Tradução realizada no âmbito da cadeira de Seminário Temático leccionada pela professora Olga Pombo, no ano lectivo de 2003/2004 por Angélica Manteigas, professora de matemática do ensino secundário e aluna do 4º da Licenciatura em Ensino da Matemática da FCUL

 

O pensamento matemático

(tradução de Jean Piaget, "La pensée mathématique", in, Introduction à l'épistémologie génétique, Paris, Puf, 1973, vol. I, pp. 57-60)

A possibilidade de uma ciência matemática ao mesmo tempo rigorosamente dedutiva e que se adapte exactamente à experiência constituiu desde sempre o problema central da epistemologia. O problema é ainda mais perturbante do ponto de vista genético.

Por um lado, com efeito, as matemáticas ajustam-se à realidade física da forma mais detalhada. Não acontece nunca ao físico, por muito variadas e diversas que sejam as estruturas ou as relações que possa descobrir no mundo material, encontrar alguma que não possa ser expressa com precisão em linguagem matemática, como se houvesse uma harmonia pré-estabelecida entre todos os aspectos do universo físico e os quadros abstractos da geometria e da análise. Mas há ainda muito mais: verifica-se que este acordo se realiza não só no momento da descoberta da lei física ou pouco depois, mas que os esquemas matemáticos antecipam o conteúdo experimental que virá a inserir-se neles. As formas geométricas e analíticas podem por si mesmas ser elaboradas sem nenhuma preocupação com a realidade. Todavia, na medida em que  são dedutivamente coerentes, temos a certeza não só que a experiência nunca as porá em dúvida, mas ainda, e é isto o ponto paradoxal, que a experiência, mais cedo ou mais tarde, as irá justificar e adaptar-se exactamente a elas.

O melhor exemplo desta inserção do real aos quadros preparados pela dedução matemática, é, sem dúvida, a geometria de Rieman. Trata-se de uma construção livre e audaciosa, feita à margem da geometria clássica, que, contradiz mesmo o famoso postulado de Euclides que, por falta de demonstração, era considerado como sendo imposto pela observação directa. Eis, portanto, o tipo da livre criação do espírito matemático sem qualquer preocupação do real. Ora, mais de meio século depois deste desafio à realidade física, acontece que a própria física, por si mesma passa a considerar a geometria de Rieman como a mais apta a justificar os fenómenos gravíficos do que a geometria euclidiana. A teoria da relatividade utiliza o quadro assim preparado e a experiência dá razão a este golpe de génio. Outro exemplo, ligado ao mesmo período de renovação da física: em 1900, Ricci e Lévi-Civita, desejosos de conseguir aclarar a forma das equações diferenciais independentemente dos sistemas de coordenadas, estabelecem um "cálculo diferencial absoluto". Ora, este esquema, puro trabalho de luxo de matemáticos cheios de rigor, torna-se, anos mais tarde, no instrumento essencial de que se serve A. Einstein, porque, sem o cálculo tensorial, a relatividade teria ficado privada da sua técnica específica. Um exemplo clássico das mesmas antecipações, é o dos números "imaginários". Nascidos de uma simples generalização das operações aritméticas (o seu próprio nome basta para indicar a “intenção do legislador” a seu respeito) têm todavia desempenhado um papel cada vez mais importante em geometria, em mecânica e na teoria das variáveis complexas, por conseguinte, em toda a análise, com as suas inumeráveis aplicações. Seria fácil acumular exemplos no domínio da actual micro-física, que utiliza os mais diversos esquemas matemáticos pré-existentes, desde o cálculo de matrizes (onde se encontra de novo o papel dos imaginários) até aos “espaços abstractos” cujo ponto de contacto com o real experimental constitui talvez um dos mais curiosos paradoxos da investigação contemporânea.

Todavia, sempre correspondendo a qualquer sector da realidade física, as matemáticas ultrapassam-na sem cessar pelas suas generalizações, e, sobretudo, a partir de um certo grau de desenvolvimento não se fundamentam apenas sobre a própria experiência. Sem dúvida que, no início, a criança tem necessidade de um controlo empírico para estar segura que 1+4=2+3, da mesma forma que os egípcios descobriram, pela medida, as linhas da geometria euclidiana. Mas a partir dos 11 ou 12 anos e, na história, a partir dos gregos, o rigor da dedução matemática elevou-se acima da constatação experimental. A experiência pode ser ocasião para problemas novos e é-o, sem dúvida, orientando algumas vezes o matemático em direcções para as quais os seus interesses o não teriam levado. Mas, jamais os matemáticos invocam a experiência à maneira da física como critério de verdade. Uma proposição matemática é verdadeira na medida em que é racionalmente demonstrada e não na medida em que está de acordo com a realidade exterior. Sobre isto, todos têm a mesma opinião.

Como explicar, portanto, este poder misterioso das operações que parecem ter surgido de acções resultantes da experiência mais próxima, mas que, ao se coordenarem umas com as outras, se afastam da realidade empírica com um  movimento continuamente acelerado até a poder dominar, adiantar-se a ela e mesmo, desinteressar-se soberbamente das confirmações que ela lhes oferece nos campos limitados do actual e do finito? Por um lado, com efeito, as matemáticas elementares parecem resultar de acções entre as quais: deslocações, reuniões ou dissociações, sobreposições, correspondências. Contrariamente, o reino das matemáticas superiores constitui um mundo de transformações operatórias que ultrapassa por todos os lados as fronteiras da experiência real ou efectivamente realizável. Por conseguinte, de início, o universo real parecia infinitamente mais rico do que o das operações emergentes enquanto que, no decurso do desenvolvimento, as posições se inverteram e são as operações dedutivas que ultrapassam as transformações realmente observáveis.

Daqui nascem os dois problemas fundamentais levantados pelo desenvolvimento das operações matemáticas. Um primeiro problema é, portanto, o do acordo permanente entre as operações dedutivas e da realidade física: sendo na sua origem acções com sucesso a concordância destas operações, parece então, não  levantar mistério (aparência esta para discutir, aliás, mais aprofundadamente); mas, uma vez que as mesmas operações se tornam, sobretudo, em acções simbólicas, interiores e mais ricas que as transformações experimentais, como se dá o seu acordo com estas últimas? Ora, este primeiro problema dá lugar a um segundo: o da fecundidade do raciocínio matemático. Com efeito, à medida que o mundo das construções geométricas e analíticas ultrapassa o mundo real, correspondendo-lhe uma parte comum, trata-se de compreender, não somente esta correspondência, mas ainda esta ultrapassagem. Deste ponto de vista, o raciocínio matemático aparece como uma espécie de criação (exceptuando naturalmente a possibilidade de se admitirem outras soluções tais como a platónica, etc., se o estudo do desenvolvimento conduzisse a este resultado). Partindo de alguns axiomas, pouco numerosos e também pobres quanto possível em conteúdo e de algumas definições, o matemático elabora, servindo-se de operações construtivas, este universo imenso de relações que constituem os seres ditos abstractos. O raciocínio matemático parece portanto construtivo quer esta aparência se revele falsa ou exacta no decurso da análise genética. Ainda que, em todos os outros domínios da ciência a dedução pura não engendre senão quimeras e que o progresso dos conhecimentos pressuponha um apelo contínuo à observação e à experiência, a dedução matemática é, pelo contrário, infinitamente produtiva. Como explicar esta construção quer ela pareça ser, por um lado, logicamente real, ou não corresponda senão a uma ilusão psicológica?

São estes dois problemas clássicos que nós gostaríamos de examinar nesta primeira parte, mas exclusivamente do ponto de vista genético e historico-crítico. Notemos, com efeito, que independentemente de toda a filosofia e do facto destas grandes questões terem inspirado as epistemologias metafísicas de Platão a Descartes e de Kant a Husserl, os dois problemas de concordância das matemáticas com a experiência e da construção das operações matemáticas, impõem-se à epistemologia genética, mesmo à mais restrita, porque se impõem à psicologia da inteligência e à fisiologia da percepção. Não se poderia compreender, nem o desenvolvimento da inteligência da criança, nem a organização das estruturas perceptivas, sem tomar posição a respeito da formação do número e do espaço. Ora, a análise desta formação conduz necessariamente, seja a situar o número e o espaço nas próprias coisas, lá onde a percepção as encontra e lá de onde a inteligência as extrai, seja a procurar o seu segredo numa certa relação entre as coisas e a acção ou na estrutura de um sujeito pensante e percepcionante. Em todos estes casos, o problema do acordo das matemáticas com o real está assim equacionado e seria tão imprudente resolvê-lo no terreno da operação nascente, sem olhar de mais perto aquilo em que se transformam essas operações, uma vez constituídas como se limitar ao exame dos estádios superiores sem se ocupar com o ponto de partida.

Olga Pombo opombo@fc.ul.pt