A Chess Playing Machine

de 

Claude E. Shannon

Tradução comentada de "A Chess-Playing Machine,'' Scientific American, vol. 182, nº. 2, February (1950), pp. 48-51. 

 

                                                   " You're not a man, you're a machine"
                                                               
George Bernard Shaw

                                                     "Thinking makes it so" 
                                                            Shakespeare

                                                    "Things are in the saddle and ride mankind"
                                                            Ralph Waldo Emerson

 

   "Durante séculos filósofos e cientistas têm especulado se o cérebro humano será, ou não, essencialmente uma máquina. Poderia uma máquina ser concebida de forma a ser capaz de "pensar"? Ao longo da última década foram construídas várias máquinas computadorizadas electrónicas de grande dimensão que são capazes de algo muito próximo ao processo racional. Estes novos computadores foram primeiramente concebidos para apenas levar a cabo cálculos numéricos. Realizam automaticamente uma longa sequência de adições, multiplicações e outras operações aritméticas à razão de milhares por segundo. Contudo, os princípios básicos da concepção destas máquinas são tão gerais e flexíveis que podem ser adaptadas a trabalhar simbolicamente com elementos representando palavras, proposições ou outras entidades conceptuais.

    É bastante significativa a expressão "filósofos e cientistas", fórmula na qual fica patente a separação entre um grupo e o outro. Para Shannon trata-se de dois conjuntos exclusivos: nem os filósofos incluem os cientistas nem os cientistas incluem os filósofos. Quanto à questão considerada: "será o cérebro humano uma máquina?", o mais que se pode dizer é que não se trata de um problema de uma área específica do saber, mas sim de uma questão sobre o próprio homem na sua dimensão física, biológica e espiritual. 

    Curiosa também a menção à "flexibilidade" das máquinas: cinquenta anos depois vivemos rodeados pelos efeitos dessa flexibilidade.

    Uma dessas possibilidades, que já está a ser investigada em vários quadrantes, é a tradução de uma língua para outra usando um computador. O objectivo imediato não é uma redacção literária final, mas apenas uma tradução palavra a palavra que conservaria o suficiente do significado para ser compreensível. As máquinas computadorizadas podem também ser empregues em muitas outras tarefas de carácter semi-automático ou semi-pensante, como conceber filtros electrónicos e substituir circuitos, ajudar a regular o tráfego aéreo em aeroportos movimentados ou encaminhar chamadas telefónicas de longa distância usando da forma mais eficiente um número limitado de linhas.

    Hoje a tradução automática é uma realidade. Veja-se a possibilidade hoje vulgarizada de traduzir automaticamente algumas páginas disponíveis na Internet.

    Algumas das possibilidades nesta direcção podem ser ilustradas pela concepção de um computador que jogue correctamente um jogo de xadrez. É claro que este problema, não importante em si mesmo,  foi formulado com um sério propósito: desenvolver técnicas que possam mecanizar comportamentos humanos racionais.

    A máquina de xadrez é um ponto de partida ideal, por várias razões. O problema está claramente definido, quer nas operações permitidas (os movimentos das peças), quer no objectivo final (o xeque-mate). Não é nem tão simples para ser considerado trivial, nem tão complicado que não se consiga uma solução satisfatória. E uma tal máquina poderia ser colocada contra um adversário humano, obtendo-se assim a medida clara das capacidades da máquina neste tipo de racionalidade.

   
Curiosa esta medida de eficácia da máquina apontada por Shannon: a sua capacidade de oposição a um humano.

    Existe já uma considerável literatura sobre as máquinas de xadrez. Em finais do século XVIII e inícios do século XIX um inventor húngaro, de nome Wolfgang von Kempelen espantou a Europa com um aparelho conhecido como Maelzel Chess Automaton, que circulou pelo continente com largas audiências. Em breve apareceram documentos que se propunham explicar o seu modo de funcionamento, incluindo um ensaio analítico de Edgar Allan Poe. A maioria dos analistas concluiu, correctamente, que a máquina era manipulada por um mestre de xadrez humano enclausurado no seu interior. Alguns anos mais tarde o modo exacto de realização destas operações foi publicamente explicado (figura1).


figura 1

    Shannon comete uma ligeira imprecisão ao referir-se à invenção de Kempelen como "Maelzel Chess Automaton". Johann Maezel foi o proprietário posterior da invenção de Kempelen, responsável pela ida da máquina para a América. Inicialmente esta era conhecida por "O Turco", em virtude do manequim que fazia parte da máquina (como se pode ver na figura 1). O jogador enclausurado na máquina usava os braços do "Turco" para mexer as peças.

    O  interesse de Edgar Allan Poe, importante escritor americano do século XIX(1809-1849), tem justificação no facto de ele ter sido um dos derrotados pelo "Turco" (condição que partilha com ilustres como Napoleão Bonaparte e Benjamim Franklin). Embora o texto de Shannon dê a ideia que o escrito de Allan Poe é contemporâneo das primeiras aparições do "Turco", a verdade é que o seu ensaio só é publicado em 1836, 67 anos depois do conhecimento público do "Turco". 

    Em 1914 foi feita uma tentativa mais desenvolvida de conceber uma máquina de xadrez por um inventor espanhol de nome L. Torres y Quevedo, que construiu um mecanismo que jogava o final de jogo rei e torre contra rei. A máquina, jogando pelo rei e torre, forçava o xeque-mate em alguns movimentos, independentemente do que o seu adversário humano jogasse. Uma vez que é possível dar um conjunto explícito de regras para se fazerem os movimentos certos num final de jogo como este, o problema é relativamente simples, mas a ideia era bastante avançada para a altura.

    O "final de jogo" é aquilo que se pode designar por "termo técnico". Aplica-se basicamente quando, num jogo de xadrez, fica um conjunto reduzido de peças. Neste caso concreto, desde que o lado que tem a torre jogue apropriadamente, o lado que só tem o rei não tem quaisquer hipóteses. 


    Um computador electrónico pode ser preparado para jogar um jogo completo. De forma a explicar a actual programação de uma máquina de xadrez. É provavelmente uma boa ideia começar com uma apresentação geral do computador e das suas operações.

    Um computador electrónico comum é um mecanismo extremamente complicado contendo vários milhares de tubos de vácuo, circuitos e outros elementos. Os princípios básicos envolvidos são, contudo, bastante simples. A máquina tem quatro partes principais: (1) um "órgão aritmético"; (2) um elemento de controlo, (3) uma memória numérica e (4) uma memória de programa. (Em alguns projectos as duas funções de memória são apresentadas na mesma estrutura física.) O modo de funcionamento é análogo ao modo humano de computação de cálculos numéricos com uma vulgar máquina computadorizada de secretária. O órgão aritmético corresponde à máquina computadorizada de secretária, o elemento de controlo ao operador humano, a memória numérica à folha de trabalho em que são escritos os resultados finais e intermédios e a memória de programa às rotinas computacionais que descrevem as operações a ser realizadas.
 

    Numa máquina electrónica computadorizada, a memória numérica consiste num grande número de "caixas", cada uma capaz de guardar um número. Para preparar um problema no computador é necessário fazer corresponder os números das caixas a todas as quantidades numéricas envolvidas e, em seguida, construir um programa que diga à máquina quais as operações numéricas que devem ser realizadas com os números e para onde devem ir os resultados. O programa consiste numa sequência de "instruções" cada uma descrevendo um cálculo elementar. Por exemplo, uma instrução típica pode ler A 372, 451, 133. O que significa: adicione o número guardado na caixa 372 com o que está na caixa 351 e coloque a soma na caixa 133. Outro tipo de instrução requer que a máquina tome uma decisão. Por exemplo, a instrução C 291, 118, 345 diz à máquina para comparar os conteúdos da caixa 291 e 118; se o número da caixa 291 é maior, a máquina segue para a próxima instrução do programa; se não é maior a máquina vai buscar a sua próxima instrução à caixa 345. Este género de instrução capacita a máquina para escolher entre procedimentos alternativos, dependentes dos resultados dos cálculos prévios. O "vocabulário" de um computador electrónico pode incluir trinta tipos diferentes de instruções.(1)

    Depois de a máquina ser provida com um programa, os números iniciais necessários para o cálculo são colocados na memória numérica e a máquina executa automaticamente as instruções. Claro está que esta máquina é mais útil em problemas que envolvem um número enorme de cálculos individuais, que seriam muito trabalhosos para ser executados à mão.

    O problema de preparar um computador para jogar xadrez pode ser dividido em três partes: 1º tem que ser escolher um código para que as posições do jogo e as peças do jogo possam ser representadas por números; 2º tem encontrar uma estratégia para escolher os movimentos a realizar; e 3º traduzir para uma sequência de instruções computacionais elementares, ou "programa", esta estratégia.

    1. A figura 2 apresenta um código possível para o tabuleiro e para as peças de xadrez. Cada quadrado no tabuleiro tem um número que consiste em dois dígitos: o primeiro corresponde à coordenada horizontal, o segundo à coordenada vertical. Cada peça diferente é também designada por um número, o peão pelo número 1, o rei pelo 2, o bispo pelo 3, a torre pelo quatro e por aí adiante. As peças brancas são representadas por números positivos e as pretas por negativos. As posições de todas as peças no tabuleiro podem ser indicadas por uma sequência de 64 números, com zeros a indicar os espaços vazios. Assim, qualquer posição do jogo pode ser registada como uma série de números e guardada na memória numérica da máquina computacional.



  

figura 2

 Cada movimento é identificado pelo número do quadrado em que a peça estava e pelo número para o qual a peça se move. Geralmente, dois números seriam suficientes para descrever um movimento mas, para acautelar o caso especial de promoção de peão a uma peça mais forte, é necessário um terceiro número. Este número indica a peça na qual o peão se converte. Em todos os outros movimentos o terceiro número é zero. Assim, o movimento de rei do quadrado 01 para o quadrado 22 é codificado por 01, 22, 0. O movimento de peão de 62 para 72 e sua promoção a rainha é representado por 62, 72, 5.

    Shannon é exaustivo na apresentação dos movimentos possíveis. Até a possibilidade de roque está acautelada. No fundo, esta codificação corresponde à anotação que os jogadores de xadrez fazem das suas partidas, com a diferença de que, aqui, se usa apenas um código numérico, enquanto que no jogo entre humanos se usa um código alfanumérico e se identificam também as peças.


    2. O segundo problema principal é decidir a estratégia de jogo. É necessário encontrar um processo optimizante para se calcular um movimento razoavelmente bom para qualquer posição de jogo. Esta é a parte mais difícil. O criador do programa pode usar aqui os princípios do bom jogo desenvolvidos pelos especialistas do jogo de xadrez. Estes princípios empíricos constituem um meio de dar alguma ordem à confusão das possíveis variações do jogo de xadrez. Até os mecanismos de alta velocidade disponíveis nos computadores electrónicos são desadequados para jogar um jogo de xadrez perfeito através do cálculo de todas as variações possíveis até ao final do jogo. Numa posição típica de jogo existirão à volta de 32 movimentos possíveis, com 32 possíveis réplicas - o que cria já um total de 1024 possibilidades. A maioria dos jogos de xadrez decorre em 40 movimentos ou mais para cada lado. Logo, o número total de variações possíveis num jogo típico é à volta de "10 elevado a 120". A máquina que calculasse cada variação num milionésimo de segundo necessitaria de mais de "10 elevado a 95" anos para decidir o seu primeiro movimento.

    Parecem igualmente impraticáveis outros métodos de tentar jogar jogos perfeitos. Por essa razão nos resignamos a ter uma máquina que jogue um jogo razoavelmente bem jogado, admitindo ocasionalmente que alguns movimentos possam não ser os melhores. É claro que isto é precisamente o que os jogadores humanos fazem: ninguém joga um jogo perfeito.

    Eis uma questão polémica que ainda hoje acende algumas paixões: poderá a máquina atingir a perfeição e nunca perder? Hoje existem já muitos softwares de xadrez que operam a uma boa velocidade mantendo uma boa estratégia de jogo. Ainda nenhum foi considerado invencível mas, em 1997, o Deep Blue venceu o praticamente invencível campeão do mundo Kasparov. Este alega no entanto que o "combate" não foi justo, e que o programa contou com a colaboração dos técnicos da IBM. Kasparov continua a defender que o humano levará sempre a melhor sobre a máquina. 


    Ao programar uma estratégia de jogo na máquina temos de estabelecer um método numérico para qualquer posição de jogo dada. Um jogador de xadrez que olha para uma posição pode avaliar para que lado, brancas ou negras, pende a vantagem, avaliação esta que é aproximadamente quantitativa. Ele pode dizer "as brancas têm uma torre por um bispo, uma vantagem de mais ou menos 2 peões" ou "as negras têm mobilidade suficiente para compensar um sacrifício de peão". Estes juízos são baseados numa longa experiência e estão sumariados nos princípios de xadrez expostos na literatura xadrezista. Por exemplo, descobriu-se que uma rainha vale 9 peões, uma torre vale cinco e que um bispo ou um cavalo valem cerca de três. Uma posição pode ser avaliada pela mera contabilização das forças totais de cada um dos lados, medindo-as pela unidade de peão. No entanto, numerosos outros factores têm de ser levados em conta: a mobilidade e posicionamento das peças, a fragilidade da protecção ao rei, a natureza da formação de peões e por aí adiante. Também a estes factores se podem atribuir pesos numéricos a ser ponderados na avaliação e é aqui que o conhecimento e a experiência dos mestres de xadrez têm de ser tidos em conta.

    Se assumir-mos que foi estabelecido um processo adequado para a avaliação de posições, como deve ser seleccionado um movimento? O processo mais simples é considerar todos os movimentos possíveis na posição dada e escolher aquele que dá uma avaliação positiva mais imediata. Contudo, como os jogadores de xadrez geralmente pensam em mais do que um movimento para a frente, temos de levar em conta as várias respostas possíveis que o adversário tem para cada movimento projectado. Se assumir-mos que a réplica do oponente será a que é melhor avaliada do seu ponto de vista, escolheríamos o movimento que nos deixasse o melhor possível após a melhor resposta do adversário. Infelizmente, com a velocidade dos computadores actualmente disponíveis, a máquina não conseguiria explorar todas as possibilidades para mais do que duas jogadas para a frente para cada lado, logo uma estratégia deste tipo iria jogar uma partida pobre para os padrões humanos. Os bons jogadores de xadrez jogam frequentemente com combinações de quatro ou cinco jogadas à frente e, por vezes, campeões mundiais vêem cerca de 20 jogadas para a frente. É claro que isto só é possível porque as variações que escolhem são altamente seleccionadas. Eles não avaliam todas as linhas de jogo mas apenas as importantes.

    A quantidade de selecções realizada pelos mestres de xadrez ao examinar possíveis variações tem sido estudada experimentalmente pelo mestre de xadrez e psicólogo holandês A.D. De Groot. Groot mostrou várias posições típicas a mestres de xadrez e pediu-lhes para decidir quanto ao melhor movimento e para, em simultâneo, descreverem as suas análises de posições à medida que as pensavam. Com este procedimento pôde ser determinado o número e profundidade das variações examinadas. Numa caso típico, um mestre de xadrez examinou 16 variações, variando a profundidade de análise entre um movimento das pretas e cinco movimentos das pretas e quatro das brancas. O número total de posições consideradas foi 44.

    De Groot é por alguns considerado como o "pai da Psicologia Xadrezísta" e conduziu várias experiências sobre o assunto.


    Seria sem dúvida desejável melhorar a estratégia da máquina incluindo um processo de selecção deste género. Poderíamos ir muito longe nesta direcção, porém investigar uma linha de jogo para quarenta movimentos seria tão mau como examinar todas as linhas para apenas dois movimentos. Mais adequado seria analisar apenas as possíveis variações importantes - isto é, os movimentos forçados, as capturas e as ameaças principais - e continuar com a investigação dos movimentos possíveis até ser suficiente para clarificar as consequências de cada um. É possível conceber um critério aproximado para seleccionar as variações importantes, não tão eficientemente como um mestre de xadrez, mas suficientemente bom para reduzir o número de variações a apreciar e assim permitir uma investigação mais aprofundada dos movimentos que importe considerar.

    É interessante que, embora reconheça a superior velocidade da máquina sobre a capacidade de cálculo do  homem, Shannon tem clara consciência da superioridade do homem sobre outras dimensões da máquina

    3. O último problema é o de condensar a estratégia numa sequência de instruções, traduzidas para a linguagem da máquina. É um processo eficaz mas entediante. Indicaremos apenas as suas linhas gerais. O programa completo é constituído por 9 sub-programas e um programa principal que convoca os sub-programas para operarem quando necessário. Seis dos sub-programas lidam com os movimentos dos vários tipos de peças, ou seja, informam a máquina sobre quais os movimentos permitidos para os vários tipos de  peças. Outro sub-programa habilita a máquina a realizar um movimento "mentalmente", sem que realmente proceda à sua análise; isto é, com uma dada posição guardada na memória, a máquina deve ser capaz de construir a posição que resultaria se o movimento fosse feito. O sétimo sub-programa capacita o computador a fazer a lista de todos os possíveis movimentos numa dada posição, e o último sub-programa avalia uma dada posição. O programa principal liga e supervisiona a aplicação dos sub-programas. Começa com o sétimo sub-programa a fazer uma lista dos movimentos possíveis o que, por seu turno, apela para os sub-programas anteriores no sentido de estas determinarem para onde se podem mover as várias peças. O programa principal avalia depois as posições resultantes utilizando o oitavo sub-programa e compara os resultados de acordo com o processo descrito acima. Depois de comparar todas as variações investigadas, é seleccionada aquela que conseguir a melhor avaliação de acordo com os cálculos da máquina. Este movimento é traduzido para a notação standard de xadrez e enviado pela máquina. 

    Este é o grande problema: conseguir que a máquina tome as opções certas, sabendo à partida que nunca poderá considerar todas as opções. Será isso pensar? Ou estará ela simplesmente a cumprir mecanicamente aquilo que foi programado por humanos?

    Acredita-se que um computador electrónico programado desta maneira jogaria um jogo forte a uma velocidade comparável com a velocidade humana. A máquina tem várias vantagens óbvias sobre o jogador humano: (1) pode proceder a cálculos individuais com uma velocidade muito maior; (2) o seu jogo é livre de erros que não sejam deficiências do programa, enquanto que os jogadores humanos frequentemente cometem erros muito simples e óbvios; (3) a máquina está livre da preguiça ou da tentação de fazer movimentos instintivos sem uma análise apropriada da posição; (4) não tem "nervos", razão pela qual não cometerá falhas devido a excesso de confiança ou derrotismo. Contudo, contra estas desvantagens, do lado da mente humana devem ser tidas em conta a flexibilidade, a imaginação e a capacidade de aprender.

    É curioso salientar que Kasparov afirma que o ser humano poderá sempre vencer a máquina: "a menos de erro humano ou perca de concentração"


    Em algumas circunstâncias a máquina pode derrotar o programador humano. Nesse sentido, o programador pode seguramente derrotar a máquina, Ao conhecer a estratégia usada pela máquina, pode fazer uso das mesmas tácticas de forma mais aprofundada. Mas necessitaria de várias semanas para fazer os cálculos relativos a um movimento, enquanto que a máquina usa apenas uns minutos. Numa base de igualdade de tempo à partida, a paciência e precisão mortífera da máquina dariam cartas à falibilidade humana. Contudo, se suficientemente ofendido, o programador poderia facilmente enfraquecer a máquina de maneira a reduzir a profundidade da sua investigação (ver figura 3). Esta ideia foi expressa, algum tempo atrás, por um cartoon no "The Saturday Evening Post". 

figura 3

    Esta é uma das acusações que Kasparov faz ao Deep Blue mas em sentido inverso: Kasparov defende que o Deep Blue foi programado propositadamente para jogar contra ele, ou seja, defende que os programadores o reprogramaram depois das primeiras vitórias e empates de Kasparov.


    Como vimos, a máquina realizaria sempre o mesmo movimento na mesma posição. Se o oponente fizesse os mesmos movimentos, isto conduziria sempre ao mesmo jogo. Se o oponente ganhasse um jogo, poderia ganhar sempre daí para a frente usando a mesma estratégia, tirando partido de alguma posição particular na qual a máquina escolhe um movimento fraco. Uma forma de variar o jogo da máquina seria o introduzir um elemento estatístico. Sempre que fosse confrontada com duas ou mais possibilidades igualmente boas de acordo com a avaliação da máquina, ela escolheria de entre eles de forma aleatória. Deste modo, se chegasse à mesma posição uma segunda vez, a máquina poderia escolher um movimento diferente.

    Shannon não refere aqui aquela que seria uma outra alternativa: a máquina guardar o número de sucessos e insucessos com cada variação escolhida. Com esta nova variável estatística a máquina poderia ser programada para escolher apenas uma variação que tivesse dado resultados positivos no final do jogo. Neste caso, a máquina estaria a "aprender", não repetindo erros já cometidos nem expondo as mesmas fragilidades.

    Outro momento em que uma variação estatística poderia ser introduzida seria na abertura do jogo. Seria desejável ter um conjunto de aberturas, talvez algumas centenas, guardadas na memória da máquina. Para os primeiros movimentos, até que o adversário se desviasse das respostas standard ou a máquina chegasse ao fim da sequência de movimentos nela registados, a máquina jogaria por memória. Este procedimento dificilmente poderia ser considerado batota, já que é desta maneira que os mestres de xadrez jogam na abertura.

    Abertura é também um termo técnico, que designa os primeiros movimentos de um jogo. Não há um número fixo de jogadas que constituem a abertura. Os jogadores de xadrez experientes que jogam de brancas começam o jogo com uma abertura já delineada à partida.


    Convém notar que, de acordo com os seus limites, uma máquina deste tipo jogaria um jogo brilhante. Mais tarde iria rapidamente fazer sacrifícios espectaculares de peças importantes de forma a obter vantagem ou dar xeque-mate, desde que toda a combinação ocorresse completamente dentro dos seus limites computacionais. Por exemplo, na posição ilustrada na figura 4, a máquina iria rapidamente descobrir o mate através de um sacrifício em três lances: 
                                                           
 


    

figura 4

(clique aqui para ver a situação exposta acima de uma forma clara)

  Brancas       Pretas
     Te8 (xeque)         Txe4
Dg4 (xeque)  Dxg4
Cf6 (xeque-mate)

 

    A figura 4 não é a ideal para quem não estiver muito familiarizado com o xadrez, no entanto, optei mesmo assim por digitalizar o original. Alterei no entanto a notação. O original usava uma notação já pouco usada e muito mais difícil de perceber por parte de quem não joga xadrez. Na versão aqui apresentada os lances aparecem na notação habitual do xadrez, na qual cada quadrado é identificado por uma letra e um número: a letra corresponde às colunas (temos portanto as colunas a,b,c,d,e,f,g,h, em que a coluna "a" corresponde à primeira à esquerda das brancas) e o número às linhas (temos portanto as linhas 1,2,3,4,5,6,7,8, em que se conta a partir das brancas), o T é a torre, o D é a rainha (dama), o C cavalo e o x significa que uma peça foi tomada.                                              

                                      
    Frequentemente este género de combinações vitoriosas são desperdiçadas no jogo amador.

    A fraqueza maior da máquina é que ela não aprende com os seus erros. O único modo de melhorar o jogo é melhorar o programa. Tem sido feita alguma investigação para se conceber um programa que desenvolvesse a sua própria evolução em termos de estratégia com a sua experiência no jogo. Apesar de parecer teoricamente possível, até agora os métodos propostos não se revelam viáveis. Uma possibilidade seria conceber um programa que mudaria os termos e coeficientes envolvidos na função de avaliação tendo em conta os resultados dos jogos que a máquina já tivesse jogado. Poderiam ser introduzidas nestes termos pequenas variações e os valores seriam escolhidos para dar a maior percentagem de vitórias.

    A questão górdia, mais fácil de colocar que de responder, é a seguinte : será que uma máquina de jogar xadrez deste tipo "pensa"? A resposta depende inteiramente de como definimos pensamento. Dado que não existe nenhuma convenção sobre o modo de tornar preciso o significado desta palavra, a questão não tem resposta definitiva. De uma perspectiva comportamentalista, a máquina actua como se estivesse a pensar. Sempre se considerou que jogar bem xadrez requer a faculdade da razão. Se olharmos o pensamento como uma propriedade de comportamentos externos e não como um determinado conjunto de métodos internos então a máquina está seguramente a pensar.
 
   Para alguns psicólogos o processo do pensamento é essencialmente caracterizado pelos passos seguintes: análise mental ou simbólica de várias possibilidades de solução de um problema sem que realmente essas soluções tenham qualquer suporte físico. A melhor solução é escolhida por uma avaliação mental dos resultados dessas hipóteses e a solução assim encontrada mentalmente é depois executada. De notar que estamos perante a descrição quase exacta de como o computador de xadrez opera mentalmente, desde que se substitua "mentalmente" por "pela máquina".

    Por outro lado, a máquina faz apenas o que lhe foi dito para fazer. Trabalha por tentativa e erro, mas as tentativas são tentativas que o programador ordenou à máquina que fizesse e os erros são chamados erros porque a função avaliação dá a essas variações resultados baixos. A máquina toma decisões mas as decisões são determinadas na altura da concepção. Resumindo, a máquina não vai, verdadeiramente, para além daquilo para que foi construída. A situação foi correctamente sumariada por Torres y Quevedo, que, de acordo com a sua máquina de final de partida, afirmou: " Os limites em que o pensamento é necessário têm de ser definidos melhor ... o autómato pode fazer muitas coisas que popularmente são classificadas como pensar""

    Hoje continuamos sem um consenso sobre o que é pensar. Biológos, neurologistas, engenheiros e filósofos não estão de acordo, nem entre eles nem entre os respectivos grupos.  E, no entanto, hoje todos temos pequenos robôts em casa, desde os esquentadores inteligentes que se desligam automaticamente, aos sistemas de incêndio, aparelhos de ar condicionado, alarmes electrónicos, telemóveis com escrita inteligente de mensagens ou, passando a um nível menos doméstico, sistemas de defesa anti-aérea. Dificilmente se pode atribuir a estes objectos a faculdade do pensamento. Mas a verdade é que eles têm capacidade de análise e tomam decisões. Por outras palavras, os exemplos ainda incipientes na época de Shannon  são hoje muito visíveis.

    O lugar que reservamos à inteligência artificial é um tema frequentemente revisitado. Os autores dividem-se sobre a sua realidade. Se para alguns a inteligência articial será sempre secundária em relação ao homem por lhe faltarem as faculdades do sentimento e da imaginação, outros concebem uma inteligência artificial que acaba por conseguir atingir o patamar humano.

    O exemplo mais elucidativo que consigo encontrar é Data, o andróide de aparência humana (embora pálido e com olhos amarelos) da segunda geração Star Trek (ou Caminho das Estrelas). Esta personagem que aspira a chegar a humano é  quase um Pinóquio do século XXIV. Ele procura sentir como um humano, ter sentido de humor, de dor, etc. Quem não souber que Data é um andróide não se apercebe imediatamente da sua condição. Data cumpre a missão de um qualquer oficial da Strarfleet, sendo inclusivamente promovido quando alcança um novo patamar no cumprimento do seu dever. Será que Data pensa? Ou simplesmente continua a dar seguimento ao seu programa? Na série Star Trek os mais renitentes em reconhecer os andróides como seres pensantes são sempre os médicos. 

    Quanto à questão inicial, saber se o cérebro humano é uma máquina, julgo que ficou implicitamente respondida no texto de Shannon. Se definirmos "pensar" como algo que conseguimos pôr uma máquina a fazer, então talvez sejamos mesmo uma máquina, com um sistema de pré-programação muito próprio. Para escaparmos ao destino da máquina talvez nos tenhamos de esforçar mais na definição de pensar.

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Nota: (1) Optei por traduzir para "caixas" o termo "boxes", tradução correcta, no entanto receio que seja complicado conceptualizar o termo neste contexto. Talvez compartimentos fosse mais adequado (embora tenha outras desvantagens), mas trata-se de uma complicação natural quando se traduz de uma língua em que "boxes" designa caixas, mas também o local onde estão os cavalos ou os carros de corrida

Tradução comentada por Carlos Marques
Revisão de Olga Pombo

 

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