Matemática

" Toda a gente sabe como as necessidades da vida corrente exigem que, a cada momento, se façam contagens - o pastor para saber se não perdeu alguma cabeça do seu rebanho, o operário para saber se recebeu todo o ordenado que lhe é devido, a dona de casa ao regular as suas despesas pelo dinheiro que dispõe, o homem de laboratório ao determinar o número exacto de segundos que deve durar uma experiência - a todos se impõe constantemente, nas mais variadas circunstâncias, a realização de contagens."

Começa assim o livro "Conceitos Fundamentais da Matemática" de Bento de Jesus Caraça. De uma maneira simples, característica que Jesus Caraça mantém ao longo do seu livro, quer levar o saber, nas suas palavras a "cultura", a uma maioria.

Os "Conceitos Fundamentais da Matemática" foram publicados pela primeira vez em primeira edição na "Biblioteca Cosmos" em dois volumes em 1941/42 com sucessivas reedições. As várias edições que a obra "Conceitos Fundamentais da Matemática" já teve (e certamente ainda terá outras) reforçam a ideia de que a orientação escolhida foi a mais adequada, foi a mais útil para matemáticos e não matemáticos. De facto, tem havido não matemáticos que lêem com grande interesse "Conceitos Fundamentais da Matemática", encontrando nele um livro acessível e agradável. A organização e redacção desta obra enfatiza a militância do Autor pela cultura e as suas elevadas qualidades pedagógicas. De facto, esta Obra dá a impressão, a quem a lê, de que o Autor está conversando com o leitor.  

No prefácio à 1ª edição, com o qual Bento Caraça inicia o 1º volume dos "Conceitos Fundamentais da Matemática",  afirma a sua atitude face à Ciência, da qual a matemática, embora com problemas próprios, faz parte integrante:

A ciência, encarada assim, aparece-nos, como um organismo vivo, impregnado de condição humana, com as suas forças e as suas fraquezas e subordinada às grandes necessidades do homem na sua luta pelo entendimento e pela libertação; aparece-nos, enfim, como um grande capítulo da vida humana e social.”

E, mais adiante:

Sem dúvida, a matemática possui problemas próprios… mas não há dúvida também de que os seus fundamentos mergulham, tanto como os de outro qualquer ramo da Ciência, na vida real; uns e outros entroncam na mesma madre.”

Na literatura matemática portuguesa, a obra de Bento Caraça, 'Conceitos Fundamentais da Matemática', ocupa um lugar de grande destaque; parece que nada há que se lhe compare no esforço não só para ensinar a pensar mas também a despertar a curiosidade pela matemática e vencer o medo que esta tanto desperta. É um livro actual apesar de já ter sido escrito há mais de cinquenta anos. E este facto levanta inúmeras interrogações. Como é possível um texto científico, neste caso de matemática, resistir à erosão do tempo, à evolução das ideias e das modas? Como pode um livro científico valer para além do interesse histórico, sobrevivendo à alteração dos conceitos?

   Diz Paulo Almeida (responsável pela introdução de uma das edições do livro): "O livro não é pois apenas um livro de matemática elementar. É um livro em que a matemática é um pretexto para ir mais longe. De referir a célebre conferência de Bento de Jesus Caraça, "A cultura integral do indivíduo", proferida em 1933, Sempre quis o Autor reivindicar a cultura para a sociedade inteira. A leitura dos "

"Em filosofia (se não digo asneira) não há resumos nem vulgarizações possíveis. Ou se estuda com verdadeiros filósofos ou não se estuda. O que torna interessante os seus problemas é a sua dificuldade. Facilitar tais problemas é deixar de vê-los e deixar de vê-los é deixar por isso de ser filósofo. O vulgarizador, quase sempre, assemelha-se a um professor de equitação que para facilitar as coisas suprimisse o cavalo".

O conteúdo científico dos "Conceitos Fundamentais da Matemática" corresponde a uma parte dos temas que ainda hoje são leccionados - como o eram há cinquenta anos - nos dois últimos anos dos estudos secundários e no primeiro ano dos estudos universitários com vertente científica. Apesar da natural evolução da matemática o seu núcleo básico manteve-se no essencial ao longo deste meio-século. É verdade que, comparando a matemática com as outras ciências, a evolução da sua base fundamental revela maior estabilidade sendo por exemplo as demonstrações de há vinte cinco séculos tão modernas quanto as de hoje. No livro é dada ênfase a ideias que podemos encontrar nos manuais modernos, no entanto nestes últimos prevalece a componente técnica. Se é verdade que para consolidar a compreensão dos conceitos essa componente é indispensável, sendo mesmo necessário praticar para uma maior facilidade de memorização , mais verdade ainda é que conceber a matemática como um receituário é muito perigoso. Infelizmente, essa ideia de receituário é ainda inculcada em muitos dos alunos, muitas vezes vítimas de uma formação pobre dos seus professores. O professor deveria aproveitar o livro quer para o prazer, quer para o exercício da crítica, sabendo que nenhum livro substitui o professor, podendo, isso sim, complementar-se as suas funções. B. J. Caraça apresenta-nos uma Matemática cujo desenvolvimento se processa numa relação estreita com as pessoas e as condições de cada época, procurando, quase sempre, respostas para as questões que os homens colocam sobre aquilo que os rodeia, podendo esta visão ajudar os professores a tornar mais significativa a aprendizagem da Matemática.

    É muito importante situar este livro no tempo. Ele está em consonância com toda a actividade de Bento de Jesus Caraça à frente da Biblioteca Cosmos, em prol da divulgação científica, do seu carácter libertador e antifascista, numa luta pela cultura e liberdade. Nas palavras de Paulo Almeida: "Quando este livro foi escrito vivia-se num clima de medo generalizado em que se por um lado o Estado aterrorizava os cidadãos, por outro vivia no terrível temor de eles se libertarem. Ao carácter libertador da ciência, convite a pensar e que vive da correcção constante dos seus erros, não poderia alhear-se o regime ditatorial, obviamente ameaçado pela cultura e pela liberdade. As sucessivas vagas de demissões compulsivas e a proibição de investigar ou de ensinar endereçada a alguns dos nossos melhores valores científicos - um dos demitidos sendo o próprio Bento de Jesus Caraça - se bem reflecte o medo geral, deixa imaginar que o isolamento intelectual a que eram votados os portugueses, quer a corrupção das regras derivada da imitação do poder vigente." Hoje Portugal tem a liberdade por que Bento Caraça denodadamente lutou e todos os matemáticos da geração presente sabem ou deveriam saber o quanto devem à acção pedagógica e cívica de Bento de Jesus Caraça, dívida essa que, por demasiado grande, não é facilmente saldável, tantas foram as suas iniciativas no sentido de responsabilizar e dignificar os matemáticos.

Um texto de Bento de Jesus Caraça sobre Abel e Galois

Olga Pombo opombo@fc.ul.pt