A Filosofia da Educação não é a Pedagogia

 

 

"Quand demain ton fils te demadera… ", in  La Philosophie de l'éducation, Paris: PUF, 1971, pp. 5-10)

por

Olivier Reboul

 

A Filosofia da Educão não é a pedagogia. Também não é a psicologia da criança. É um ramo da Filosofia. Ora a filosofia não visa  um saber-fazer, nem mesmo um saber, mas antes de mais o pôr em questão  de tudo o que acreditamos poder e saber.

O que é que caracteriza este pôr em questão? Em primeiro lugar ela é total: É um facto que já se filosofou sobre tudo, sobre Deus, sobre a delicadeza, sobre a ciência, sobre a arte, etc. Tal não significa que um filósofo seja alguém que se meta em tudo; pelo contrário, cabe-lhe limitar a sua investigão em função dos seus próprios meios. O que se quer dizer é que nenhum domínio da existência humana escapa à interrogação filosófica.

Por outro lado, toda a gente põe questões filosóficas, mas há poucos homens que tenham a coragem de as pôr até ao fim. É sobretudo aqui que se reconhece a filosofia: ela é radical , vai até à raíz do objecto que tem em vista. O homem vulgar, pergunta: “que horas são?”, enquanto o filósofo pergunta: “o que é o tempo?”;  e também “o que é o espaço,  o ser,  o homem?”.

O que o leva a questionar assim não é um simples interesse especulativo; a pergunta filosófica diz-nos respeito, e diz respeito à nossa própria existência: é vital.  Assim, quando se pergunta: “o que é o tempo?”, é de nós mesmos que se trata, da nossa angústia e da nossa felicidade, da nossa vida e da nossa morte. Se o existencialismo é apenas uma das filosofias existentes, e talvez ultrapassada, continua a ser verdade que toda a filosofia é existencial.

É a este nível que se pode falar de uma filosofia da educação.

Em primeiro lugar, a educação é uma parte da existência humana, da mesma forma que a arte, a ciência, e a linguagem. Deve  por isso haver uma filosofia da educação ao mesmo título com que existe uma estética, uma epistemologia, uma filosofia da linguagem. A filosofia da educação é aliás ensinada nas universidades anglo-saxónicas como um ramo à parte. Apesar de em França não ser assim, a verdade é que Montaigne, Rousseau, Comte, Alain foram, cada um à sua maneira, filósofos da educação.

Poderia pensar-se que se trata de um ramo menor da filosofia. No entanto, se se perguntar a um filósofo o que é o homem, o que o distingue do animal, ele responderá: o homem caracteriza-se pelo trabalho, ou pela linguagem, ou pela cultura. Ora, não existe trabelho, nem linguagem, nem cultura sem educação. O que diostingue o homem do animal, dizia Kant, é que “o homem não se pode tornar homem senão pela educação” A filosofia da educação é pois uma interrogação radical. A filosofia da educação não pergunta como curar a dislexia, mas de onde vem a importância que se atribui ao facto de ler; não pretende melhorar as relações entre pais e filhos mas indaga a natureza da família, o seu valor, os seus limites, numa palavra, o seu sentido; não ensina a estabelecer o emprego do tempo escolar mas examina o valor de cultura das diferentes disciplinasa escolares. Gradualmente, coloca-nos diante da mais radical das questões: “o que é o homem para que deva ser educado?”

Questão igualmente vital pois que diz respeito ao destino das crianças que nos são confiadas e, por isso mesmo, ao futuro da humanidade que está para vir. Se o homem deve o que é à educação, então não é nunca tarde demais para se perguntar qual o seu valor, as suas possibilidades e os seus limites, isto é, para fazer uma filosofia da educação.

Em boa verdade, este empreendimento não é novo. Desde que uma civilização, mesmo arcaica, se interroga sobre o sentido da educação por si dispensado, a filosofia da educação tem aó i seu começo:

“Quando amanhã o teu filho te perguntar: “Que são estas instruções, estas leis e estes costumes que o Eterno, vosso Deus, nos prescreveu?” - tu dirás ao teu filho ... “

                                                                    ( Deterónimo, VI, 20 e ss )

 

Quando amanhã: Chega sempre um momento em que a criança interroga os seus pais, em que o aluno critica o seu mestre, em que toda uma geraçao pôe em questão a geração que a precedeu. É este o momento da filosofia: quer nós queiramos quer não, estamos  colocados entre a espada e a parede.  Como Édipo diante da Esfinge, temos que responder ou morrer.

Tu dirás ao teu filho: Evidentemente a resposta da Biblia pode parecer completamente desactualizada. O que permanece actual é o facto de ela não se servir de rodeios, não tentar justificar as inumeráveis prescrições da Lei judaica por um apelo à autoridade, ou à utilidade, ou aos bons sentimentos, antes ir direita ao essencial, ao porquê de todos os constrangimentos e de todas as suas regras: “...a fim de temer o Eterno nosso Deus, de sermos sempre felizes e de viver

Hoje o problema da educação pôe-se com uma intensidade quase insustentável. O movimento de Maio de 1968 não começou por uma contestação dos poderes públicos, mas sim dos professores, da sua autoridade, da instituição que eles representavam e, finalmente, de toda a civilização. Abriu-se o debate em França, como em outros sítios, sobre o sentido da educação. Existe hoje em dia algum pai que não tenha sido posto em causa pelos seus filhos ou um mestre pelos seus alunos? Não é verdade que as instituições como a escola, a família, a universidade, antes incontestáveis, se encontram hoje contestadas? Lastima-se que esta contestação tome uma forma selvagem e exclua todo o diálogo. Mas, quem é que primeiro exclui o diálogo: não fomos nós que constantemente eludimos ou reprimimos as questões mais vitais da juventude, sobre a autoridade, sobre o valor das regras sociais, sobre Deus, sobre a política, sobre o sexo, em vez de respondermos indo directamente ao essencial? Acreditámos sempre que era ainda demasiado cedo para responder; os jovens por seu lado pensam, e não sem razão, que é já demasiado tarde.

E é por isso que hoje, diante destas questões que os jovens nos colocam, a filosofia da educação é tão útil; questões que nos pôem contra a parede, questões difíceis, que tocam nos problemas éticos e políticos mais agudos e às quais é impossível arriscar responder sem nos comprometermos.

Perguntar-se-á se, apesar de tudo, esta reflexão filosófica não é vazia; hoje que existem as “ciências da educação”. É aqui que é preciso recordar a tarefa específica do filósofo.

Primeiro, sem com isso querer reduzir a filosofia à análise lógica, pode-se dizer que a filosofia da educação é insubstituivel enquanto reflexão sobre o sentido das palavras usuais e suas relações. Filosofar é, em primeiro lugar, perguntar o que se quer dizer. Tomemos esta afirmação de Horace Mann: “Todo o homem que nasce neste mundo tem direito natural à educação”. O que significa aqui natural, e qual a sua relaçãoo com o direito; trata-se de uma constatação de facto, de uma prescrição moral ou da expressão de um sentimento? Outro exemplo: pergunta-se: “o que é a educação moral?” O senso comum responderá: “é fazer com que as pessoas se conduzam moralmente”. Basta reflectir um pouco para ver quanto esta resposta é contestável e mesmo perigosa pois que se a educação consiste simplesmente em levar as crianças a não roubar, a não mentir, a obedecer às normas em vigor, teríamos apenas produzido autómatos, incapazes de compreender o que fazem e porque o fazem, incapazes portanto de se adaptar a novas situações. Sob a ocupação alemã, mentir, roubar, infringir as normas válidas em tempo normal, poderia ser moral. Fazer com que as pessoas se conduzam moralmente é arriscar fazer com que não haja moral, nem mesmo gente!

Mas, não chega perguntar o que se quer dizer. Trata-se também de saber o que se quer dizer. É sobretudo aqui que a filosofia é insubstituível. As ciências humanas estudam o objecto da educação, em particular a criança, quanto à sua natureza, ao seu meio e à sua evolução. A pedagogia estuda os meios  da educação. A filosofia reflecte sobre os seus fins: porque é que se educa ? qual o critério de uma educação bem sucedida ? Quando um pai declara ao seu filho : “É para teu bem”, esta referência a um “bem” é já uma posição filosófica que nenhuma ciência pode fundamentar. O fim da filosofia é saber o que implica esta opção, por exemplo, será possível “fazer o bem” contra a sua vontade ? A partir do momento em que um educador se interroga sobre os fins do seu empreendimento, fá-lo filosofando, desde que com conhecimento de causa.

Se estes problemas dizem necessariamente respeito à filosofia, é igualmente verdade que os grandes filósofos abordaram o problema da educação: Platão, Aristóteles, St. Agostinho, Tomás de Aquino, Montaigne, Erasmo, Hegel, Comte, Hobbes, Locke, Hume, Rousseau, Kant, Fichte, Spencer, Nietzsche, Alain, Dewey, para não citar senão aqueles que fizeram da educação o tema central do seu pensamento. O próprio Descartes, pouco preocupado em ensinar, não começou ele o seu Discurso pelo processo de educação que havia recebido? Com efeito, uma filosofia da educação depende sempre das premissas metafísicas do seu autor: ela será diferente num racionalista e num empirista, num idealista e num  materialista, num conservador e num revolucionário. No entanto, seria desconhecer o espírito filosófico acreditar que aborda os novos problemas que se lhe colocam de forma preconceituosa. Se cada filósofo considera a educação em função do seu sistema, seria possível mostrar, em contraposição, de que modo essa consideração interfere na génese d o seu sistema. Compreender-se-ía mal Platão, por exemplo, se se ignorasse a sua revolta contra o absurdo da educação tradicional e contra o engano do ensino sofistico.

De forma ainda mais profunda, poder-se-ia afirmar que a educação é talvez a prova decisiva do pensamento filosófico. Ela permite discernir o sentido humano dos debates filosóficos para lá dos seus aspectos técnicos, colocar os conceitos mais abstractos à prova da prática, mostrar que a filosofia não é somente trabalho de especialistas, mas dos homens.

“O ponto de vista da educação permite-nos compreender os problemas filosóficos no lugar em que eles surgem e crescem, no seu lugar próprio, lá onde o “sim” e o “não” exprimem uma oposição prática. Se se vir na educação, a formação das tendências fundamentais, intelectuais e afectivas, que têm por objecto a natureza e os nossos semelhantes, podemos chegar ao ponto de definir a filosofia como a teoria geral da Educação” ( Dewey, Democracy and Education, p.328 )

 

Quando amanhã o teu filho te perguntar”: não há dúvida de que toda a filosofia nos prepara para o amanhã. E quando a Filosofia reflecte sobre a Educação não é verdade que ela se transforma então na forma mais elevada da educação, a “educação dos educadores?”

 

 

 

(Tradução de Susana do Céu Gil Andrade, revisão de Olga Pombo)