritor continuando, com este livro, a fazer as delícias dos mais pequenos e não só! Como explicar este sucesso?

 

ò Porque Lewis Carroll coloca as aventuras vividas pela pequena Alice num mundo imaginário onde o nonsense e o absurdo tornam tudo possível.

ò Porque Lewis Carroll tem uma  maneira peculiar de penetrar de penetrar no mundo da imaginação, de compreender o seu funcionamento, os seus segredos, as suas potencialidades, os seus abismos.

ò Não será igualmente legítmo admitir que o sucesso de Alice se deve também ao papel que a matemática aí desempenha, aos jogos lógicos, às charadas sem resposta aos jogos de linguagem que constantemente irrompem nas aventuras descritas.

Seguem-se alguns exemplos de situações ou excertos onde, de uma maneira mais ou menos evidente, podemos encontrar a matemática, muitas das vezes sob a forma de lógica.

Para uma melhor localização das passagens escolhidas nos respectivos livros, cada uma tem como título o nome do capítulo onde está inserida.

 

Alice no País das Maravilhas

 

 

Certo dia, Alice adormece e sonha que entrou num outro país, o País das Maravilhas, onde tudo é muito estranho, incluindo os próprios habitantes. Ao longo da aventura, Alice encontra um Coelho Branco sempre atrasado, um Chapeleiro que toma um chá interminável com a Lebre de Março, ouve os conselhos de uma Lagarta Azul e conhece o Rei e a Rainha de Copas com o seu exército de cartas...

 

Conselhos de uma Lagarta

A Lagarta Azul

Após conversar com a Lagarta Azul, Alice come um pedaço de cogumelo que faz com que o seu pescoço cresça demasiado. Uma Pomba que ia a passar no céu assusta-se e grita: 

- Uma serpente.

Desenrola-se então o seguinte diálogo:

- Eu...Eu sou uma menina! Disse Alice, não muito segura, ao lembrar-se do número de mudanças que sofrera, só naquele dia.

- Uma bela história, na verdade! Respondeu a Pomba com profundo desprezo. 

- Tenho visto muitas meninas na minha vida, mas nunca vi nenhuma assim! Não, não! Tu és uma serpente, e não vale a pena negá-lo. Creio que me vais dizer a seguir que nunca provaste um ovo!

- Claro que já comi muitos ovos! Respondeu Alice, que dizia sempre a verdade.

- Mas as meninas comem ovos, tal como as serpentes, percebes? Continuou Alice.

- Não acredito! Respondeu a Pomba. 

- Mas se assim é, nesse caso elas são uma espécie de serpentes, é tudo o que posso dizer.

 

 

Alice com o pescoço comprido

 

Do ponto de vista formal, a Pomba tinha razão:

As serpentes (s) têm pescoço comprido; Alice (a) também tinha o pescoço comprido, portanto era uma serpente (s).

No entanto, Alice (a) é uma rapariga (r), mas as raparigas (r) comem ovos, tal como as serpentes (s), portanto por subordinação, Alice não é uma serpente (s>r>a).

Neste pequeno episódio podemos ver como o professor de lógica Lewis Carroll contaminou, com questões lógicas, a literatura infantil que escreveu.

 

O Porco e a Pimenta

Na casa da Duquesa

O Criado-Peixe começou por tirar debaixo do braço uma grande carta, quase do seu tamanho, que estendeu ao outro num tom solene:

- É para a Duquesa. Um convite da Rainha para jogar croquet.

No mesmo tom solene, e trocando apenas a ordem das palavras, o Criado-Rã disse:

- Da Rainha. Um convite para a Duquesa jogar croquet.

 

 

O Criado-Peixe e o Criado-Rã

 

Este diálogo recria as situações de jogos de palavras que Lewis tanto apreciava.

 

O Lanche Maluco

 

Ao ouvir isto, o Chapeleiro abriu muito os olhos, mas tudo o que disse foi:

- Em que se parece um corvo com uma secretária?

"Finalmente vamos divertir-nos!", pensou Alice. "Ainda bem que eles começaram a dizer adivinhas."

- Acho que sei essa! Acrescentou em voz alta.

- Queres dizer que sabes qual é a resposta? Perguntou a Lebre de Março.

- Exactamente isso! Disse Alice.   (...)   

- Já sabes a resposta da adivinha? Perguntou o Chapeleiro voltando-se de novo para Alice.

- Não. Desisto - respondeu Alice - Qual é a resposta?

- Não faço a menor ideia! Disse o Chapeleiro.

- Nem eu! Acrescentou a Lebre de Março.

 

 

Embora não tenha apresentado a resposta no livro, Lewis Carroll deu a seguinte solução, que pode ser encontrada em http://www.varatek.com/scott/carrol_riddles.html:

P.: Em que se parece um corvo (raven) com uma secretária?

R.: Ambos podem produzir algumas notas. Numa secretária podemos produzir (escrever) algumas notas. O corvo, enquanto ave, também pode produzir (palrar) algumas notas. Na secretária nunca se escreve de trás para a frente e no corvo a palavra nunca (nevar) escreve-se de trás para a frente (raven).

 

Ainda durante o Lanche....

 

A Lebre de Março pegou no relógio e olhou-o com um ar tristonho. Depois, mergulhou-o na chávena cheia de chá e voltou a olhar para ele. Mas não sabia dizer mais nada senão repetir:

- Era manteiga da melhor qualidade.

Alice estivera a observar o relógio por cima do seu ombro, com alguma curiosidade.

- Que relógio tão engraçado! Indica o dia do mês mas não indica as horas! Comentou.

- Porque haveria de o fazer? Disse o Chapeleiro entre dentes. 

- O teu relógio indica o ano em que estamos? Perguntou o Chapeleiro.

- Claro que não. Respondeu Alice muito depressa.

- Mas isso é porque um ano inteiro dura muito tempo. Justificou Alice.

- O que é exactamente o caso do meu! Disse o Chapeleiro.

Carroll baseou esta passagem de Alice no País das Maravilhas, na sua charada dos Relógios Loucos de Carroll.

    Assinala-se que esta situação deu origem a um problema que pode ser encontrado num site matemático onde, todos os meses, se propõem 6 problemas para os cibernautas resolverem (http://www.nrich.maths.org.uk/mathsf/journalf/oct97/stage3.html):  

Considere que o relógio do Chapeleiro funciona e os ponteiros possuem todos o mesmo tamanho. Coloque-o agora em frente a um espelho e descubra a que horas, entre as 6 e as 7, o relógio e a sua imagem espelhada dão exactamente a mesma hora.               

Solução: Quando o relógio marcar, aproximadamente: 6 horas, 28 minutos.

Ás 6 horas, o ponteiro dos minutos e o das horas formam exactamente um ângulo de 180º. Se movermos o ponteiro das horas x graus, então, no tempo reflectido no espelho, o ponteiro dos minutos move-se (180-x)graus.

O ponteiro das horas move-se 30º por hora e o dos minutos move-se 360º por hora. Então o tempo do relógio é exactamente igual ao reflectido no espelho, quando os dois ponteiros se moverem de modo idêntico, i.é., quando (180-x) /360= x/30, ou seja, quando x=180/13.

Assim sendo, este ângulo representa 180/13 x 1/360 x 60 minutos no mostrador do relógio. Reduzindo dá cerca de 2 4/13 minutos (aproximadamente 2 minutos e 26 segundos). As horas marcadas em simultâneo no relógio e no espelho são: 6 horas, 30-(2 4/13)minutos, i.é, 6 horas, 27 9/13 minutos, que é equivalente a termos exactamente: 6 horas, 27 minutos e 42 segundos. 

 

 

Campo de Croquet Da Rainha

 Os Guardas da Rainha

Junto da entrada do jardim havia uma enorme roseira. As suas rosas eram brancas, mas os 3 jardineiros estavam a pintá-las de vermelho, muito atarefados. Alice achou isto estranho e aproximou-se deles para os ver melhor. (...)

- Podem-me dizer porque estão a pintar essas rosas? Perguntou Alice um pouco intimidada.

O Cinco e o Sete não responderam, mas olharam para o Dois. Este começou a explicar em voz baixa:

- Sabe menina, aqui devia estar uma roseira encarnada, mas nós enganámo-nos e plantámos uma branca. Se a Rainha descobre corta-nos a cabeça, percebe? Por isso, estamos a fazer o melhor que podemos, antes que ela venha para... 

(...) À frente vinham dez soldados que representavam o naipe de paus. Tal como os jardineiros, tinham o feitio de cartas de jogar, eram oblongos e chatos e tinham a cabeça e os pés junto dos ângulos. Seguiam-se  dez cortesãos, enfeitados com o símbolo de ouros, que caminhavam dois a dois.

 

Lewis Carroll introduz aqui um dos seus passatempos favoritos, os jogos de cartas, aqui representados pelos guardas da Rainha e por ela própria. Neste excerto, é inegável a estreita relação que Lewis mantinha com a matemática; a sua descrição dos jardineiros é feita com base nas noções geométricas de ângulos, oblongos, chatos (planos) ...

 

 A História da Falsa Tartaruga 

 O Grifo e a Falsa Tartaruga

A Falsa Tartaruga prosseguiu: 

- Fomos educados da melhor maneira... De facto, íamos à escola todos os dias...

- Eu também vou à escola todos os dias. Disse Alice.

- Não é preciso envaideceres-te tanto com isso. Continuou ela.

- E tinhas disciplinas suplementares? Perguntou a Falsa Tartaruga ansiosamente.

- Tinha. Aprendíamos Francês e Música. Respondeu Alice, indignada.

-Ah! Então a tua escola não era lá muito boa!- disse a Falsa Tartaruga, muito aliviada.

(...) - Segui apenas o curso normal. Prosseguiu a Falsa Tartaruga.

- Em que consistia? Inquiriu Alice.

- Reler e Escrevinhar, é claro, para começar, e depois os diferentes ramos da Aritmética: Ambição, Distracção, Desfeamento e Escárnio. Respondeu a Falsa Tartaruga.

- Nunca ouvi falar de Desfeamento! Atreveu-se Alice.  

 

 

Apesar de ironizar com a Aritmética, Lewis Carroll mostra-nos quão importante é saber matemática. Até no fundo do mar ela faz parte de um curso que a Falsa Tartaruga e o Grifo frequentaram. 

 

 

Alice do Outro Lado do Espelho

 

Num dia de Inverno, aborrecida por estar a chover e ter de ficar em casa, Alice adormece. Desta vez, atravessa o espelho e encontra um mundo diferente: O Outro Lado do Espelho. Neste novo mundo de fantasia, Alice conhece novos amigos e companheiros de aventuras: fala com ovos, com as peças de Xadrez, com os animais e conhece os gémeos Tweedledee e Tweedledum. Uma aventura que não termina sem que Alice seja coroada Rainha. 

 

A Casa do Espelho

O Tabuleiro de Xadrez

Durante alguns minutos Alice ficou a olhar para o campo sem dizer uma palavra, e era um campo bem estranho, lá isso era. Havia uma série de pequenos regatos que o atravessavam de um lado ao outro; e o terreno que ficava entre eles estava dividido em quadrados por uma série de pequenas sebes verdes, que iam de um regato ao outro.

- Olha, tem exactamente o traçado de um grande tabuleiro de xadrez! Disse Alice.

- Devia haver umas peças a andarem por aí, num lado qualquer... e é que há mesmo! Acrescentou, toda encantada; e, com a excitação, o coração começou a bater-lhe com mais força à medida que falava:

- É um grande jogo de xadrez que está a ser jogado... em todo o mundo... se isto se pode chamar de mundo, não é?....   

 

Para além dos já habituais jogos de linguagem carrollianos, podemos encontrar aqui outros elementos matemáticos, tais como: a reflexão do espelho, o jogo de xadrez, as suas regras. 

Se traçarmos uma recta vertical no tabuleiro de xadrez (a unir os dois jogadores), dividindo-o em duas partes iguais, teremos uma relação de simetria entre as figuras, como se estivessem reflectidas num espelho. A duplicidade das peças brancas ou das peças vermelhas, excepto o Rei e a Rainha, é a mesma que ordena as acções de Tweedledee e Tweedledum e a imagem espelhada do poema JABBERWOCKY. 

 

Humpty Dumpty

 

- Quantos dias tem um ano?

- Trezentos e sessenta e cinco. Disse Alice.

- E quantos dias de anos de vida tens tu?

- E, se tirares um de trezentos e sessenta e cinco quantos ficam?

- Trezentos e sessenta e quatro, claro.

Humpty Dumpty parecia duvidar.

- Gostava de ver essa conta feita num papel. Disse ele.

Alice não pode deixar de sorrir. Quando tirou a sua agenda do bolso e fez lhe a conta:

365

  -1

364

Humpty Dumpty pegou na agenda e pôs-se a olhar com toda a atenção.

- Parece estar certa... Começou ele.

Estás a ver de pernas para o ar! Interrompeu Alice.

(...)Como ia dizendo, parece estar certa, apesar de eu não ter agora tempo para conferir, e isto prova que há trezentos e sessenta e quatro dias em que podes receber presentes por não fazer anos...

 

Humpty Dumpty pode perceber muito de semântica, como nos mostram outros excertos deste livro. Mas representa todos aqueles que têm dificuldades em matemática, nomeadamente no cálculo e na abstracção. Só consegue verificar as contas quando as vê no papel e, mesmo assim, ainda duvida.  

 

O Leão e o Unicórnio

O Rei Branco

- Mandei-os vir a todos! Exclamou o Rei, encantado por ver Alice.

- Minha querida, encontraste, por acaso, alguns soldados quando atravessaste o bosque? (...)

- Quatro mil duzentos e sete, é o número exacto. Disse o Rei, consultando o livro de notas.

- Eu não pude mandar os cavalos todos, sabes, porque dois deles são precisos para o jogo. E também não mandei os dois mensageiros. Foram ambos à cidade. Olha para a estrada e diz-me se vês algum deles.

- Não vejo ninguém na estrada! Disse Alice.

- Quem me dera ter uns olhos como os teus. Observou o Rei, num tom de mau humor

- Consegues ver ninguém! E ainda por cima a uma distância destas! Olha que já é bom eu conseguir ver alguém com esta luz!

 

Lewis Carroll mostra, neste pequeno excerto, a destreza de cálculo do Rei, que consegue saber exactamente o número de soldados que tem. Trata-se de uma personagem muito organizada que controla as suas tropas, mas também alguém que, apesar do mau humor, consegue brincar e jogar com as palavras, tal como Lewis fazia na vida real.  

 

A Rainha Alice

Dirigiu-se à Rainha Preta que respondeu um pouco despropositadamente!

- Quanto a peixes...Disse ela, muito devagar e toda solene, aproximando a boca do ouvido de Alice:

- Sua Majestade a Rainha Branca sabe uma adivinha linda... toda em verso...sobre peixes. Quer que ela a diga?

(...) A Rainha Branca riu-se, encantada, e fez uma festa na cara de Alice. E em seguida começou:

" Primeiro pesca o peixe.

Isso é bem fácil: até um bebé o consegue, creio eu.

Depois compra-o peixe.

Isso é bem fácil: um tostão chega, creio eu.

 

Agora, cozinha esse peixe!

Isso é bem fácil: não leva mais de um minuto.

Deixa-o ficar no prato!

Isso é bem fácil, porque ele já lá está...

 

Trá-lo para aqui! Quero jantar!

É bem fácil por o prato na mesa.

Tira-lhe a tampa que o cobre!

Ah, isso é tão difícil que receio não ser capaz...

 

Porque se agarra a ele como cola...

A tampa está colada ao prato e o peixe está lá dentro!

Qual das duas é mais fácil?

Descobrir o peixe ou a adivinha?

 

 

No livro não se encontra a resposta a esta adivinha. A Rainha Branca nunca a deu! Mas, a resposta pode ser encontrada em: The Annotated Alice, de Martin Gardner.

O peixe é uma ostra.

- Um bebé pode apanhar uma ostra

- Um tostão na época em que Carroll vivia dava para comprar uma ostra

- É um peixe que se cozinha depressa

- Encontra-se no seu próprio prato (a concha) e por isso é fácil pô-lo na mesa

- a tampa (a concha de cima) é difícil de se retirar porque está presa à ostra que se encontra lá dentro.

Quer isto dizer que, através da lógica, conseguimos reunir todas as pistas para chegarmos à solução final. Uma adivinha típica de Carroll!

 

 

 

Se ainda subsistem dúvidas acerca da existência de elementos matemáticos em Alice no País das Maravilhas e Alice do Outro Lado do Espelho, nada como, após ler esta página que lhe mostra alguns exemplos disso mesmo, ler ou mesmo reler as duas obras, agora com o espírito matemático desperto!

Aqui está um site onde se pode ler a versão original de Alice no País das Maravilhas, escrita por Lewis Carroll: 

http://www.cs.cmu.edu/People/rgs/alice-ftitle.html

 

Olga Pombo opombo@fc.ul.pt