Um matemático, tal como um pintor ou um poeta, é um criador de padrões1. Se os padrões do matemático são mais permanentes do que os daqueles, é porque são formados por ideias. Um pintor cria padrões com formas e cores, um poeta com palavras. Uma pintura pode dar corpo a uma "ideia", mas essa ideia é frequentemente um lugar comum e sem importância. Em poesia, as ideias são bem mais importantes. Porém, como Housman insistiu, a importância das ideias em poesia é habitualmente exagerada: "Não me consigo convencer de que possam existir ideias poéticas... A poesia não é aquilo que é dito mas uma forma de dizer".
Not all the water in the rough rude sea
Can wash the balm of an anointed king
Poderiam estes versos ser melhores? E, simultaneamente,
poderiam estas ideias ser mais triviais e mais falsas? A pobreza das ideias dificilmente parece afectar a
beleza do padrão verbal. Por seu lado, o matemático não tem outro material
com que trabalhar a não ser ideias e, portanto, é provável que os seus padrões
sejam mais permanentes, uma vez que as ideias se desgastam menos do que as
palavras com o tempo.
Os
padrões dos matemáticos, tal como os dos pintores ou os dos poetas, devem ser
belos. As ideias, como as cores ou as palavras, devem encaixar de um modo
harmonioso. A beleza é o primeiro teste: não existe lugar permanente no mundo
para matemática feia. E aqui vejo-me obrigado a encarar uma incompreensão ainda
muito disseminada (embora, provavelmente, muito menos agora do que há vinte anos
atrás), aquilo que Whitehead designou por "superstição literária", ou seja que o
amor e a apreciação estética da matemática constituem "uma monomania confinada,
em cada geração, a um pequeno número de excêntricos".
É difícil encontrar hoje, um homem instruído absolutamente
insensível ao apelo estético da matemática. Pode ser muito difícil definir
a beleza matemática mas isso acontece com qualquer tipo de beleza. Não sabemos exactamente o que
é um belo poema, o que não nos
impede de reconhecer um quando o lemos. Até o Professor Hogben, que pretende
minimizar a todo o custo a importância do elemento estético em matemática, não
se arrisca a negar essa realidade. "Existem, certamente, indivíduos para os
quais a matemática exerce uma atracção friamente impessoal... O apelo estético
da matemática pode ser muito real para alguns eleitos".
Mas
são apenas "alguns", afirma ele, alguns que sentem "friamente" (na verdade,
pessoas bastante ridículas, que vivem em tolas cidadezinhas universitárias,
abrigadas da brisa fresca dos espaços amplos e abertos). Com este comentário,
Hogben está meramente a fazer-se eco da "superstição literária" de Whitehead.
A
verdade é que não há muitos assuntos mais "populares" do que a matemática. A
maioria das pessoas aprecia de algum modo a matemática, do mesmo modo que
aprecia uma melodia agradável e, muito provavelmente, haverá mais
pessoas realmente interessadas em matemática do que em música. A aparência pode
sugerir o contrário. No entanto, há explicações fáceis para esse facto. A música
pode ser utilizada para estimular emoções das massas enquanto que a matemática
não. A incapacidade musical é reconhecida (sem dúvida, correctamente) como algo
levemente negativo, ao passo que a maior parte das pessoas tem um pavor tão
grande da palavra matemática que não se importa de, sem qualquer afectação,
exagerar a sua própria "estupidez" matemática.
Uma
pequena reflexão é suficiente para expor o absurdo da "superstição literária".
Há grandes quantidades de jogadores de xadrez em todos os países civilizados. Na
Rússia, quase toda a população educada e cada um dos jogadores de xadrez pode
reconhecer e apreciar um "belo" jogo ou problema. Contudo, um problema de xadrez
é simplesmente um exercício em matemática pura (não me refiro ao jogo, que não o
é inteiramente, uma vez que a psicologia também desempenha nele um papel) e todo
aquele que classifica um problema como "belo" está a aplaudir a "beleza"
matemática, mesmo que seja uma beleza comparativamente baixa. Os
problemas de xadrez são odes à matemática.
Podemos aprender a mesma lição, a nível mais elementar mas para um público mais
alargado, a partir do bridge ou, se descermos ainda um pouco mais, a
partir de quebra-cabeças das colunas dos jornais populares. Quase toda a sua
imensa popularidade é um tributo ao poder de representação da matemática
rudimentar e os melhores criadores de quebra-cabeças, como Dudeney ou ‘Caliban’,
usam pouco mais que isso. Sabem o que estão a fazer: o que o público quer é um
pequenino "toque" intelectual e nada há que tenha o poder da
matemática.
Posso acrescentar que não há nada no mundo que satisfaça tanto até homens
famosos (e homens que usaram linguagem depreciativa acerca da matemática) como
descobrir, ou redescobrir, um teorema matemático genuíno. Herbert Spencer
republicou, na sua autobiografia, um teorema sobre círculos que ele demonstrou
quando tinha vinte anos (desconhecendo que havia sido demonstrado, dois mil anos
antes, por Platão). O Professor Sody é um exemplo mais recente e mais notável
(mas o seu teorema é realmente seu).
Um
problema de xadrez é matemática genuína mas, de certo modo, é matemática
"trivial". Por muito engenhosas e complexas, por muito originais e
surpreendentes que as jogadas sejam, falta qualquer coisa de essencial. Os
problemas de xadrez não são importantes. A boa matemática é tão séria
quanto bela - se preferirem, "importante" palavra esta que é muito ambígua ao
passo que "séria" exprime muito melhor o que pretendo transmitir.
Não
estou a pensar nas consequências "práticas" da matemática, ponto a que, adiante,
terei de voltar. Por agora, direi apenas que, se um problema de xadrez é, por
assim dizer, "inútil", o mesmo se passa com a maior parte da melhor
matemática. Muito pouca matemática é útil na prática e essa é relativamente
enfadonha. A "seriedade" de um teorema matemático reside, não nas suas
consequências práticas, que são geralmente desprezíveis, mas no significado das
ideias matemáticas que ele conjuga. Podemos mesmo dizer que uma ideia
matemática é "significante" se puder ser conjugada de modo natural e
iluminador, com um grande conjunto de outras ideias matemáticas. Por
conseguinte, que um teorema matemático sério, um teorema que conjuga ideias
significativas é aquele que conduz a avanços importantes na matemática
e até nas outras ciências. Nenhum problema de xadrez afectou, alguma vez, o
desenvolvimento geral do pensamento científico. Pitágoras, Newton, Einstein
produziram, no seu tempo, uma mudança completa dessa direcção.
A
seriedade de um teorema não reside, pois, nas suas consequências. Elas são
simplesmente a prova da sua seriedade. Shakespeare teve uma influência
enorme no desenvolvimento da língua Inglesa, Otway quase não teve nenhuma. Mas
não é por isso que Shakespeare foi melhor poeta. Ele foi melhor poeta porque
escreveu muito melhor poesia. A inferioridade do problema de xadrez, como o da
poesia de Otway, reside, não nas suas consequências, mas no seu conteúdo.
Há
um outro ponto que tenciono abandonar rapidamente, não porque seja
desinteressante, mas porque é difícil e porque eu não tenho qualificações
suficientes para entrar numa discussão séria sobre estética. A beleza de um
teorema matemático depende, em grande parte, da sua seriedade, assim, em
poesia a beleza de um verso pode depender, até um certo ponto, do significado
das ideias que contém. Citei dois versos de Shakespeare como exemplo da beleza
absoluta de um padrão verbal; porém
After life’s fitful fever he sleeps well
parece ainda mais belo. O padrão é igualmente belo e, neste caso, as ideias têm
significado e a tese é sólida, razão pela qual as nossas emoções são abaladas
muito mais profundamente. Quer dizer que as ideias são muito importantes para
o padrão até mesmo em poesia e, naturalmente, muito mais, em matemática. Mas não
posso tentar discutir seriamente esta questão.
Já está claro, porventura, que só poderemos ter alguma hipótese de produzir
progresso, se apresentarmos exemplos de "verdadeiros" teoremas matemáticos,
teoremas esses que todos os matemáticos admitam como sendo de primeira
qualidade. E, aqui, estou francamente condicionado pelas restrições sob as quais
escrevo. Por um lado, os meus exemplos devem ser simples e inteligíveis
para um leitor que não possua conhecimento matemático especializado. Não devem
ser necessárias explicações preliminares elaboradas. O leitor deverá ser capaz
de acompanhar, tanto as demonstrações, como os enunciados. Estas condições
excluem, por exemplo, muitos dos teoremas mais belos da teoria dos números, tais
como o último teorema de Fermat ou a lei da reciprocidade quadrática. Por outro
lado, os meus exemplos deveriam ser retirados da matemática "pura", da
matemática dos matemáticos profissionais, condição que exclui muita coisa que,
comparativamente, seria facilmente inteligível mas que,
abusivamente, entra no campo da lógica e da filosofia matemática.
Por
essa razão, dificilmente poderei fazer melhor do que regressar aos Gregos.
Enunciarei e demonstrarei dois dos famosos teoremas da matemática Grega. São
teoremas "simples", tanto na ideia como na execução, sem que, de modo algum,
haja qualquer dúvida sobre o facto de serem teoremas da mais alta categoria.
Cada um deles é tão actual e cheio de significado como quando foi descoberto.
Dois mil anos não imprimiram uma única ruga em nenhum deles. Finalmente, ambos os
enunciados e demonstrações podem ser dominados numa hora por um leitor
inteligente, por mais reduzido que seja o seu equipamento matemático.
1. O
primeiro exemplo é a demonstração de Euclides da existência de uma infinidade de
números primos.
Os
números primos são os números
(A) 2, 3, 5, 7, 11, 13, 17, 19, 23, 29, ...
que não podem ser decompostos em factores menores. Por conseguinte, 37 e 317 são
números primos. Os números primos são o material a partir do qual todos os
números são construídos por multiplicação: assim 666 = 2×3×3×37.
Todo o número que não é primo é divisível pelo menos por um número primo
(geralmente, é claro, por vários). Queremos demonstrar que existe um número
infinito de números primos, ou seja, que a sucessão (A) nunca chega ao fim.
Suponhamos que a sequência tem fim, e que
2, 3, 5, 7, ... , P
é a sucessão completa (de tal modo que P seja o maior número primo) e, sob esta
hipótese, consideremos o número primo Q definido pela fórmula
Q = (2×3×5×
... ×P)
+ 1.
É evidente que Q não é divisível por nenhum dos números 2, 3, 5, ..., P; uma vez
que se obtém resto 1 quando é dividido por qualquer um desses números. Mas, se
não é ele próprio um número primo, é divisível por algum número primo e,
portanto, existe um número primo (que pode ser o próprio Q) maior que qualquer
um deles. O que contradiz a nossa hipótese, de que não existe nenhum número
primo maior que P, hipótese esta que, portanto, é falsa.
A
demonstração é feita por reductio ad absurdum, e esse reductio ad
absurdum, que Euclides tanto apreciava, é, de facto, uma das melhores armas
da matemática. É uma jogada, de longe, muito melhor, do que qualquer jogada de
xadrez. Um jogador de xadrez pode sacrificar um peão ou até uma peça de maior
valor, mas um matemático arrisca o próprio jogo.
2. O
meu segundo exemplo é a demonstração de Pitágoras da "irracionalidade" de √2.
Um
"número racional" é uma fracção a/b, em que a e b
são números inteiros. Podemos supor que a e b não têm factores
comuns, visto que, se tivessem, poderíamos removê-los. Dizer que "√2
é irracional" é simplesmente outro modo de dizer que 2 não pode ser representado
na forma (a/b)². E isto é o mesmo que dizer que a equação
(B) a² = 2b²
não pode ser satisfeita por valores inteiros de a e b que não
tenham factores comuns. Trata-se aqui de um teorema de aritmética pura, que não
exige qualquer conhecimento de "números irracionais" nem depende de nenhuma
teoria acerca da sua natureza.
Argumentemos novamente por reductio ad absurdum. Suponhamos que (B) é
verdadeira, sendo a e b números inteiros sem factores comuns.
Segue-se de (B) que a² é par (dado que 2b² é divisível por 2) e,
portanto, que a é par (pois o quadrado de um número impar é impar). Se
a é par, então
a = 2c
para algum valor inteiro de c e, portanto,
(C) 2b² = a² = (2c)² = 4c²
ou
(D) b² = 2c².
Logo, b² é par e, como tal, (pela mesma razão que anteriormente) b
é par. Isto significa que a e b são ambos pares e, assim, têm o
factor comum 2. O que contradiz a nossa hipótese e, portanto, prova que essa
hipótese é falsa.
Do
Teorema de Pitágoras segue-se que a diagonal de um quadrado é incomensurável com
o lado (que a sua razão não é um número racional, que não existe uma unidade da
qual ambos sejam múltiplos inteiros). Pois, se tomarmos o lado como a nossa
unidade de comprimento e o comprimento da diagonal for d, então, por um
teorema muito familiar também atribuído a Pitágoras,
d² = 1² + 1² = 2²,
pelo que d não pode ser um número racional.
Poderia citar vários belos teoremas da teoria de números cujo significado
qualquer pessoa pode compreender. Por exemplo, há um que é designado por
"teorema fundamental da aritmética", segundo o qual qualquer inteiro pode ser
representado de uma única forma como produto de números primos. Assim
666 = 2×3×3×37,
e não existe outra decomposição possível. É impossível que 666 = 2?11?29 ou que
13×89
= 17×73
(e podemos verificar que assim é sem calcularmos os resultados dos produtos).
Este teorema é, tal como o seu nome sugere, a base da aritmética superior. Mas a
sua demonstração, embora não seja “difícil”, requer alguma informação prévia
razão pela qual pode ser considerada enfadonha por um leitor que não seja
matemático.
Outro belo e famoso teorema é o último teorema de Fermat. Os números primos
podem (se ignorarmos o primo especial 2) ser dispostos em duas categorias:
os primos
5, 13, 17, 29, 37, 41, ... que
têm resto 1 quando divididos por 4, e os primos
3, 7, 11, 19, 23, 31, ...
que têm resto 3. Todos os primos da primeira categoria, e nenhum da segunda,
podem ser representados como a soma de dois quadrados inteiros, assim:
5 = 1² + 2², 13 = 2² + 3²
17 = 1² + 4², 29 = 2² + 5²;
mas 3, 7, 11 e 19 não se podem representar deste modo (como o leitor pode
verificar por tentativa). Este é o teorema de Fermat que está, muito justamente,
classificado como um dos melhores da aritmética. Infelizmente, não existe uma
demonstração compreensível por todos, senão pelos peritos em matemática.
Também há belos teoremas na "teoria dos conjuntos" (Mengenlehre),
tal como a hipótese do contínuo de Cantor. Aqui existe precisamente a
dificuldade oposta. A demonstração é bastante acessível, desde que a linguagem
seja dominada, mas são necessárias algumas explicações antes de se tornar claro
o significado do teorema. Assim sendo, não vou tentar dar mais exemplos.
Aqueles que já dei são test-cases e um leitor que não os consiga
apreciar provavelmente não apreciará nada em matemática.
Afirmei que um matemático era um criador de padrões de ideias e que a beleza e a
seriedade eram os critérios pelos quais os seus padrões deveriam ser avaliados.
Dificilmente posso acreditar que alguém que compreenda os dois teoremas
referidos tenha
dúvidas acerca de ambos terem passado estes testes. Se os compararmos com os
quebra-cabeças mais engenhosos de Dudeney, ou com os melhores problemas de
xadrez criados pelos mestres dessa arte, a sua superioridade destaca-se em ambos
os aspectos: existe uma inequívoca diferença de nível. Os teoremas são muito
mais sérios e também muito mais belos. Poderemos definir, um pouco mais
cuidadosamente, onde reside essa superioridade?
Em
primeiro lugar, a superioridade dos teoremas matemáticos no que se refere à
seriedade é óbvia e arrebatadora. Um problema de xadrez é o produto de um
complexo de ideias engenhoso mas muito limitado, que não se diferenciam entre si
fundamentalmente e que não têm repercussões externas. Pensaríamos da mesma
maneira, mesmo que o xadrez nunca tivesse sido inventado, enquanto que os
teoremas de Euclides e Pitágoras influenciaram profundamente o pensamento, mesmo
fora da matemática.
Logo, o teorema de Euclides é vital para a toda a estrutura da aritmética. Os
números primos são a matéria-prima a partir da qual temos de construir a
aritmética e o teorema de Euclides assegura-nos que temos material suficiente
para essa tarefa. Mas o teorema de Pitágoras tem aplicações mais vastas e
fornece um melhor exemplo.
3141592654
1000000000
de
dois números de dez dígitos. O número de primos inferiores a 1,000,000,000 é
50,847,478, o que é suficiente para um engenheiro que pode ser perfeitamente
feliz sem o restante. E isto no que respeita ao teorema de Euclides. No que
respeita ao teorema de Pitágoras, é óbvio que os números irracionais são
desinteressantes para um engenheiro, uma vez que este está interessado apenas em
aproximações e todas as aproximações são números racionais.
O
contraste entre a matemática pura e aplicada é talvez mais claramente visível
em geometria. Há a ciência da geometria pura, na qual há várias geometrias:
geometria projectiva, geometria euclidiana, geometria não euclidiana, e assim
por diante. Cada uma destas geometrias é um modelo, um padrão de ideias,
e deve ser avaliado pelo interesse e beleza do seu padrão específico. É um
mapa ou uma ilustração, o produto conjunto de muitas mãos, uma cópia
parcial e imperfeita (no entanto, exacta em toda a sua extensão) de uma secção
da realidade matemática. Mas o aspecto que, neste momento, é importante é o
seguinte: há uma coisa, em qualquer caso, da qual as geometrias puras não
são representações e essa é a realidade espacio-temporal do mundo físico. E
é óbvio que não o possam ser, uma vez que terramotos e eclipses não
são conceitos matemáticos.
Isto
pode parecer um pouco paradoxal para um leigo, mas é um truísmo para um geómetra
e posso talvez conseguir torná-lo mais claro por meio de uma ilustração.
Suponhamos que estou a dar uma palestra acerca de algum sistema de geometria, como
a geometria euclidiana vulgar, e que desenho figuras no quadro para
estimular a imaginação da minha audiência, esboços de linhas rectas, ou
círculos, ou elipses. É evidente, em primeiro lugar, que a veracidade dos
teoremas que demonstro não é afectada, de modo algum, pela qualidade dos meus
desenhos. A sua função é meramente fazer compreender o meu pensamento aos meus
ouvintes razão pela qual não há vantagem em mandá-los redesenhar pelo mais
hábil dos desenhadores. São ilustrações pedagógicas e não parte do verdadeiro
tema da palestra.
Avancemos um pouco mais. A sala na qual dou a palestra faz parte do mundo físico
e tem, em si, um determinado padrão. O estudo desse padrão e dos padrões da
realidade física é uma ciência em si própria, que podemos designar por
"geometria física". Suponhamos agora que um dínamo violento, ou um corpo
maciço a gravitar, são introduzidos na sala. Os físicos dizem-nos que a
geometria da sala foi alterada, que todo o seu padrão físico foi, ligeira, mas
definitivamente deformado. Será que os teoremas que eu demonstrei passaram a ser
falsos? Seria disparatado supor que as demonstrações apresentadas se
alteram de algum modo. Seria como supor que uma peça de Shakespeare é alterada
quando um leitor entorna o seu chá sobre uma página. A peça é independente das
páginas nas quais está impressa e as "geometrias puras" são independentes das
salas de conferências, ou de qualquer outro pormenor do mundo físico.
Este
é o ponto de vista de um matemático puro. Os matemáticos aplicados, os físicos
matemáticos têm naturalmente um ponto de vista diferente, pois estão preocupados
com o mundo físico em si, que também tem a sua estrutura ou padrão. Não é
possível descrever os padrões físicos exactamente, como acontece se se
tratar de geometria pura. Porém, podemos dizer algo significativo. Podemos descrever, por vezes de forma bastante
exacta outras de
forma muito rudimentar, as relações que se verificam entre alguns dos seus
constituintes e compará-las com as relações exactas que se estabelecem entre os
constituintes de alguns sistemas de geometria pura. Podemos
identificar alguma semelhança entre os dois tipos de relações e, então, a
geometria pura poderá ser interessante para os físicos, na medida em que poderá
dar um mapa que "se ajusta aos factos" do mundo físico. O geómetra proporciona
ao físico todo um conjunto de mapas por onde escolher. Um dos mapas será
talvez mais adequado aos factos do que outros e, então, a geometria que
proporciona esse mapa particular será a geometria mais importante para as
matemáticas aplicadas. Mesmo um matemático puro poderá sentir um maior interesse
no seu apreço por esta geometria, uma vez que não há nenhum matemático tão
"puro" que não sinta qualquer tipo de interesse pelo mundo físico. Mas, na
medida em que sucumbe a esta tentação, estará a abandonar a sua posição
matemática completamente pura.
Terminarei com um sumário das minhas conclusões colocando-as, porém agora de
forma mais pessoal. Como disse, no início, quem defende a sua especialidade
deve perceber que se está a defender a si próprio e que a justificação da minha
vida como matemático profissional acaba, no fundo, por ser uma justificação da
minha própria vida. Assim, esta secção final será, substancialmente, um
fragmento autobiográfico.
Não
me consigo recordar de, alguma vez, ter querido ser outra coisa que não
matemático. Suponho que foi sempre claro para mim que as minhas capacidades
específicas se encontravam nesse campo e nunca me ocorreu questionar o veredicto
dos mais velhos. Não me recordo porém de enquanto rapaz, alguma vez ter
sentido
qualquer paixão pela matemática e as noções que possa ter tido acerca do
que é a carreira de um matemático estavam longe de ser nobres. Pensava nos
matemáticos em termos de exames e de bolsas. Queria ser melhor do que os outros
rapazes e esta parecia-me uma forma de o conseguir de forma mais decisiva.
Teria cerca de quinze anos quando (de modo muito estranho) as minhas ambições
sofreram uma grande mudança. Há um livro de Alan St. Aubyn denominado A
fellow of Trinity, que faz parte de uma colecção que aborda o que deve ser a
vida na Universidade de Cambridge. Suponho que é um livro pior do que a maioria
dos de Marie Correli. Porém, um livro não pode ser inteiramente mau se desperta
a imaginação de um rapazinho inteligente. Há no livro dois heróis, um herói
principal chamado Flowers, que é absolutamente bom, e um herói secundário, um
tipo muito mais fraco, chamado Brown. Flowers e Brown encontram diversos perigos
na vida universitária, mas o pior é um salão de jogos em Chesterton dirigido
pelas Meninas Bellenden, duas jovens fascinantes mas extremamente más. Flowers
sobrevive a todos estes perigos, ganhando os prémios de Second Wrangler
(segundo lugar em matemáticas) e Senior Classic (primeiro lugar em línguas clássicas), e é automaticamente admitido no corpo docente da faculdade
(o que eu supunha que acontecesse). Brown sucumbe, arruína os seus pais,
envolve-se na bebida, é salvo de delirium tremens durante uma tempestade
pelas preces de Junior Dean (responsável pelos alunos não finalistas),
tem imensa dificuldade até em terminar a licenciatura e, por fim, torna-se
missionário. A amizade não é destruída por estes tristes acontecimentos e os
pensamentos de Flowers vagueiam até Brown, com uma piedade afectuosa, enquanto
bebe um Porto e como nozes pela primeira vez no Senior Combination Room
(sala comum para professores e alunos em Cambridge).
Ora
bem, Flowers era um tipo bastante decente (tanto quanto "Alan St. Aubyn" o podia
conceber). Porém, até mesmo a minha mente pouco sofisticada se recusava a
aceitá-lo como inteligente. Se ele conseguiu fazer essas coisas, porque não o
conseguiria eu? Em particular, a cena final de Combination Room
fascinou-me completamente e, desde aí, até conseguir semelhante posição, a
matemática significava para mim, principalmente, ser professor em Trinity.
Quando vim para Cambridge descobri imediatamente que pertencer ao corpo docente
de uma faculdade implicava realizar "trabalho original". Passou-se, no entanto,
bastante tempo antes que eu encontrasse uma ideia definitiva do que iria investigar.
Na escola, tinha descoberto, como acontece com todos os futuros
matemáticos, que muitas vezes era capaz de fazer coisas melhor do que os meus
professores e, mesmo em Cambridge, descobri, embora naturalmente com muito menos
frequência, que podia por vezes fazer coisas melhor do que os professores do
College. Porém, era realmente muito ignorante, até mesmo quando fiz o exame
para obter aprovação nos temas em que me debrucei durante o resto da minha
vida. Ainda pensava na matemática essencialmente como uma matéria de
"competição". Foi o Professor Love, meu professor durante alguns semestres, quem
primeiramente me abriu os olhos e me deu a primeira concepção séria do que é a
análise. A grande dívida que tenho para com ele - ele que era, afinal de contas,
um matemático aplicado - foi o seu conselho para ler o famoso Cours d’Analyse
de Jordan. Nunca esquecerei o espanto com que li esse trabalho notável, primeira
inspiração para tantos matemáticos da minha geração. Aí, pela primeira vez,
aprendi, à medida que lia, o que significa realmente a matemática. Desde essa
altura, o meu percurso foi o de um verdadeiro matemático com sólidas ambições
matemáticas e uma paixão genuína pela matemática.
Escrevi muita coisa durante os últimos dez anos, mas pouco realmente
importante. Não há mais do que quatro ou cinco artigos dos quais ainda me
consigo lembrar com satisfação. A verdadeira crise na minha carreira "chegou"
dez ou doze anos mais tarde, em 1911, quando comecei a minha longa colaboração
com
Littlewood e, em 1913, quando descobri
Ramanujan. Todo o meu melhor
trabalho, desde então, tem estado em ligação com o deles e é óbvio que essa minha
associação foi o acontecimento decisivo da minha vida. Ainda hoje digo
para mim mesmo, quando estou deprimido e sou obrigado a escutar pessoas pomposas
e maçadoras, "Bem, eu fiz uma coisa que tu nunca poderias ter feito: colaborar
com
Littlewood e
Ramanujan em igualdade de posições.". É a eles que devo uma
maturidade invulgarmente tardia. Dei "o meu melhor" pouco depois dos quarenta,
quando era professor em Oxford. Desde essa altura sofro de uma deterioração
contínua que é o "destino" comum dos mais velhos e, particularmente, dos
matemáticos mais velhos. Um matemático ainda pode ser bastante competente aos
sessenta anos, mas é inútil esperar dele ideias originais.
É
óbvio, agora, que a minha vida, naquilo que vale a pena, está terminada, e que
nada do que possa fazer pode, de forma perceptível, aumentar ou diminuir o seu
valor. É muito difícil ser "desapaixonado" mas considero isso um
sucesso. Já
tive muitas compensações, certamente, não menos do que eram devidas a um homem com
o meu particular grau de competência. Já ocupei uma série de posições
confortáveis e "prestigiantes". Tive poucos problemas com a rotina enfadonha das
universidades. Detesto "ensinar" e tive que ensinar muito pouco, uma vez que
o ensino que fiz teve a ver, quase inteiramente, com a supervisão de pesquisas. Adoro dar palestras e dei bastantes a
grupos extremamente capazes.
Sempre tive tempo suficiente para a investigação que constitui a grande e
permanente alegria da minha vida. Considerei fácil trabalhar com outros e
colaborei amplamente com dois matemáticos excepcionais. Isto permitiu-me
acrescentar à matemática muito mais do que alguma vez poderia esperar. Tive as
minhas desilusões, tal como qualquer outro matemático, mas nenhuma deles foi
demasiado séria ou me tornou particularmente infeliz. Se me tivessem oferecido
uma vida nem melhor, nem pior, quando tinha vinte anos, tê-la-ía aceitado sem
hesitação.
É absurdo supor que poderia ter "feito melhor". Não tenho capacidades
linguísticas ou habilidades artísticas e tenho pouco interesse pela
ciência experimental. Poderia ter sido um filósofo tolerável, mas não um
filósofo verdadeiramente original. Penso que poderia ter sido um bom advogado.
O jornalismo é a única profissão, fora da vida académica, na qual me teria
sentido, realmente, confiante das minhas possibilidades. Não há qualquer dúvida
de que tive razão em ser matemático, se o critério for o que vulgarmente se
designa por sucesso.
A
minha escolha foi correcta nessa altura, se o que eu queria era uma vida
razoavelmente confortável e feliz. Mas os solicitadores e corretores e agentes
de apostas também têm frequentemente vidas confortáveis e felizes e é muito
difícil ver o que o mundo beneficiou com a sua existência. Há alguma maneira em
que eu possa afirmar que a minha vida foi menos fútil que a deles? Parece-me,
novamente, que existe apenas uma resposta possível: sim, talvez, mas se for
assim, só por uma única razão.
Nunca fiz nada "útil". Nenhuma descoberta minha fez, ou é provável que venha a
fazer, directa ou indirectamente, para o bem ou para o mal, a menor diferença na
amenidade do mundo. Ajudei a formar outros matemáticos, mas matemáticos do
mesmo tipo que eu e o seu trabalho foi, pelo menos naquilo em que os ajudei,
tão inútil quanto o meu. Em termos práticos, o valor
da minha vida matemática é nulo e, fora da matemática, é de qualquer maneira
trivial. Só tenho uma possibilidade de escapar a um veredicto de completa
trivialidade e essa possibilidade reside em considerar-se que eu tenha criado uma coisa
que valesse a pena ser criada. Ora, que eu tenha criado alguma coisa é
incontestável. A questão põe-se quanto ao seu valor.
A
defesa da minha vida, ou da de qualquer outra pessoa que tenha sido
matemático no mesmo sentido que eu, é esta: ter acrescentado alguma coisa ao
conhecimento e ajudado outros a acrescentar e que essas pequenas coisas
tenham um valor que difere apenas em grau, mas não em qualidade, das criações
dos grandes matemáticos, ou das de quaisquer outros artistas, grandes ou
pequenos, que deixaram qualquer espécie de memória atrás de si.
1 Pattern, no original.
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