O Sistema Decimal de Posição

 

As obras de Al-Khwārizmī (750?-850), em particular os seus tratados sobre aritmética e álgebra exerceram uma influência preponderante no desenvolvimento das matemáticas. Foram estudadas ao longo de várias gerações e muitos dos trabalhos que se lhes seguiram tiveram-nas por base. Al-Khwārizmī conseguiu reunir tudo o que era de mais importante para os homens da ciência e para todos aqueles que necessitavam de utilizar a matemática, tendo em conta as necessidades da vida quotidiana.

Um dos trabalhos mais importantes de Al-Khwārizmī, referente ao desenvolvimento do sistema decimal de posição é o Kitab al-jam’wal tafrīq bi hisāb al-Hind – O Livro da Adição e Subtracção segundo o sistema Indiano [1]. Neste trabalho, Al-Khwārizmī introduz nove caracteres para designar os primeiros nove números e, segundo as versões latinas, um círculo para designar o zero. Depois de ter explicado em detalhe o sistema decimal de posição, explica como se devem ler os adjectivos numerais no caso dos grandes números utilizando os conceitos de unidade, dezena, centena e milhar que definiu. A título de exemplo, o número 1 180 703 051 492 863 era lido da seguinte forma: “um milhar de milhar de milhar de milhar de milhar (cinco vezes) e uma centena de milhar de milhar de milhar de milhar (quatro vezes) e oitenta milhares de milhar de milhar de milhar (quatro vezes) e sete centenas de milhar de milhar de milhar (três vezes) e três milhares de milhar de milhar (três vezes) e cinquenta e um milhar de milhar (duas vezes) e quatro centenas de milhar e noventa e dois milhares e oito centenas e sessenta e três” [2]. Esta forma detalhada de designar os números manteve-se durante muito tempo nas obras árabes e europeias.

Al-Khwārizmī descreve ainda os algoritmos da adição, subtracção, multiplicação, divisão, determinação da metade, do dobro e de raízes quadradas, dando exemplos da sua utilização.

Eis um exemplo do algoritmo da divisão acompanhado do nosso algoritmo actual para facilitar a compreensão do mesmo.

 

 

 

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Refira-se ainda que os cálculos efectuados recorrendo a estes algoritmos eram feitos sobre uma superfície coberta de areia, o que implicava que os cálculos intermédios fossem sendo sucessivamente apagados e que Al-Khwārizmī utilizava a “prova dos nove” para verificar as operações de duplicação e multiplicação.

Apesar dos progressos que Al-Khwārizmī trouxe ao sistema de numeração decimal, ficou ainda por resolver a questão da representação das fracções que continuavam a ser representadas segundo o modo egípcio, por somas de fracções de numerador unitário.

O termo fracção (fractiones em latim), corresponde à tradução do árabe kasr que vem de kasara: partir, quebrar. A expressão portuguesa números quebrados, para designar fracções tem provavelmente esta origem. Uma característica da língua árabe é a existência de nomes particulares para cada uma das fracções com numerador unitário (até um décimo):

1/2 – nisf ; 1/3 – tult ; 1/4 – rub’ ; 1/5 – hums ; 1/6 – suds ; 1/7 – sub’ ; 1/8 – tumn ; 1/9 – tus’ e 1/10 – ‘ušr.

Em 952, Abu l-Hasan al-Uqlīdīsī escreveu um tratado, Kitāb al-fusūl fi-l-hisāb al-hindī (O Livro dos capítulos em Aritmética Hindu) , que introduz duas importantes inovações: a execução dos cálculos em papel, o que permitia guardar o registo das operações que iam sendo efectuadas, e as fracções decimais. Quer isto dizer que al-Uqlīdīsī (o sobrenome al-Uqlīdīsī significa provavelmente que era um especialista de Euclides) escrevia as fracções decimais de uma maneira semelhante à nossa, separando a parte inteira do número por um traço, da mesma forma que actualmente se utiliza a vírgula (ou o ponto). No entanto, muito embora al-Uqlīdīsī tivesse usado fracções decimais, apenas tratou de divisões por dois e por dez. Quem tratou detalhadamente os outros tipos de fracções foi Abu-l-Wafā Muhammad ibn Muhammad al-Buzgānī (940-997) na obra Kitāb fī mā yahtāğu flayh al-kuttāb min’ilm al-hisāb (Livro sobre aritmética necessário aos escribas e mercadores), escrita entre 961 e 976. Obra que reúne os conhecimentos de cálculo da altura e que é essencialmente dirigida para a prática, razão pela qual não contém demonstrações mas apenas definições, regras e exemplos.

Só passados 150 anos, o objectivo da representação decimal de fracções, entendidas no contexto de aproximação, é finalmente atingido por al-Samaw’al ibn Yahyā ibn Yahūda al-Maghribī (1125-1174) no seu Tratado de Aritmética .

 



[1] Não é conhecido o manuscrito árabe deste trabalho, apenas se conhecem várias versões de traduções latinas feitas na Europa, no século XII.

[2] Cit in Youschkevitch – Les Mathématiques Arabes, Vrin, Paris, 1976.