A PSICOGÉNESE DOS CONHECIMENTOS

E A SUA SIGNIFICAÇÃO EPISTEMOLOGICA

 Jean Piaget

 

 

Cinquenta anos de experiências fizeram-nos saber que não existem conhecimentos resultantes de um registo simples de observações, sem uma estruturação devida às actividades do sujeito. Mas também não existem (no homem) estruturas cognitivas a priori ou inatas: só o funcionamento da inteligência é hereditário e só engendra estruturas por uma organização de acções sucessivas exercidas sobre objectos. Daqui resulta que uma epistemologia conforme com os dados da psicogénese não poderia ser nem empirista nem pré-formista, mas consiste apenas num constructivismo, com a elaboração contínua de operações e de estruturas novas. 0 problema central é, então, compreender como se efectuam estas criações e por que razão, visto resultarem de construções não pré-determinadas, se podem tomar logicamente necessárias, durante o desenvolvimento.

1. Empirismo

A crítica ao empirismo não consiste em negar o papel da experimentação, mas o estudo «empírico» da génese dos conhecimentos mostra sem dificuldade a insuficiência da interpretação «empírica» da experiência. Com efeito, nenhum conhecimento se deve apenas às percepções, porque elas são sempre dirigidas e enquadradas por esquemas de acções. 0 conhecimento procede, pois, da acção e toda a acção que se repita ou se generalize por aplicação a novos objectos engendra, por isso mesmo, um «esquema», quer dizer, uma espécie de conceito práxico. A ligação fundamental constitutiva. de todo o conhecimento não é, pois, uma simples «associação» entre objectos, porque esta noção negligencia a parte de actividade devida ao sujeito, mas é a «assimilação» dos objectos a esquemas deste sujeito. Aliás, este processo prolonga as diversas formas de «assimilações» biológicas, cuja assimilação cognitiva é um caso particular enquanto processo funcional de integração. Por outro lado, quando os objectos são assimilados aos esquemas de acção, há obrigação de uma «acomodação» às particularidades destes objectos (cf. os «acomodados» fenotípicos em biologia), e esta acomodação resulta, com efeito, de dados exteriores, logo, da experiência. Portanto, é este mecanismo exógeno que converge com o que existe de válido na tese empirista, mas (e esta reserva é essencial) a acomodação não existe no estado «puro» ou isolado, já que é sempre a acomodação de um esquema de assimilação: portanto, é esta que continua a ser o motor do acto cognitivo.

Estes mecanismos, visíveis desde o nascimento, são inteiramente gerais e encontram-se nos diferentes níveis do pensamento científico. 0 papel da assimilação reconhece-se porque um «observável» ou um «facto» são sempre e desde o princípio, da utilização de quadros lógico-matemáticos tais como o estabelecimento de relações ou de correspondência, de vizinhanças ou de separações, das quantificações conducentes, mais ou menos, às medidas, em suma, necessita de toda urna conceptualização devida ao sujeito e que exclui a existência de «factos» puros, enquanto inteiramente exteriores às actividades deste sujeito, e isso tanto mais na medida em que este último deve fazer variar estes fenómenos para os assimilar.

Quanto aos processos de aprendizagem, invocados pelos empiristas behavioristas em favor das suas teses, Inheider, Sinclair e Bovet mostraram que eles não explicam o desenvolvimento cognitivo, mas são submetidos às suas leis, já que um estímulo só age como tal a um certo nível de «competência» (outra noção biológica, vizinha da assimilação). Numa palavra, a acção de um estímulo supõe a presença de um esquema, o qual é a verdadeira fonte da resposta (o que inverte o esquema SR ou o torna simétrico). Também Pribram pôs em evidência uma selecção dos inputs desde os níveis neurológicos.

2. A pré-formação

Será necessário, então, orientarmo-nos na direcção da preformação dos conhecimentos? Mais à frente, voltaremos ao problema do inatismo e, por agora, limitaremos a crítica à hipótese das pre-determinações. Atendo-nos aos factos da psicogénese, verificamos, em primeiro lugar, a existência de estádios que parecem atestar uma construção contínua. Em primeiro lugar, um período sensoriomotor, anterior à linguagem, vê constituir-se uma lógica das acções (relações de ordem, ajustamento dos esquemas, intersecções, estabelecimento de correspondências, etc.), fecunda em descobertas e até em invenções (objectos permanentes, organização do espaço, da causalidade, etc.). Entre os 2 e os 7 anos, há conceptualizações das acções, logo, representações com descoberta de funções entre as co-variações dos fenómenos, identidades, etc., mas ainda sem operações reversíveis nem conservações. Estas duas últimas constituem-se ao nível das operações concretas (7-10 anos), com «agrupamentos» logicamente estruturados, mas ainda ligados à manipulação dos objectos. Enfim, cerca dos 11-12anos, constitui-se uma lógica proposicional hipotético-dedutiva, com combinatória, «conjunto das partes», grupos de quaternalidade, etc.

Acontece que estas belas construções sucessivas e sequenciais (=cada uma necessária à seguinte) poderiam ser interpretadas com a actualização de um conjunto de preformações, semelhante à forma como um programa genético regula a «epigénese» orgânica embora esta continue em interacção com o meio e os seus objectos. Então, o problema consiste em escolher entre duas hipóteses: construções autênticas com aberturas sucessivas sobre possibilidades novas, ou actualizações sucessivas de um conjunto de possíveis dados desde a partida. Reparemos primeiro que o problema é o mesmo na história das ciências: os períodos perfeitamente distintos da história das matemáticas resultam das criações por fases devidos aos matemáticos, ou constituem apenas a realização por tematizações progressivas do conjunto de todos os possíveis correspondendo então a um universo de ideias platónicas? Ora, o conjunto de todos os possíveis é uma noção antinómica como o conjunto de todos os conjuntos, porque o próprio «todos» não passa de um possível. E, mais, os trabalhos actuais mostram que, para além do número transfinito «kapa zero» (limite da predicatividade), manifestam-se ainda aberturas sobre novos possíveis, mas são efectivamente imprevisíveis porque se não podem basear numa combinatória. Ou então, as matemáticas fazem parte da natureza, e são então construções humanas, criadoras de novidades, ou então têm por fonte um universo supra-sensível e platónico de que se trataria de demonstrar, neste caso, por que meios psicológicos tomamos conhecimento dele, o que nunca pudemos indicar.

Isto conduz-nos à criança, já que em alguns anos ela reconstroi espontaneamente as operações e estruturas de base de natureza lógico-matemática, fora das quais não compreenderia nada do que a escolha lhe ensinará. É assim que, depois do longo período pré-operatório em que lhe faltam ainda estes instrumentos cognitivos, reinventa para si, cerca dos 7 anos, a reversibilidade, a transitividade, a recursividade, a reciprocidade das relações, a inclusão das classes, a conservação dos conjuntos numéricos, a medida, a organização das referências espaciais (coordenadas), os morfismos e certos funetores, etc., dito de outra maneira, todas as bases da lógica e das matemáticas. Se estas fossem préformadas, isso significaria, pois, que o bebé, ao nascer, já possuiria virtualmente tudo o que Galois, Cantor, Hilbert, Bourbaki ou MacLane puderam actualizar depois. E como o homenzinho é ele próprio uma resultante, seria preciso remontar aos protozoários e aos vírus para localizar o foco do «conjunto dos possíveis».

Numa palavra, as teorias da préformação dos conhecimentos parecem-nos tão desprovidas de verdade concreta como as interpretações empíricas, porque as estruturas lógico-matemáticas, na sua infinidade, não são localizáveis no ponto de origem, nem nos objectos nem no sujeito. Portanto, só é aceitável um constructivismo, mas cuja pesada tarefa é explicar ao mesmo tempo o mecanismo de formação das novidades e a característica de necessidade lógica que adquirem durante o desenvolvimento.

3.  A abstracção reflexiva

Se as estruturas lógico-matemáticas não são préformadas, é preciso, pelo contrário, remontar muito alto para encontrar as suas raízes, quer dizer, os funcionamentos elementares que permitem a sua elaboração; e desde os níveis sensorio motores, quer dizer, muito antes da linguagem, encontramos esses pontos de partida (sem que haja, no entanto, começo absoluto, já que é preciso recuar a seguir até ao próprio organismo). Quais são, então, os mecanismos que asseguram as construções, de um estádio ao seguinte? 0 primeiro será aquele a que chamaremos a «abstracção reflexiva».

Com efeito, podemos distinguir três espécies diferentes de abstracções: 1) Chamemos «abstracção empírica» àquela que se debruça sobre objectos físicos exteriores ao sujeito. 2) A abstracção lógico-matemática será chamada, pelo contrário, «reflexiva» porque procede a partir das acções e das operações do sujeito. Até o é num duplo sentido, de onde se originam dois processos solidários mas distintos o de uma projecção sobre um plano superior, daquilo que é extraído do nível inferior, então trata-se de um «reflexo»; e o de uma «reflexão» enquanto reorganização sobre o novo plano - esta reorganização só utiliza, primeiro, a título instrumental as operações extraídas do nível precedente, mas que visam (mesmo se este objectivo permanece em parte inconsciente) a sua coordenação numa totalidade nova. 3) Falaremos, enfim, de «abstracção reflectida» ou de «pensamento reflexivo» para designar a tematização do que continuava operacional ou instrumental em (2); a fase (3) constitui assim a culminação natural de (2), mas supõe a mais um jogo de comparações explícitas de um nível superior às «reflexões» em acção nas utilizações instrumentais e nas construções em devir de (2). Portanto, é importante distinguir as fases de abstracções reflexivas que intervêm em toda a construção quando se trata da solução de problemas novos e a abstracção reflectida que lhe acrescenta um sistema de correspondências explícitas entre as operações assim tematizadas.

As abstracções reflexivas e reflectidas são, então, fontes de novidades estruturais pelas seguintes razões. Em primeiro lugar, o «reflexo» sobre um plano superior de um elemento extraído de um patamar inferior (por exemplo, a interiorização de uma acção numa representação conceptualizada) constitui um estabelecimento de correspondência, o que já é uma novidade, e esta abre então o caminho para outras correspondências possíveis, o que representa uma «abertura» nova. 0 elemento transferido para o novo patamar é então composto com os que já aí se encontravam ou que aí vão juntar-se, o que é então obra da «reflexão» e já não do «raciocínio», embora suscitado por este: daí resultam novas combinações que podem conduzir até à construção de novas operações que se processa «sobre» as precedentes, o que é a marcha habitual do progresso matemático (exemplo na criança: uma sucessão de adições que engendram a multiplicação. De um modo geral, todo o reflexo sobre um novo patamar arrasta e precisa de uma reorganização, e é a esta reconstrução produtora de novidades que chamamos «reflexão»: ora, muito antes da sua tematização de conjunto, ela entra em acção, por jogo de assimilações e de coordenações ainda instrumentais sem tomada de consciência da estrutura como tal (e isto encontra-se ao longo de toda a história das matemáticas). Enfim, torna-se possível a abstracção reflectida ou tematização retrospectiva, que, embora incida apenas sobre elementos já construídos, constitui naturalmente uma construção nova enquanto torna simultâneo, por correspondências transversais, o que era até aí elaborado por ligações sucessivas com direcções longitudinais (cf., no pensamento científico, a tematização das «estruturas» pelos Bourbaki).

4. A generalização construtiva

Abstracção e generalização são, como é evidente, estreitamente solidárias, cada uma delas apoiando-se mesmo na outra. Daí resulta que, à abstracção empírica só correspondam generalizações indutivas, que se processam do «alguns» para o «todos» por via simplesmente extensional, enquanto às abstracções reflexivas e reflectidas corresponderão generalizações construtivas e, em particular, «completivas» :

0 primeiro problema a resolver é então o da construção dos patamares sucessivos, que nos demos a nós próprios nos parágrafos precedentes: ora, cada um deles resulta de uma assimilação ou de uma operação nova destinada a preencher uma lacuna do nível anterior e actualizando, portanto, uma possibilidade aberta por este. Um bom exemplo é o da passagem da acção à representação graças à formação da função semiótica. A assimilação sensorio-motora consiste apenas em assimilar objectos a esquemas de acção, enquanto a assimilação representativa assimila os objectos uns aos outros, de onde aparece a constituição de esquemas conceptuais. Ora esta nova forma de assimilação era já virtual na forma sensorio-motora, já que esta incidia sobre múltiplos objectos, mas sucessivos: bastaria, então, completar estas assimilações sucessivas por um acto simultâneo de estabelecimento de correspondência para passar ao patamar seguinte. Mas um tal acto implica a evocação de objectos actualmente não percebidos, e esta evocação necessita da formação de um instrumento específico que é a função semiótica (imitações diferidas, jogo simbólico, imagem mental que é uma imitação interiorizada, linguagem gestual, etc., além da linguagem vocal e aprendida). Ora, existem já significantes sensorio-motores que são os índices ou sinais, mas apenas constituem um aspecto ou uma parte dos objectos significados a função semiótica começa, pelo contrário, quando os significantes são diferenciados dos significados e podem corresponder a uma multiplicidade destes. Vemos, então, que entre a assimilação conceptual dos objectos entre si e a semiotização existe mútua dependência, e que ambos procedem assim de uma generalização completiva da assimilação sensorio-motora com abstracção reflexiva de elementos que lhes são directamente fornecidos.

Seria fácil, também, mostrar que as novidades próprias dos níveis das operações concretas, depois hipotético-dedutivas, procedem igualmente de generalizações completivas. É assim que as operações concretas devem os seus novos poderes à conquista da reversibilidade, já preparada pela transponibilidadeo pré-operatória, mas que exige ainda uma regulação sistemática das afirmações e das negações, dito de outra maneira, uma auto-regulação sistemática das afirmações e das negações, dito de outra maneira, uma auto-regulação, aliás, sempre em acção no seio das generalizações construtivas (e às quais voltaremos no § 6). Quanto às operações hipotético-dedutivas, tomam-se possíveis pela passagem das estruturas de «agrupamentos» sem combinatória e cujos elementos são intervalados às dos «conjuntos de partes» com combinatória e generalizações das partições.'

Estes últimos progressos devem-se a uma forma particularmente importante das generalizações construtivas, que consistem em elevar uma operação a uma potência superior: assim, as combinações são classificações de classificações, as permutas são séries de séries, os conjuntos de partes são partições de partições, etc.

Salientemos, enfim, uma forma mais simples, mas igualmente importante, que consiste em generalizações por síntese de estruturas análogas, como a coordenação de dois sistemas de referências, interna e exterior a um processo espacial ou cinemático (nível de 11-12 anos).

5. As raízes biológicas do conhecimento

0 que vimos até aqui abona em favor de um constructivismo sistemático. Mas não deixa de ser verdade que as suas fontes devem ser procuradas no plano do organismo, já que uma sucessão de construções não comportaria um começo absoluto. Mas antes de propor uma solução, convém primeiro perguntarmo-nos o que significaria biologicamente uma solução préformista ou, dito de outra maneira, em que é que se tornaria o apriorismo uma vez traduzido em termos de inatismo.

Ora um grande autor mostrou-o com toda a clareza: é K. Lorenz, que se julga kantiano e que permanece partidário de uma origem hereditária das grandes estruturas da razão, enquanto preliminares a toda a aquisição extraída da experiência. Mas, sendo biólogo, Lorenz sabe muito bem que, salvo a hereditariedade «geral» comum a todos os seres vivos ou a grandes conjuntos, a hereditariedade específica varia de uma espécie para outra: a do homem, por exemplo, continua especial para a nossa espécie particular. Daí resulta que, muito honestamente, Lorenz embora acreditando na característica inata, enquanto preliminar, das nossas grandes categorias de pensamento, não possa, por este mesmo facto, afirmar a sua generalidade: de onde surge a sua fórmula muito instrutiva segundo a qual os a priori da razão consistiriam simplesmente em «innate working hypotheses». Noutros termos, Lorenz retém do a priori o seu ponto de partida, anterior às construções do sujeito, mas afasta a sua necessidade, embora muito mais importante (enquanto nós fazemos exactamente o inverso, ao insistir sobre a necessidade mas situando-a no termo das construções, sem programação hereditária prévia).

Portanto, esta posição de Lorenz é reveladora: se a razão é inata, ou é geral e é preciso fazê-la remontar até aos protozoários, ou é específica (ou genérica, etc.) e é preciso explicar por que mutações e sob influência de que selecções naturais pôde ela instalar-se (mesmo privada da sua característica essencial de necessidade). Ora, no estado actual dos conhecimentos, as explicações correntes reduzir-se-iam, para este problema particular, a um verbalismo puro e simples: consistiriam, com efeito, em fazer da razão o produto de uma mutação aleatória, logo, de um simples acaso.

Mas o que os inatistas parecem esquecer de uma forma surpreendente é que existe um mecanismo tão geral como a hereditariedade e que, em certo sentido, a dirige: é a auto-regulação, que desempenha um papel a todos os níveis, desde o genoma, e um papel tanto mais importante quanto mais nos aproximamos dos níveis superiores e do comportamento. A auto-regulação, cujas raízes são evidentemente orgânicas, também é comum aos processos mentais e vitais, e as suas acções têm, a mais, a grande vantagem de serem directamente controláveis: portanto, é nesta direcção, e não apenas na hereditariedade, que convém procurar a explicação biológica das construções cognitivas, tanto mais que, pelo jogo das regulações de regulações, a auto-regulação é, pela sua própria natureza, eminentemente constructivista (e dialéctica).

Ficamos então a compreender por que é que, ao simpatizar plenamente com os aspectos transformacionais da doutrina de N. Chomsky, não podemos aceitar a hipótese do seu «núcleo fixo inato». Para isto temos duas razões. A primeira é que, biologicamente, esta mutação própria da espécie humana seria inexplicável: já não vemos de forma alguma porque é que o acaso das mutações torna o ser humano apto a «aprender» uma linguagem articulada, e se, por outro lado, fosse preciso atribuir-lhe o inatismo de uma estrutura linguística racional, isso seria desvalorizar esta submetendo-a a tais acasos e fazendo da razão, com K. Lorenz, uma colecção de simples «hipóteses de trabalho». 0 nosso segundo motivo é que o «núcleo fixo inato, manteria todas as suas virtudes de «núcleo fixo» se não fosse inato, mas constituía o resultado «necessário» das construções próprias à inteligência sensorio-motora, anterior à linguagem e resultando das auto-regulações, ao mesmo tempo orgânicas e comportamentais que determinam esta epigénese. Decerto é esta explicação de um «núcleo fixo» não inato, mas produzido pela inteligência sensorio-motora, que, por fim, foi admitida por autores como R. Brown, E. Lenneberg e D. Mac Neill e isso mostra suficientemente que a hipótese do inatismo é inútil para a coerência do belo sistema de Chomsky.

6.  Necessidade e equilibração

Resta-nos saber por que é que as construções que a formação da razão exige se tornam progressivamente necessárias, enquanto cada uma começa por ensaios variados, em parte contingentes e comportando até bastante tarde uma parte importante de irracional (não-conservações, imperfeições de reversibilidade, regulamentação insuficiente das negações, etc.). Naturalmente, a hipótese será que esta necessidade progressiva resulta das auto-regulações e se traduz por uma equilibração igualmente progressiva das estruturas cognitivas, provindo, então, a necessidade do seu «fechamento».

Sob este aspecto, podemos distinguir três formas de equilibrações. A mais simples e, por consequência, a mais precoce, é a da assimilação e da acomodação. Desde o nível sensorio-motor, é evidente que um esquema de acções aplicado a novos objectos deve diferenciar-se em função das suas propriedades, de onde surge um equilíbrio tendendo, ao mesmo tempo, a conservar o esquema e a ter em conta as propriedades do objecto, mas podendo, se estas forem inesperadas e interessantes, arrastar a formação de um sub-esquema ou mesmo de um novo esquema, que necessitarão então da sua própria equilibração. Mas estes mecanismos funcionais encontram-se a todos os níveis. Mesmo na ciência, a assimilação das velocidades lineares e angulares comporta, ao mesmo tempo, uma assimilação quanto às relações espácio4emporais comuns a uma acomodação a estas situações distintas; também a incorporação dos sistemas abertos nos sistemas termodinâmicos gerais exige tanto uma acomodação diferenciadora como assimilações.

Uma segunda forma de equilíbrio impõe-se entre os sub­sistemas, quer se trate de sub-esquemas num esquema de acção, de sub-classes numa classe geral ou de subsistemas do conjunto das operações de que dispõe um sujeito, como, por exemplo, os números e as medidas espaciais por ocasião de avaliações onde ambos podem intervir. Ora, evoluindo os subsistemas a velocidades diferentes, pode haver conflitos entre eles. A sua equilibração supõe, neste caso, uma distinção entre as suas partes comuns e as suas propriedades diferentes e, por consequência, uma regulamentação compensatória entre as afirmações e as negações parciais, assim como entre as operações directas e inversas, ou ainda a utilização de reciprocidades.

Vemos então em que é que a equilibração conduz à necessidade lógica: a coerência progressiva que o sujeito procura e atinge finalmente provém, primeiro, de uma simples regulação causal de acções cujos resultados se revelam, posteriormente, compatíveis ou contraditórios, depois chega a uma compreensão de ligações ou implicações tomadas deductíveis e, por isso, necessárias.

A terceira forma de equilibração apoia-se na precedente, mas distingue-se dela pela construção de um novo sistema total: é aquela que necessita do próprio processo de diferenciação de novos subsistemas, a qual exige então uma diligência compensatória de integração numa nova totalidade. Aparentemente, existe aqui um simples balanço de forças opostas, a diferenciação que ameaça a unidade do todo e a integração que põe em perigo as distinções necessárias. De facto, a originalidade do equilíbrio cognitivo (e, aliás, já dos sistemas orgânicos) é assegurar, pelo contrário, o enriquecimento do todo em função da importância das suas diferenciações e assegurar a multiplicação destas (e não apenas a sua coerência) em função das variações intrínsecas (ou tornadas tais) da totalidade nas suas características próprias. Aqui, de novo, vemos, portanto, claramente, as relações entre a equilibração e a necessidade lógica progressiva, a necessidade do terminus ad quem que resulta da integração final ou «fechamento» dos sistemas.

Numa palavra, a equilibração cognitiva é, portanto, «ampliadora», isto é, os desequilíbrios não conduzem a um retorno à forma anterior de equilíbrio, mas a uma forma melhor caracterizada pelo aumento das dependências mútuas ou implicações necessárias.

Quanto aos conhecimentos experimentais, a sua equilibração comporta, além das leis precedentes, uma passagem progressiva do exógeno ao end6geno, no sentido de que as perturbações (desmentidos às previsões, etc.) são, primeiro, anuladas ou neutralizadas, depois, pouco a pouco integradas (com deslocações de equilíbrio) e, por fim, incorporadas no sistema a título de variações intrínsecas deductíveis que reconstroem o exógeno por via endógena. 0 equivalente biológico deste processo deve ser procurado na «fenocópia», tal como a tentámos interpretar e generalizar num ensaio recente.

7.   Psicogénese e história das ciências

Como disse Holton, podemos reconhecer alguns convergências entre a psicogénese e o desenvolvimento histórico das estruturas cognitivas, e é o que procuraremos precisar numa próxima obra com o físico R. Garcia.

Em certos casos, antes da ciência do século XVII, podemos até observar um paralelismo estádio a estádio. É assim que, para as relações entre a força e o movimento, podemos distinguir quatro períodos: 1) o da teoria dos dois motores de Aristóteles que tem, como consequência, o modelo da antiperistasis; 2) uma explicação global onde permanecem indiferentes, a força, o movimento e o impulso; 3) a teoria do impetus (ou impulso), concebida por Buridano como um intermediário necessário entre a força e o movimento; 4) um período final e pré-newtoniano onde o impulso tende a reduzir-se à aceleração. Ora, verifica-se, na criança, uma sucessão de quatro estádios muito, análogos. 0 primeiro é aquele em que os dois motores permanecem bastante sistemáticos como resíduos do animismo, mas com um grande número de exemplos espontâneos de antipersistasis (e isto, muitas vezes, em situações completamente imprevistas e não apenas para o movimento dos projécteis). Num segundo estádio, intervém uma noção global comparável à «acção» e que podemos simbolizar por mve, onde m é o peso, v a velocidade e e o caminho percorrido. Num terceiro período (7-10 anos), aparece espontaneamente o «impulso» no sentido do meio termo de Buridano, mas com, a mais, o poder de «atravessar» os intermediários imóveis passando pelo seu «interior» quando um movimento é transmitido graças à sua mediação. Finalmente, em quarto lugar, aparecem (cerca dos 11-12 anos) os princípios da aceleração.

Para períodos mais longos da história, é evidente que não encontramos paralelismo estádio a estádio, mas podemos procurar mecanismos comuns. É assim que a história da geometria ocidental é testemunha de um processo de estruturação cujas fases são as de uma centralização apenas sobre as relações intrafiguais com Euclides, as de uma construção das relações interfigurais com as coordenadas cartesianas, depois as de uma algebrização progressiva a partir de Klein. Ora, encontramos um processo em miniatura análogo ao das crianças, que começam naturalmente pelo intrafigural, mas que descobrem, cerca dos 7 anos, que, para determinar um ponto sobre um plano, não basta uma medida, mas são precisas duas, e que estejam postas de forma ortogonal. A esta fase «interfigural» (necessária também para a construção das horizontais) sucede aquelaa que podemos chamar «transfigural», em que as propriedades a descobrir não podem ler-se numa só figura, mas precisam de uma dedução ou de um cálculo; exemplo: as curvas mecânicas, os movimentos relativos, etc.

Ora, estas analogias com a história das ciências falam seguramente a favor do nosso constructivismo. A antiperistasis não se transmitiu hereditariamente de Aristóteles aos pequenos genebrinos, mas Aristóteles começou por ser uma criança, porque a infância é anterior à idade adulta em todos os homens, incluindo os homens das cavernas. Quanto a saber o que o homem de ciência tira dos seus anos jovens, não é uma colecção de ideias inatas, já que existem tentativas nos dois casos, mas um poder construtivo, e um de nós chegou a dizer que um físico de génio é um homem que soube conservar a criatividade própria da sua infância em vez de a perder na escola.

(In Jean Piaget e Noam Chomsky (org.), Teorias da Linguagem, Teorias da Aprendizagem, trad. port. de Rui Pacheco ,  Lisboa: ed. 70, 1985, pp. 51-62)