A Álgebra

 

A álgebra é certamente uma das contribuições mais importantes das matemáticas árabes. Uma das mais antigas obras sobre álgebra foi escrita por Al-Khwārizmī (780-850) em 825, Al-Kitāb al-muhtasar fī hisāb al-ğabr wa-l-muqābala (Obra Breve sobre a álgebra e almucabala), da qual apresentamos uma página da obra original e outra da respectiva tradução inglesa, em fac-símile.

 

         

Esta obra de que apresentamos a tradução de alguns capítulos é composta por três partes [1]     

*      Uma parte algébrica que precede um breve capítulo sobre os contratos comerciais efectuados com a ajuda da regra de três simples, tal como os indianos a utilizavam.

*      Uma parte de geometria bastante sucinta sobre as medidas e a utilização da álgebra.

*      Uma parte extensa tratando de questões testamentárias.

          O objectivo principal desta obra era o de se constituir como um manual que servisse para a resolução dos problemas da vida quotidiana, razão pela qual trata longamente de problemas relativos a testamentos e heranças. Na verdade, o direito de sucessão muçulmano estava submetido a regras estritas e complicadas, limitando os direitos do doador, pelo que os juristas se confrontavam constantemente com problemas complexos, formulados de maneira ainda mais complexa nos manuais práticos. A título de curiosidade pode consultar-se um problema apresentado nesta obra.

 Na introdução, Al-Khwārizmī explica as razões que o levaram a escrever a obra:

          “Aquele gosto pela ciência, com que Deus distinguiu o Imam al-Ma’mūn, o Soberano da Fé,... aquela afabilidade e condescendência que ele revela para com os estudiosos, aquela prontidão com que os protege e suporta, elucidando-os das obscuridades e removendo as dificuldades, encorajou-me a compor este pequeno trabalho sobre cálculo por al-ğabr e al-muqābala, reduzindo-o áquilo que é o mais fácil e mais útil em aritmética, tal como é constantemente necessário a todos os homens em casos de heranças, legados, partilhas, processos judiciais, trocas comerciais, ou em todos os negócios entre uns e outros, ou onde a medida de terrenos, o escavar de canais, os cálculos geométricos, e outros objectos de várias ordens são considerados.” [2]

          Segundo Al-Khwārizmī, enquanto que a aritmética trata dos números ordinários, a álgebra ocupa-se de três tipos de números:

*      Os números simples, ou dirham (dirham, o dracma grego – unidade monetária)

*      A ğizr (raíz) ou šay’ (coisa), ou seja, o desconhecido, o nosso x

*      O māl (bem, montante de uma soma, quadrado), é o produto da ğizr por si própria.

          A origem dos termos algébricos utilizados pode levar-nos a entender um pouco melhor a natureza dos seres matemáticos. Muitas são as hipóteses avançadas acerca da interpretação dos referidos termos. “Na parte consagrada às heranças e testamentos, māl significa bem e serve de grandeza desconhecida nos problemas onde intervêm equações lineares. Mais tarde, māl adquiriu manifestamente o sentido de quadrado por oposição à raíz, ğizr. A palavra šay’ foi, muito provavelmente, escolhida pelo seu sentido (coisa), para designar a grandeza, a coisa procurada. A palavra ğizr é muito provavelmente a tradução do sânscrito mula que significa raiz de uma árvore ou de uma planta, mas também o fundamento, elemento, origem, etc.. Talvez também exista uma ligação com a palavra dirham e o termo correspondente em  sânscrito rupa, que designa, entre outros, uma unidade monetária. Em qualquer caso o sentido destes termos matemáticos é claro e podemos aqui simplesmente traduzir ğizr por desconhecido ou raíz e māl por quadrado.” [3]  

          Dado que os árabes não trabalhavam com números negativos, os coeficientes, bem como as raízes das equações, tinham de ser positivos. Al-Khwārizmī começou por dividir as equações do segundo grau em seis tipos diferentes e é na resolução de cada uma destas equações que intervêem os processos de ğabr e muqābala que constam do título da obra. Para ser possível resolver qualquer equação, será necessário reduzi-la a um dos seis tipos enunciados. Assim, se um termo for negativo, utilizar-se-á o ğabr, que consiste em somar aos dois membros da equação duas quantidades iguais e de sinal contrário àquela que está afectada pelo sinal negativo. Reduzem-se em seguida os termos semelhantes (aquilo que se designa por muqābala), bem como o coeficiente do termo do segundo grau que deve ser igual à unidade. Veja-se o seguinte exemplo (com a actual notação):

 

2x2+40-12x=22

<=>

(al-ğabr)

2x2+40=22+12x

2x2+40=22+12x

<=>

(al-muqābala)

2x2+18=12x

2x2+18=12x

<=>

(al-muqābala)

x2+9=6x

 

As seis formas canónicas das equações do segundo grau são as seguintes: 

 

1.   Quadrados igual a raízes

ax2 = bx

2.   Quadrados igual a números

ax2 = c

3.   Raízes igual a números

bx = c

4.   Quadrados e raízes igual a números

ax2 + bx = c

5.   Quadrados e números igual a raízes

ax2 + c = bx

6.   Raízes e números igual a quadrados

bx + c = ax2

         

          É muito curioso notar que o que efectivamente Al-Khwārizmī  procura é o quadrado da raiz. Por exemplo quando refere “a terça parte de um quadrado igual a quatro raízes”, diz que a raiz é doze e 144 designa o seu quadrado.

          Pouco depois de Al-Khwārizmī, outro matemático, Abū Kāmil Šuga ibn Aslam ibn Muhammad al-Hāsib al-Misrī (850 – 930), redige o tratado Kitāb al-ğabr wa-l-muqābala (Livro sobre al-ğabr wa-l-muqābala), obra que, não incluindo nem a parte geométrica, nem os problemas sobre heranças, trabalha as equações do segundo grau de uma forma semelhante ao seu antecessor.

          No início do séc. XI, al-Karağī na obra Kitab al-Kāfī fi-l-hisāb (Livro suficente sobre a Ciência Aritmética), retoma os seis tipos fundamentais das equações do segundo grau. Apresentando grandes vantagens do ponto de vista da metodologia, al-Karağī explica sistematicamente as operações fundamentais, cita as identidades mais importantes, indica como obter a soma de uma série geométrica e expõe o método de resolução das seis formas canónicas de Al-Khwārizmī.

          Na segunda metade do séc. XI, Abu-l-Fath 'Umar ibn Ibrāhim al-Khayyām (1048-1131), escreve um importante tratado matemático Risāla fi-l-barāhīn ‘ala masā’il al-ğabr wa’l-muqābala (Tratado sobre as demonstrações de problemas de al-ğabr e al-mucabala (1074) ), essencialmente direccionado para as equações do terceiro grau. Como o autor sublinha no prefácio, para trabalhar com as equações de terceiro grau, o leitor deve estar completamente familiarizado não só com os Elementos e os Dados de Euclides,  como também com os dois primeiros livros das Cónicas de Apolónio, dado que estas equações só podem ser resolvidas geometricamente, usando as propriedades das secções cónicas. Apesar disto, o texto trata não de problemas geométricos mas de problemas algébricos. O que al-Khayyām procura é a determinação de algoritmos algébricos para resolver equações cúbicas, análogos aos de al-Khwārizmi, para a resolução das equações do 2º grau.

          Na verdade, Al-Khayyām segue no seu tratado o estilo de Al-Khwārizmī, começando por dar uma classificação completa das equações até ao 3º grau. Dado que para al-Khayyām, bem como para os seus antecessores, todos os números eram positivos, teve de agrupar separadamente as diversas formas que pudessem ter raízes positivas. Entre estas, existem catorze que não são redutíveis a equações lineares ou do segundo grau. Estas dividem-se em três grupos:

 

Uma equação binomial

x3 = d

Seis equações trinomiais

 

x3 + cx = d

x3 + d = cx

x3 = cx + d

x3 + bx2 = d

x3 + d = bx2

x3 = bx2 + d

 

Sete equações quadrinomiais

x3 + bx2 + cx = d  

x3 + bx2 + d = cx

x3 + cx + d = bx2

x3 = bx2 + cx + d

x3 + bx2 = cx + d

x3 + cx = bx2 + d

x3 + d = bx2 + cx

 

          Cada uma destas equações foi analisada em detalhe pelo autor. Ele descreve as secções cónicas necessárias para a sua resolução, prova que a solução é correcta e, finalmente, discute as condições para as quais pode não existir solução, ou existir mais do que uma solução.

         Analisemos a resolução de al-Khayyām, da equação x3 + cx = d ou, como refere, o caso onde “Um cubo e os lados são iguais a um número”. Começa por conceber a equação cúbica como uma condição entre sólidos. Dado que x representa um lado de um cubo, c deve representar uma área (que pode ser expressa como um quadrado), donde cx é um sólido, enquanto o d por si só representa o sólido. Para construir a solução, al-Khayyām determina o segmento AB, igual em comprimento a um lado do quadrado c, ou seja AB = . Constroi BC perpendicular a AB, por forma a que BC AB2 = d, ou seja BC = d/c. Prolonga AB na direcção de Z e constroi a parábola com vértice em B, eixo BZ, e parâmetro AB. Em notação moderna esta parábola é dada pela equação . Da mesma forma, constrói uma semicircunferência no segmento BC. A sua equação é:

    ou     

A circunferência e a parábola intersectam-se no ponto D. É a abcissa deste ponto, aqui representado pelo segmento BE, que dá a solução da equação.

          Ver resolução geométrica na Geometria de al-Khayyām.

          Ao contrário de al-Karağī e al-Samaw’al, al-Khayyām foi muito cuidadoso em manter a ideia grega de homogeneidade das dimensões. Faz notar que, quando fala da igualdade de um número com uma superfície, entende por número um rectângulo em que um dos lados é a unidade e o outro esse número, e entende por número sólido, um paralelepípedo cuja base é um quadrado unitário e a altura esse número.

         No prefácio do seu tratado, al-Khayyām queixava-se de como lhe tinha sido difícil trabalhar, e agradecia ao Soberano que lhe tinha proporcionado o apoio necessário: “Não fui capaz de encontrar tempo para completar este trabalho, ou para nele concentrar os meus pensamentos, tendo estado impedido como estive, por alguns obstáculos... Muitos dos nossos contemporâneos são pseudo-cientistas que misturam verdade com falsidade, que não estão acima de suspeita e pedantice, e que usam o pouco que sabem somente como ponto de partida de propostas. Quando se dá conta da louvável intenção de um homem na procura da verdade, alguém que prefere a honestidade e dá o seu melhor para rejeitar falsidade e mentiras, evitando hipocrisia e deslealdade, desprezam-no, e menosprezam-no. Quando Deus me favoreceu com a amizade íntima de Sua Excelência, nosso glorioso e único Senhor, o supremo juiz, o Imām, Sayde Abu-Tāhir... depois de ter desesperado de encontrar tal homem... que juntava em si profundo poder na ciência com firmeza de acção... o meu coração ficou profundamente agradecido por vê-lo... O meu poder foi reforçado pelo seu liberalismo e pelos seus favores. Para que pudesse ficar mais perto da sua sublime posição, senti-me obrigado a voltar a retomar o  trabalho, que as vicissitudes do tempo me tinham forçado a abandonar, resumindo o que tinha verificado da essência das teorias filosóficas”. [4]

 

[1] As traduções latinas não contêm a segunda e terceira partes e apresentam algumas variantes.

[2] Cit in Katz, Victor – A History of Mathematics, Addison–Wesley Educational Publishers, Inc..

[3] Cit in Youschkevitch, Adolf  - Les Mathématiques Arabes, Vrin, Paris, 1976

[4] Cit in Katz, Victor – A History of Mathematics, Addison–Wesley Educational Publishers, Inc..