A Economia da Ciência
por
Ernest Mach
("The Economy of Science" in The World of Mathematics, volume III, Newman, 1988: 1759-1767)
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No pensamento científico adoptamos a teoria mais simples, aquela que
irá explicar todos os factos sob consideração e habilitar-nos a prever
novos factos do mesmo tipo. O engodo deste critério recai nas palavras
“mais simples”. Na realidade, trata-se de um princípio estético tal
como o que encontramos implícito na apreciação da poesia ou da pintura.
Por exemplo, o leigo considera uma lei como:
muito menos simples, enquanto afirmação matemática, do que é. O
físico inverte este julgamento, e a sua afirmação é certamente a mais
frutífera no que diz respeito à previsão. É, contudo, uma
afirmação sobre algo pouco familiar ao leigo, a saber, a razão da mudança
da razão da mudança.
J.B.S.
Haldane |
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1. É objecto da ciência substituir, ou
conservar, experiências, pela reprodução e antecipação de
factos no pensamento. A memória está mais à mão do que
a experiência e, muitas vezes, tem o mesmo propósito. Esta tarefa económica da
ciência, que preenche toda a sua existência, é visível à primeira vista e o seu total reconhecimento
faz desaparecer todo o misticismo da ciência.
A ciência é comunicada pela instrução de forma a que um homem possa beneficiar com a experiência de outro e seja poupado à tarefa de acumular por si mesmo. Assim, para poupar a posterioridade, as experiências de gerações inteiras estão armazenados nas biblioteca
A linguagem, o instrumento desta
comunicação, é em si mesmo um dispositivo económico. As experiências são
analisadas, ou divididas em experiências mais
simples e mais familiares, e depois traduzidas em símbolos com alguns sacrifícios de
precisão. Os símbolos da fala estão limitados, no seu uso, pelas fronteiras nacionais e, sem dúvida, assim irão
permanecer por mais algum tempo. Mas a linguagem escrita tem sofrido uma
metamorfose gradual em direcção a uma característica universal ideal. A
escrita deixou de ser uma mera transcrição da fala. Os números, sinais algébricos,
símbolos químicos, notas musicais, alfabetos fonéticos, podem ser
considerados como partes já formadas dessa característica universal do futuro.
Eles são, em certa medida, decididamente conceptuais, e quase todos usados e compreendidos a
nível internacional. A análise física e psicológica das cores já
está suficientemente avançada para desenvolver
um sistema internacional de sinais-cores perfeitamente prático. A escrita
chinesa, constitui um exemplo actual de uma verdadeira linguagem ideográfica,
pronunciada de forma diferente em diversas províncias, mas, no entanto,
mantendo em todo o lado o mesmo significado. Se o
sistema e os seus sinais fosse simples, o uso da escrita chinesa
poderia tornar-se universal. A existência de erros de gramática desnecessários
e sem significado, como frequentemente acontece com o Inglês,
mostra que a adopção de um tal sistema pode vir a ser muito importante.
Contudo, a universalidade não iria ser a única vantagem de uma tal língua
visto que lê-la seria entendê-la. As nossas
crianças são frequentemente capazes de ler aquilo que não compreendem, ao
passo que aquilo que um chinês não compreende, está também impossibilitado
de ler.
2. Na reprodução dos acontecimentos em pensamento nunca reproduzimos os acontecimentos por inteiro, mas apenas aquilo que neles é importante para nós, aquilo que se articula directa ou indirectamente com um interesse prático. Ora, as nossas reproduções são invariavelmente abstracções. O que é novamente uma tendência económica.
A natureza
é composta de sensações como seus elementos. Contudo, o homem primitivo
escolhe primeiro certos compostos destes elementos, nomeadamente, aqueles que
são relativamente duradoiros e de grande importância para ele. As primeiras e
mais antigas palavras são o nome de “coisas”. Mesmo aqui há um processo de
abstracção, uma abstracção das coisas circundantes e das pequenas e
contínuas mudanças que estas sensações compostas sofrem, abstracção na
qual aquilo que é praticamente irrelevante não é sequer notado. Não existem coisas
inalteráveis. A coisa é uma abstracção e o nome é um símbolo para um
composto de elementos de cujas mudanças nós o abstraímos. Atribuímos uma só palavra ao composto inteiro
porque precisamos de sugerir
todas as sensações constituintes de uma só vez. Mais tarde, quando nos damos
conta daa mudanças, não conseguimos sustentar a ideia da permanência
das coisas. A menos que recorramos à concepção da coisa ela mesma ou a
qualquer outro absurdo semelhante. As sensações não são símbolos de coisas.
Pelo contrário, uma coisa é um símbolo mental para um composto de
sensações de relativa estabilidade. Se quisermos falar
correctamente, o mundo não é composto de “coisas”, mas de cores, tons,
pressões, espaços e tempos, em resumo, daquilo a que vulgarmente chamamos
sensações individuais.
Toda esta operação é uma questão de economia. Na reprodução dos acontecimentos, começamos dos compostos mais duráveis e familiares e acrescentamos-lhes mais tarde um suplemento de correcções pouco usuais. Assim, falamos de um cilindro perfurado, de um cubo com bordas chanfradas, expressões que envolvem contradição, a menos que aceitemos a tese aqui apresentada. Todos os juízos são amplificações e correcções semelhantes de ideias já admitidas.
3. (...)
4. É nos detalhes da ciência, que o seu carácter económico é ainda mais evidente. As ciências consideradas descritivas devem se contentar-se com a reconstrução de acontecimentos individuais. Onde for possível, devem ser postas em relevo as características em comum de vários acontecimentos. Mas, nas ciências mais desenvolvidas, as regras para reconstrução de grande número de acontecimentos podem ser encorporadas numa única expressão. Assim, em vez de anotar casos individuais de refracção da luz, podemos reconstruir mentalmente todos os casos presente e futuros e soubermos que o raio incidente, o raio refractado e o raio perpendicular estão no mesmo plano e que sin α/sin β = n. Aqui, em vez dos inúmeros casos de refracção em diferentes combinações de matéria e sob todos os diferentes ângulos de incidência, temos simplesmente que anotar a regra acima especificada e os valores de n, - o que é muito mais fácil. O propósito económico é aqui inconfundível. Na natureza não há nenhuma lei da refracção, só há diferentes casos de refracção. A lei da refracção é uma regra concisa e englobante, imaginada por nós para a reconstrução mental de um acontecimento ,e apenas para a sua reconstrução parcial, isto é, o seu lado geométrico.
5. As
ciências mais desenvolvidas sob o ponto de vista económico são aquelas cujos
factos são redutíveis a alguns elementos desta natureza. Um
exemplo destas ciências é a mecânica, na qual lidamos exclusivamente com
espaços, tempos, e massas. A matéria é previamente estabelecida na economia das
matemáticas coloca esta ciência na . A matemática pode ser definida como a
economia do contar. Os números são um arranjo de sinais que, com o objectivo de economizar,
são organizados num sistema simples. As operações
numéricas são independentes do tipo de objectos aos quais se aplicam,
e, portanto, uma vez aprendidas, estão aprendidas para sempre. Quando, pela
primeira vez, tenho ocasião de adicionar cinco objectos a outros sete, conto toda a colecção directamente, de uma
só vez; quando, mais tarde
descubro que posso começar a contar pelo 5, poupo-me parte do
trabalho. E, lembrando-me que 5 e 7 são sempre 12, dispenso
inteiramente a enumeração.
O objectivo de todas as operações aritméticas é poupar-nos do
trabalho de realizar a enumeração directa através da utilização dos
resultados das nossas antigas operações de contagem. O nosso esforço vai no
sentido de, uma vez calculado o valor da soma, preservar a sua resposta para usos
futuros. As primeiras quatro regras da aritmética ilustram bem esta ideia. Este
é também o propósito da álgebra, que substituindo relações por valores,
simboliza e fixa definitivamente todas as operações numéricas que seguem a
mesma regra. Por exemplo, pelo exemplo da equação
aprendemos que a operação numérica à esquerda
pode sempre ser substituída pela expressão
mais simples que se encontra à direita, para quaisquer que sejam os
números representados por x e y. Assim, poupamo-nos do trabalho de
efectuar a operação mais complicada em casos futuros. A matemática é o método
de substituir, pela forma mais compreensiva e económica possível,
novas operações numéricas por antigas cujos resultados já
são conhecidos. Neste procedimento pode acontecer que os resultados das
operações tenham sido efectuados originalmente séculos atrás.
Frequentemente, as operações que envolvem um intenso esforço mental
podem ser substituídas por um processo rotineiro semi-mecanizado, que permite poupar
tempo e evitar fadiga. Por exemplo, a teoria dos determinantes deve a sua origem
à constatação do facto que não é necessário resolver de cada vez as equações
da forma
das quais resultam
A solução poder ser calculada por
meio dos coeficientes, escrevendo-os de acordo com um esquema ordenado
predefinido e operando com eles mecanicamente. Assim,
e, de forma semelhante,
As operações matemáticas permitem mesmo um total alivio da mente. Isto acontece
quando as operações de contagem até aqui efectuadas mentalmente, são
realizadas por operações mecânicas com signos. A energia do nosso cérebro,
em vez de se gastar com repetições de operações antigas, é
poupada para tarefas mais importantes. Também o negociante procura uma economia
semelhante quando, em vez de operar com as contas dos bens, opera com as
suas designações. O aborrecido trabalho das contas pode mesmo ser relegado para
uma máquina. Diversos tipos de máquinas
calculadoras estão actualmente em uso. A primeira (de alguma
complexidade) foi desenhada por Babbage, que estava familiarizado com as
ideias aqui apresentadas.
O resultado numérico obtido nem sempre é alcançado pela solução
actual do
problema. Pode também ser obtido de forma indirecta. É fácil
determinar, por exemplo, que a curva cuja quadratura para a abcissa x têm o
valor x^m, dá um incremento mx^(m-1)dx
da quadratura para o incremento dx da
abcissa. Mas então sabemos também que ∫mx^(m-1)dx
= x^m, isto é, reconhecemos o valor x^m
do incremento mx^(m-1)dx
da mesma forma que nós reconhecemos
um fruto pela sua casca. Resultados
deste tipo, encontrados acidentalmente por simples inversão ou por
processos mais ou menos análogos, são extensivamente utilizados na matemática.
Pode parecer estranho que o trabalho científico, quanto mais
usado é, mais útil é,
contrariamente, ao que acontece com o trabalho mecânico que, quanto mais usado, mais gasto é. Quando uma pessoa que faz diariamente o mesmo
trajecto, encontra acidentalmente um atalho e daí para a frente, opta por esse
caminho porque se recorda que é mais curto, poupa-se a si próprio o trabalho
de percorrer o resto do caminho. Na verdade, a memória não pode ser considerada como
trabalho. Ela apenas coloca à nossa disposição, no presente ou no futuro, a
energia necessária para que, uma situação de ignorância nos impeça de nos
avaliarmos a nós próprios. Este é precisamente o caso de ideias científicas.
Um matemático que prossegue os seus estudos sem ter uma visão clara do assunto,
tem frequentemente o sentimento desconfortável de que o papel e lápis o
ultrapassam em inteligência. A Matemática, constituindo assim um
objecto de instrução, que pouco mais valor educacional tem do que a Cabala.
6. (...)
7. A função da ciência é, no nosso
entender, substituir a experiência. Assim, por um lado, a ciência deve
permanecer ao nível da experiência, mas, por outro, deve ir para além dela, esperando constantemente
confirmação e esperando constantemente refutação. A ciência não
existe quando nem a confirmação nem a refutação é possível. A ciência actua e só actua no
domínio da experiência incompleta. São exemplos destes ramos da ciência.
As teorias da elasticidade e da condução do calor, teorias que atribuem às partículas mais pequenas
da matéria as propriedades que a
observação fornece no estudo de maiores dimensões. A comparação entre a teoria
e a experiência pode ser mais e mais alargadas à medida que, os nossos
meios de observação se aperfeiçoam.
A experiência por si só, sem as ideias que lhe estão associadas, permanecem para sempre estranha. As ideias que permanecem firmes nos mais variados domínios da investigação e que conhecem a maior quantidade de experiência, são as mais científicas. O princípio da continuidade, cujo uso penetra por todo o lado a pesquisa moderna, simplesmente transcreve um modo da concepção que conduz ao mais elevado nível a economia de pensamento.
8. Se uma longa vara elástica
for presa
num torno metálico, a vara pode ser posta a executar pequenas vibrações.
Estas são directamente observáveis, podem ser vistas, sentidas e registadas graficamente. Se a vara for encurtada, as vibrações vão aumentar em rapidez e
deixam de ser vistas directamente; a vara vai apresentar-se à nossa
vista como uma imagem pouco nítida. Estamos perante um novo fenómeno. Mas a sensação
do tacto é ainda semelhante ao caso anterior; podemos ainda fazer com que
a vara grave os seus movimentos; e se retivermos mentalmente a concepção
das vibrações, podemos ainda antecipar os resultados das experiências. A
um encurtamento adicional da vara a sensação de toque é alterada; a vara
começa a soar; surge um novo fenómeno. Mas os fenómenos não mudam
todos de uma vez; apenas este ou aquele fenómeno muda; consequentemente, a noção de vibração,
que não se confina a uma qualquer, é ainda utilizável,
ainda económica. Mesmo quando o som atinge um tom tão elevado e as
vibrações se tornam tão pequenas que os métodos de observação anteriores
não servem, podemos ainda imaginar com vantagem o soar da vara a efectuar
vibrações, podemos prever as vibrações das linhas escuras no espectro da
luz polarizada de uma vara de vidro. Se, ao encurtar ainda mais a vara
todos os fenómenos se transformarem subitamente num novo
fenómeno, a concepção da vibração deixa de ser útil
porque já não fornece um meio de cobrir as novas experiências pelas anteriores.
Quando adicionamos mentalmente às acções de um ser humano que conseguimos observar, sensações e ideias como as nossas que não conseguimos observar, o objecto da ideia que assim formamos é económico. A ideia torna a experiência inteligível para nós; ela cobre e suplanta a experiência. Esta ideia não pode ser considerada como uma grande descoberta científica porque a sua descoberta é tão natural que qualquer criança a pode conceber. Ora, é isto exactamente o que fazemos quando imaginamos um corpo em movimento que acaba de desaparecer atrás de um pilar, ou um cometa no momento em que é invisível, ou seja, imaginamos que continua o seu movimento e retém as propriedades observada. É porque fazemos isto que não somos surpreendidos pelo seu reaparecimento. Preenchemos os espaços em branco da experiência pelas ideias que a experiência nos sugere.
9. Contudo, nem todas as teorias
científicas prevalecentes surgem de forma tão simples e natural. Sabemos que, os fenómenos químicos,
eléctricos e ópticos são explicados pelos
átomos. Mas o átomo, enquanto artifício mental, não foi formado a partir do princípio da
continuidade; pelo contrário, é um produto imaginado para o propósito em
vista. Os átomos não podem ser perceptíveis pelos sentidos; como todas as
substâncias, eles são coisas do pensamento. Além disso, os átomos estão
investidos de propriedades que são absolutamente contraditadas pelos atributos
até aqui observados nos corpos. Contudo, ainda que as teorias atómicas possam
reproduzir certos grupos de factos, o investigador que se coloca no
coração das leis de Newton, só irá admitir estas teorias como ajudas provisórias, e irá
esforçar-se para alcançar, de forma mais natural, um
substituto satisfatório.
A teoria atómica desempenha, em física, um papel semelhante ao dos
conceitos auxiliares em matemática; é um modelo matemático para facilitar a
reprodução mental de factos. Apesar de representarmos as vibrações por uma
fórmula harmónica, o fenómeno do arrefecimento por exponenciais, as
distâncias por quadrados de tempos, etc, ninguém julga que as vibrações,
por si próprias, têm algo a ver com as funções circulares ou o movimento da
queda de corpos com quadrados. Foi simplesmente observado que as relações entre
as quantidades investigadas eram semelhantes a certas relações obtidas entre funções matemáticas familiares e estas ideias mais
familiares são empregues como meios fáceis de substituir a experiência.
Os fenómenos naturais cujas relações não são semelhantes àqueles de
funções com as quais estamos familiarizados, são no presente muito
difíceis de reconstruir. Mas o progresso da matemática pode facilitar o
processo.
Como mostrei, com matemáticas deste tipo, o espaço com mais do que três dimensões pode ser usado. Mas não é necessário considerarmos ajudas como mais do que artifícios mentais. Este é também o caso em todas as hipóteses formadas para a explicação de um novo fenómeno. As nossas concepções de electricidade ajustam-se de imediato aos fenómenos eléctricos, e tomam quase espontaneamente o curso familiar no momento em que notamos que as coisas ocorrem como se atraíssem ou repelissem o movimento de fluidos na superfície dos condutores. Mas estes expedientes mentais nada têm a ver com o próprio fenómeno.