O sistema da perspectiva em Dürer

 

Em 1506, Dürer  foi para  Bolonha onde desenvolveu os seus conhecimentos de óptica e teoria da perspectiva, disciplina que tenta expressar geometricamente a relação exacta entre as quantidades reais dos objectos e as quantidades aparentes que constituem a nossa imagem visual. Esse trabalho será consubstanciado no seu influente  Underweysung der Messung mit dem Zirkel uñ Richtscheydt (1525).  

 Dürer afirmava que a perspectiva de uma pintura não deve ser desenhada à mão, de forma livre, mas artificiosamente construída, de acordo com princípios matemáticos. Nesse sentido, Dürer usou um vidro através do qual olhava para o cenário que queria pintar, tal como nós, pela janela, olhamos para uma cena do exterior. Fixando o olhar, imaginava os raios de luz em direcção a cada ponto da cena. O conjunto de linhas que representam esses raios é chamado "projecção". Dürer marcava um ponto no vidro no lugar onde a linha encontra o vidro. Este conjunto de pontos é chamado "secção".  Assim, num primeiro momento, esta pintura realista reproduzia no vidro a localização, o tamanho e a posição relativa dos objectos, exactamente como eles apareciam no vidro colocado entre o pintor e a cena a ser pintada. No momento seguinte, os contornos desenhados no vidro eram transferidos para o painel. 

 

Curiosamente, o próprio Dürer ilustra em diversos "woodcuts" o processo por si utilizado

                                   

 

 

 

 

 

 

 

    

 

 

 

 

                                            

 

As figuras acima mostram Dürer fixando o olhar num ponto enquanto traça, numa tela de vidro ou num papel dividido em quadrados correspondentes aos quadrados da tela de vidro, os pontos correspondentes aos cortes que os raios de luz fazem na tela.

 

O terceiro destes "woodcuts" mostra o artista a traçar o modelo na tela de vidro. O olhar dirigido para a cena está em linha com o fio preso na parede.

 

 

O último aparelho inventado por Dürer elimina complemente o olho humano. Consiste numa agulha guiada a uma parede e numa corda que possui um peso numa ponta e um pin na outra. Entre o "olho" da agulha e o objecto está colocada uma moldura de madeira na qual todos os pontos podem ser determinados por dois fios móveis. Cada ponto é imediatamente traçado sobre uma folha de papel colocada na moldura e, pela repetição destes processos, a figura é gradualmente transferida para a folha.  

 

 

Vejamos agora 3 das principais regras matemáticas e 3 dos teoremas fundamentais do sistema da perspectiva em Dürer

1ª regra -  supor sempre que a tela está presa na posição  vertical usual. 

2ª regra - a  perpendicular do olhar, ou uma sua extensão, corta a tela num ponto chamado "ponto", "imaginário principal" ou "ponto de fuga"

3ªa regra - a  linha horizontal correspondente ao ponto imaginário principal é chamada "linha do horizonte" porque, se os espectadores estivessem a olhar através da tela para o espaço aberto, a linha do horizonte corresponderia ao horizonte real.

                

 

 

 

 

 

A figura  mostra a entrada de uma casa vista por uma pessoa que está no ponto O (não mostrado na figura). O ponto P. P é o ponto imaginário principal e a linha D2PD1 a linha do horizonte.

 

Primeiro teorema - todas as linhas horizontais e paralelas na imagem devem ser desenhadas de modo a encontrarem o ponto imaginário principal, ponto este que estabelece o horizonte geral da figura. É o que acontece com as linhas AA', EE', DD', CC', BB'. Pode parecer incorrecto que as linhas, na realidade paralelas,  sejam desenhadas de modo a encontrarem-se. Mas este é, precisamente, o modo como os olhos vêem as linhas paralelas, tal como é ilustrado pelo exemplo familiar da aparente convergência das linhas dos caminhos de ferro. Assim se compreende que o ponto P seja chamado "ponto imaginário principal" pois que, na imagem real que Dürer pretendia pintar, não existe nenhum ponto correspondente a este.

Segundo teorema - qualquer conjunto de linhas horizontais paralelas que não são perpendiculares ao plano da tela mas que o encontram em algum ângulo, devem ser desenhadas de modo a convergirem num ponto que assenta em algum sítio da linha do horizonte, dependendo do ângulo  que essas linhas fazem com o plano da tela. Entre esses conjuntos de linhas horizontais existem dois muito importantes: linhas tais como AB' e EK, as quais, na imagem real, são paralelas e fazem um ângulo de 45º com o plano da tela encontrando-se num ponto D1 , chamado "ponto de fuga diagonal". A distância PD1 deve igualar a distância OP, que é a distância do olho ao ponto de fuga principal. Do mesmo modo, linhas horizontais paralelas tais como BA' e FL que, na imagem real, fazem um ângulo de 135º  com a tela devem ser desenhadas de modo a encontrarem-se num segundo ponto diagonal, D2 na figura e, PD2 também deve igualar OP. Além disso, os dois pontos de fuga diagonais são equidistantes do ponto imaginário principal.

Terceiro teorema - as linhas paralelas da imagem real, que são paralelas ao plano da tela, devem ser desenhadas horizontais e paralelas, as linhas verticais paralelas devem ser desenhadas verticais e paralelas. Significativo é o facto de este terceiro teorema não estar em harmonia com a percepção visual uma vez que, para o olho humano, todas as linhas paralelas parecem convergir.

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Existem muitos outros teoremas do sistema de perspectiva focada que o artista pode usar na sua aproximação ao mundo natural. No entanto, existe um ponto que está implícito no que foi discutido e que é importante para o leigo aprender a ver uma pintura realizada de acordo com o sistema da perspectiva focada: a posição do olho do artista é inseparável do desenho da pintura. Para obter o efeito correcto, o olho do espectador deve estar ao nível do ponto de fuga e directamente em frente a este, a uma distância igual à distância do ponto de fuga a qualquer um dos pontos de fuga diagonais. Nesse sentido, seria bom que as pinturas fossem penduradas de modo a que pudessem ser levantadas ou baixadas de acordo com a altura do espectador.

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 Muito antes da criação do sistema da perspectiva focada, já alguns artistas se haviam apercebido de que os objectos distantes devem ser  diminuídos. Tiveram, no entanto, grande dificuldade em determinar as suas dimensões. O novo sistema da perspectiva focada forneceu os teoremas necessários à superação deste problema. 

No entanto, havia métodos empíricos suficientes para assegurarem uma correcta representação. Um exemplo eloquente é "A Última Ceia de Cristo" de Leonardo da Vinci, magnificamente construída em termos de perspectiva.

O mesmo se pode dizer  acerca de todos os trabalhos de Dürer anteriores à descoberta do sistema de perspectiva. De entre esses trabalhos destaca-se "Santo Jerónimo no seu estudo" que ilustra de forma eloquente o que Dürer conseguia fazer. O ponto de fuga está no centro da figura. Esta pintura tem um efeito espantoso porque o espectador tem a sensação de estar no quarto, muito perto de Santo Jerónimo.

 

Antecedentes do sistema da perspectiva focada

Eram fundamentalmente dois os métodos para a construção de objectos em três dimensões anteriormente usados em Itália: a "costruzione legittima"  e a "costruzione abreviatta".

"costruzione legittima"

O pressuposto era o de que os objectos eram "percebidos" por linhas rectas convergindo para o olho - de tal modo que o sistema visual poderia ser descrito como um cone ou uma pirâmide, tendo o objecto como base e o olho como vértice - e que a configuração da imagem visual no seu todo dependia do tamanho do ângulo correspondente ao vértice da tal pirâmide ou cone, o chamado "ângulo visual". A pirâmide euclidiana é intersectada por um plano inserido entre o objecto e o olho, sendo a imagem visual projectada na superfície desse plano, tal como a lente projecta a imagem num papel fotográfico. 

Esta construção requer dois desenhos preparatórios. Em cada um deles o cone visual é representado por um triângulo com o seu vértice num ponto perto do olho, enquanto que a projecção no plano é representada por uma vertical intersectando este triângulo. A construção requer ainda  a elevação ao plano do chão de todo o sistema visual. Aí, o desenho do objecto tem de ser mostrado num diagrama vertical e, o plano do chão num diagrama horizontal. Cada um dos diagramas são ligados com o ponto que  representa o olho. Os pontos de intersecção entre as linhas ligadas e a vertical vão determinar o  conjunto de valores necessário, nomeadamente, as quantidades verticais e transversais da imagem perspectivada.  

 

No entanto, a "costruzione legittima" requeria tantos e tão complexos preliminares que era difícil de praticar. Nem mesmo o mais consciencioso dos pintores desenvolvia dois diagramas para depois os projectar no plano da figura. 

 

"construzione abreviatta"

O objectivo é aqui construir - em esboço - um sistema tradicional de coordenadas que permita ao artista determinar o volume, e não a forma, de qualquer objecto. Para tal,  usa-se como esboço um quadrado dividido em pequenos quadrados de tal modo que os pontos de divisão convirjam para o ponto de fuga P. Construindo o perfil de elevação do cone ou pirâmide, desenha-se uma vertical representando o plano da figura num dos cantos fronteiros do quadrado base e "arranjava-se", na  horizontal determinada pelo ponto de fuga, um ponto representando o olho. Quando se  liga este ponto aos terminais e aos pontos de divisão da linha da frente do quadrado base, os pontos de intersecção entre as linhas que vão do olho até  aos pontos de divisão do quadrado base e a vertical indicam a sequência correcta das transversais equidistantes na cena a pintar.   

 

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Olga Pombo opombo@fc.ul.pt